Espaço Literário no Substack

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24/11/2012

Aos 49 do Primeiro Tempo

Estou almoçando num ""shopping center"" e noto um garoto de uns oito anos de idade parado próximo de minha mesa, olhando para mim. Dirijo meu olhar para ele com ar de “o que foi?” e o menino, envergonhado, sai correndo.

Fico pensando no que o garoto poderia estar pensando ao fixar seu olhar sobre mim. Imagino-o fitando um sujeito gordo e grandalhão, de cabelos ostensivamente grisalhos, comendo feito um porco, com desajeitada voracidade. Ele decerto não sabe, mas tem diante de si um advogado bem sucedido na profissão, embora o saldo bancário insista em dizer o contrário. Um sujeito que arrasta atrás de si uma longa história de vida, exatos quarenta e nove anos completados naquele dia, talvez naquele momento.

Pondero, de mim para mim, como as aparências enganam. Quem me vê não imagina que, na verdade, sou eu um garoto de oito anos de idade. Não o menino desconhecido que me observava há pouco, mas o distante pirralho que fui um dia e que permaneci sendo até hoje e assim hei de permanecer até que me fechem num esquife – ao final não do segundo tempo, mas de longa prorrogação.

Concluo, de inopino, que os adultos, as pessoas maduras, os velhos, não passam de crianças crescidas. Passamos a vida acumulando conhecimento, experimentando emoções, lidando com alegrias e frustrações, aprimorando ideias, mas mantemos a mesma puerilidade com que percebíamos a vida à nossa volta na infância. As primeiras percepções são as que ficam. Os mesmos pudores, as mesmas chateações, as mesmas birras. Magoamos e nos magoamos com a mesma facilidade com que perturbávamos e éramos perturbados pelos amiguinhos e coleguinhas dos primeiros anos de existência – e estávamos a décadas de conhecer a palavra ""bullying"" ou o conceito de assédio moral.

Quem me vê deve me imaginar um sujeito cheio das certezas, aferrado às próprias convicções, o dono da verdade, dela mesma, da Verdade verdadeira. Não adianta sorrir, expressar simpatia, ter a humildade para ouvir e aprender, há sempre quem me veja como homem feito, seguro como um edifício construído sobre firme alicerce.

Qual nada. Ainda trago no espírito os mesmos temores e as mesmas inseguranças que tinha aos oito anos de idade. Ainda nutro um medo danado de cair na rua e desabar num choro doido e doído, daqueles em que tudo o que se quer é o socorro e os cuidados da mãe – que, no meu caso, já nem mais está entre nós.

Dia desses, ao entrar num restaurante, tropecei no tapete da entrada e mergulhei sobre a primeira mesa que encontrei pela frente. Não desandei a chorar, como temia, só senti dor no tornozelo, mas os dois sujeitos que me acudiram tiveram o zelo de despertar em mim, pelo menos, o sentimento da vergonha. “Fique tranquilo, não ligue porque as pessoas estão olhando”, aconselhou-me um deles. Foi só então que enrubesci envergonhado e segui meu caminho sem conseguir olhar para as demais pessoas que estavam ali, embora tenha sido possível perceber que nenhum outro freguês notara o ocorrido. Apesar disso, ainda não tive coragem de retornar ao restaurante.

Agora estou aqui, no ""shopping"", pensando nos meus quarenta e nove anos completados agora há pouco, comendo, que é para não perder o costume. Termino, dou uma passada no banheiro e me deparo com minha enorme figura refletida nos grandes espelhos do lugar. Como diria Roberto, “o tempo parou para eu olhar para aquela barriga...” De novo, senti vergonha. Saí dali correndo, como criança fugindo de algum fantasma.

Onde raios está aquele menino de oito anos de idade?

09/06/2012

O Incêndio

Cá com os meus botões, fico a pensar se quando Hitler insuflou o povo alemão contra os judeus ele, de fato, instigou o ódio ou apenas aproveitou-se de um sentimento generalizado que já permeava seu povo. Viviam-se tempos de desemprego e recessão e a sensação era de que os judeus tomavam empregos e se apropriavam de riquezas dos alemães.

Em tempos de vacas magras, e diante da incapacidade governamental de dar conta das demandas - mormente de ordem econômica -, apela-se para o sentimento de patriotismo. Afinal, o culpado é sempre o outro, o diferente. Quando os nativos começam a se preocupar com os estrangeiros, com os de outra raça ou região, por medo de que estes lhes tirem os empregos e dividam suas riquezas, é sinal evidente de que está se formando, ou já está formado, um caldo de cultura propício ao surgimento de um líder político que possa vir a fazer uso dessa matéria-prima para arroubos nazi-fascistas.

O Brasil vive momentos de pleno respeito às instituições democráticas, a despeito de vãs tentativas maldosas de alguns de mostrar o contrário. Depois que os membros do Congresso, regiamente remunerados pelo governante de plantão - falo de tempos idos, passagem desbotada da memória -, garantiram a este um novo mandato, por meio da emenda constitucional que lhe proporcionou a possibilidade da reeleição, não se teve notícia séria de outro rompimento institucional grave.

Logo depois desse triste episódio, falou-se tanto do risco, só existente na mente dos que foram apeados do poder e de seus seguidores, de que Lula, alçado à presidência da República, instalaria o caos no Brasil. Muitos não resistiram à tentação de associá-lo a figuras históricas nefastas, como Hitler e Mussolini. Quebraram a cara, mas ainda hoje não dão o braço a torcer. Onda vai, onda vem, lá vêm eles com a lengalenga. O ex-presidente, porém, foi o que mais respeito dedicou às instituições.

Respeitou o Ministério Público Federal quando aceitou a indicação feita pelos procuradores da República, e manteve a nomeação de Antonio Fernando de Souza, reconduzindo-o ao cargo de Procurador-Geral. E olha que ele havia sido o autor da denúncia do tal "mensalão"! Depois, repetiu a conduta em relação a outro nome surgido por indicação do conjunto de procuradores, Roberto Gurgel. E em relação a este, o tempo incumbiu-se de mostrar-lhe a verdadeira cara. Só para comparar, o governador Geraldo Alckmin, por exemplo, não teve coragem de seguir o exemplo de Lula e nomeou para Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo quem bem quis, ignorando o preferido de promotores e procuradores, escolhido em democrático processo eletivo interno.

Muito se disse, também, acerca de um desejo oculto de Lula calar a imprensa. Veja, Folha, Estadão, TV Globo e outros da chamada mídia velha - a que denomino "carcomídia" - não perderam um dia sequer a oportunidade de atacar o governo petista, a própria figura do presidente, por razões às vezes justas, injustas na maioria. E o que fez o ex-presidente? Nos momentos mais críticos, fez discursos, apenas. Quantos processos moveu contra os órgãos de imprensa? Nenhum! E olha que não lhe faltou material. Quantas vezes deu ordens às estatais para que cortassem a destinação de verba publicitária para esses veículos? Nenhuma!

Também a título de comparação, Gilmar Mendes, valendo-se do prestígio de ministro do STF, não perdeu tempo ao ver-se criticado por blogues independentes. Foi ao presidente da Caixa Econômica Federal e "solicitou" a ele que parasse de - como disse - "financiar esses blogues que atacam as instituições". Por "instituição", leia-se ele próprio, Gilmar Mendes, já experimentado em fazer pressões do gênero, como a que fez sobre o mesmo ex-presidente Lula para que este demitisse o delegado que comandava a Polícia Federal e a ABIN, Paulo Lacerda.

No plano interno, à parte ter sucumbido à pressão do então presidente do STF, Lula proporcionou melhores condições à Polícia Federal, que desencadeou centenas de ações que levaram à prisão "gente graúda" - governadores, desembargadores, juízes, prefeitos, empresários - e fez a Controladoria Geral da União funcionar. Criticou, é verdade, o Tribunal de Contas da União, e com razão, já que este enveredou por um ativismo político inaceitável. Mas respeitou plenamente suas decisões.

Lula também não se deixou encantar pelo canto de sereia dos que lhe anteviam a possibilidade de um terceiro mandato. O ex-presidente tinha tudo para isso, aceitação popular e maioria no Congresso, mas manteve-se firme no respeito às regras vigentes.

Enfim, não foi Lula o "novo anticristo" que muitos alardearam. Mas é fato que, ao menos por estas bandas paulistas, há um preconceito permeando os nativos, que se verifica na preocupação que muitos nutrem em relação aos nordestinos, por exemplo. O caso Maiara Petruso, condenada recentemente por ter promovido uma sórdida campanha pelo Twitter logo depois das eleições presidenciais, é significativo. Em mensagens claras, sem meias palavras, ela pregava a "morte aos nordestinos", associando-os a "vagabundos", usurpadores das "nossas riquezas".

Esse sentimento em relação aos nordestinos continua presente nas redes sociais, na forma de piadas de péssimo gosto, que muitos ingênua ou maldosamente repetem, passam adiante, curtem e festejam. Aos ingênuos e aos maldosos falta respeito, amor ao próximo, tolerância às diferenças.

É verdade que vivemos um momento econômico excelente, comparado ao resto do mundo, graças sobretudo às medidas certeiras adotadas pelo próprio Lula e por sua sucessora, em meio a uma forte crise internacional. Mas é certo que o caldo de cultura está pronto, disseminado, espalhado feito combustível, à espera de um líder destrambelhado que queira riscar o fósforo.

(Em Americana, SP, aos 9 de junho de 2012)

O "Analfabeto" e seu "Poste"

Caro Gabriel,

Muito prazer em conhecê-lo! Alegra-me ver que minha colega de “ginásio” Viviane *** gerou um garoto inteligente, como você.

Sabe, Gabriel. Quando eu tinha 24 anos de idade fui eleito vereador em Capivari. Era o mais novo de todos os eleitos. O mais idoso era o saudoso Miguel Simão Neto, 75. O prefeito era José Carlos Colnaghi, hoje secretário de Obras, cuja idade devia girar em torno dos cinquenta, próximo dos quais me encontro hoje. Numa visita dele, prefeito, à Câmara, fiz-lhe questionamentos que, por alguma razão, tiraram-no do sério. Em dado momento, ele, irritado comigo, dirigiu-se a mim e disse algo como “meu jovem, você é muito novo ainda, não entende...” – e o complemento já nem me lembro. Mas me recordo exatamente da resposta que dei a ele: “meu caro prefeito, os meus 25, os seus cinquenta ou os 75 do Miguel Simão são nada diante da infinitude do tempo!”

Pois é. Do alto dos meus 48, hoje tenho a oportunidade de dialogar com alguém ainda mais novo do que eu era, àquele tempo, e dizer-lhe que acolho com absoluto respeito sua opinião.

Devo-lhe dizer mais, que não me irrita nem um pouco você referir-se à minha opinião como “postura ingênua” e “extremamente simplificada”. Ao contrário, orgulho-me de poder dizer que me mantenho fiel a valores que afloraram e se consolidaram em meu espírito ainda na juventude. Deve ser por isso que costumo dizer que não estou ficando velho, mas “acumulando tempo de juventude”.

Quanto à “divinização” do ex-presidente Lula, devo debitar a impressão que o amigo teve a alguma “inconsistência técnica” na construção do meu texto. Embora eu venha há anos tentando aprimorar-me na arte de escrever – trazendo ainda lições dos bancos escolares, de professores como José Benedito e Stellamaris; Viviane saberá dizer-lhe quem foram –, a verdade é que ainda não passo de um amador e, como tal, sujeito a incompreensões.

Não me lembro, porém – e me ajude a refrescar minha memória – de nenhuma passagem de algum texto que eu tenha escrito em que eu tenha atribuído ao ex-presidente algum poder divino. Lula não é deus, por óbvio; é fruto mais que humano do seu meio, das suas origens, das suas obras. Lula criou o Partido dos Trabalhadores, mas não o fez crescer sozinho. Eu mesmo estava lá, nas origens, nos meus sempre presentes dezesseis anos de idade. E o governo que levou adiante, não o levou sozinho, tampouco. Não foi por um lampejo milagroso vindo dos céus que ele adotou as políticas públicas certeiras. Não, nada disso. Elas foram sendo construídas ao longo dos anos, nos estudos desenvolvidos por intelectuais do partido – que você diz estarem deixando a sigla, mas o que se vê, na realidade, é o abandono da candidatura de José Serra por intelectuais tucanos que já manifestaram adesão à de Fernando Haddad (isso é apenas uma lembrança pontual, de algo bem atual).

O PT sempre foi um partido orgânico, mesmo quando ainda era minúsculo e assombrava as pessoas. Você ainda era um bebê quando o partido já tinha dez anos e as pessoas, inclusive as mais simples, temiam que Lula, chegando ao poder, fosse dividir as casas e queimar bíblias. Essa era a ingenuidade reinante, que parece ainda permear alguns espíritos que até hoje resistem ao amadurecimento.

As políticas públicas petistas foram engendradas nas universidades e, em particular, na Fundação Perseu Abramo. O próprio Lula, a quem chamam de “analfabeto”, foi instruído por cientistas políticos, economistas, filósofos e outros intelectuais. Maria da Conceição Tavares vinha semanalmente do Rio a São Paulo para participar de reuniões na FPA, com presença de Lula. Com ela, Luciano Coutinho, Aloísio Mercadante, Emir Sader, Guido Mantega. Procure localizar e veja a entrevista da economista luso-brasileira à CBN, em especial quando ela frisa que Lula, “com sua inteligência fantástica”, apreendia com facilidade os ensinamentos. É ela dizendo!

Os estudos desenvolvidos pela Fundação foram, a pouco e pouco, sendo experimentados em prefeituras, à medida em que o partido as conquistava; depois, em governos estaduais; até que chegaram amadurecidas ao governo federal. E os resultados aí estão! Algumas, como o Programa Saúde da Família e esboços do que hoje é o Bolsa-Família, foram iniciadas durante o governo do próprio presidente Fernando Henrique Cardoso (que implantou o bolsa-escola, o vale-gás, e outros programas ainda tímidos de transferência de renda).

O que legitima o governo Lula e chancela os avanços por ele conquistados não é simplesmente seu caráter carismático, mas o fato de ter sido um governo democraticamente eleito e reeleito, seguido da eleição do “poste” que lhe sucedeu, como se referiam à hoje presidenta Dilma, na vã tentativa de desqualificá-la. Não há, nisso, “dominação burocrático-legal”, mas efetiva manifestação da vontade popular, essência da democracia.

O governo Lula deu certo, meu caro, por sua habilidade em liderar e negociar.

No meu texto, tentei dizer – e acho que não o disse com a competência devida – que a “xenofobia” manifestada por boa parcela dos paulistas (parece que, de fato, cometi o pecado costumeiro da generalização) é combustível que pode vir a ser utilizado por um líder fanfarrão eventualmente içado ao poder, um destrambelhado qualquer, diante da incapacidade de contornar uma crise econômica, por exemplo.

Não vejo esse risco nos dias de hoje, até porque a economia brasileira vai muito bem, obrigado. Só quis acentuar que queimaram a língua os que apostavam que Lula seria essa figura e que, para não terem que dar o braço a torcer, insistem em apontar para esse risco. Esse suposto risco, ele sim, inconsistente, primário, fruto da ingenuidade ou do simplismo de quem assim pensa.

Quanto às referências ao “discursos imperativos do marxismo-leninismo”, dirigidos “de cima para baixo”, devo relevá-las, por conta do desconhecimento, seu, de quem seja eu e de como seja o Partido dos Trabalhadores por dentro. O amigo apenas reproduz leituras preconceituosas feitas por apressados que jamais se animaram a aprofundar-se nas pesquisas, limitando-se a tratar como seres desprovidos da capacidade de pensar os mais de 1,5 milhão de filiados ao partido.

De todo modo, agradeço-lhe por dedicar precioso tempo à análise do meu texto. Suas observações servem muito ao meu enriquecimento intelectual. Espero ter contribuído em alguma medida, também.

PS.: por que o amigo me trata por “colega”? Sou advogado, assessor parlamentar. Se o impressionou a citação, no meu perfil, de ter cursado ciência política no ILP, em convênio com a Unesp, esqueça. Foi apenas um curso (muito bom, por sinal) de um ano e meio que sequer cheguei a concluir (não entreguei o trabalho final).

Grande abraço!

(Em Capivari, SP, aos 9 de junho de 2012)

02/01/2010

O Rio que Corta a Minha Aldeia

A recente cheia do Rio Capivari me inspirou a releitura do poema “O Tejo é Mais Belo”, do livro “O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. Diz o poeta português que, “porque pertence a menos gente, é mais livre e maior o rio da minha aldeia”.

“Poucos sabem qual é o rio da minha aldeia, / E para onde ele vai, / E donde ele vem”. Pois eu o digo. O Rio Capivari desce de Jundiaí, corta a minha aldeia e vai servir suas águas ao Rio Tietê, engrandecendo-o. Decerto, não é o maior do mundo, nem o mais belo, mas “pertence a menos gente” e, portanto, há de ser mais livre e maior que qualquer outro.

Nestes dias de chuvas intensas, o Capivari libertou-se de vez e transbordou muito além da conta. Só não causou tragédia maior porque não houve perda de vida humana, felizmente.

Tem sido assim desde que me conheço por gente. Em 1970, havíamos nos mudado de Rafard para a casa de meus avós maternos, no bairro Jardim América, eu mal completara sete anos, vi as ruas encharcadas a duas quadras de onde morávamos, próximo do Juventus. Lembro-me das canoas transportando pessoas em desespero, das mudanças às pressas, das cabras sobre as mesas e animais sobre os telhados, e da repercussão que o caso teve em âmbito nacional.

Depois disso, vi outras cheias na mesma região do Juventus, do Posto Shell, da ponte da rua 15 de Novembro, mas o ponto mais preocupante mudou para o lado do bairro Moreto. Ali, em área de proteção ambiental, migrantes atraídos de seus estados para o corte de cana e pelas promessas de uma vida digna, encontraram lugar para construir barracos e casas de alvenaria de baixo custo e qualidade. Não precisavam pagar pelo terreno, ou pagavam pouco por áreas nas imediações, e passavam a residir bem perto dos centros de Capivari e de Rafard, e do leito do rio. Aos poucos, a região foi contando com serviços e equipamentos públicos, transporte, escola, creche, posto de saúde, tornando-se cada vez mais atraente, cada vez mais populosa. Ano vai, ano vem, repetem-se as enchentes, a súbita e atabalhoada correria para abrigar os desalojados, o drama vivenciado por idosos, crianças, grávidas, arrancados de seus lares, a transferir residência para o ginásio de esportes ou para escolas municipais, a depender da generosidade e da boa vontade alheias. E tudo o que acontece é a renovação de promessas, que iterativamente caem nos esquecimento. Não há até hoje sequer um planejamento prévio de socorro para atender a uma situação sempre previsível, como cheguei a propor logo na minha primeira passagem pela edilidade local.

Parece que, nesses anos todos, as autoridades foram mesmo incapazes de pensar numa solução definitiva, sequer num paliativo de eficaz prevenção. Como no poema de Pessoa, “o rio da minha aldeia não faz pensar em nada / Quem está ao pé dele está só ao pé dele”. A cada novo governo, uma nova esperança, uma nova promessa, uma nova decepção.

Não basta construir casas para a população que se acha em área de risco, há que se planejar o que fazer para dar a essa área aproveitamento útil e, ao mesmo tempo, e sobretudo, para impedir que outras pessoas continuem a fazer dela uma opção de moradia de baixo custo. Se não houver um projeto para coibir novas construções, será inevitável, as pessoas vão ocupar o lugar, impelidas pela necessidade humana de viver sob um teto.

"Ninguém nunca pensou no que há para além / Do rio da minha aldeia", prossegue o poeta. Hoje, dizem, temos um prefeito com capacidade de raciocinar e planejar. Que desta feita ele, que está "ao pé do rio", no comando da situação, lá não esteja apenas para ver, lamentar, redigir instruções normativas, distribuir responsabilidades e prometer, mas que não perca a oportunidade de efetivamente pensar numa solução definitiva. E de executar o que há de ser feito.

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Texto publicado originalmente no blogue “Cantinho do Pensamento”, postado em 2/jan/2010 (http://luisalbiero.spaces.live.com/)

13/08/2002

Não acredite em bruxas

(Originariamente publicada na revista Perfil, de Capivari)

Eu não acredito em bruxas. Elas mentem demais, inventam cada fofoca, sem a menor preocupação com aqueles pobres coitados a quem cozinham em seu caldeirão de óleo quente.

Há, com certeza, uma bruxa em cada quarteirão, bem pertinho de você. Observe com atenção e verá. Se não for na casa da esquina, será um pouco mais para cá ou um tanto para lá. A principal característica que permite reconhecer uma bruxa a distância é a sua vassoura. Ela passa a maior parte do dia varrendo a calçada. Varre sem parar, deixa tudo limpinho, um primor, mas nunca está satisfeita. Parece um exemplo de dona-de-casa. Não se deixe enganar, porém. É só um expediente para que ela possa ficar de olho no que fazem seus vizinhos.

Já vi amizade ser desfeita por causa de uma bruxaria. A secretária de um conhecido meu era namorada de um amigo dele. Ele estava ensinando a moça a usar o computador; ela sentada, ele em pé, atrás da cadeira. A posição em que ambos se encontravam não era nada comprometedora, mas as mãos do sujeito apoiadas sobre o espaldar da cadeira davam a impressão de que ele tocava os ombros nus de sua vaporosa secretária.

Vendo a cena enquanto varria a frente de sua casa, a bruxa obteve os ingredientes necessários para fazer mais uma de suas receitas malignas. Com a vassoura, voou para onde se encontrava o namorado da moça e entregou o serviço rapidinho. O infeliz sorveu, num único gole, a poção mágica que a velha lhe servira. E ele o fez com tal volúpia que quase se afogou. Resultado: adeus emprego da menina, adeus namoro, adeus amizade.

Nos dias de hoje, anda alta a cotação da bruxaria. Basta ver o sucesso que fazem programas de TV especializados em bisbilhotar a vida alheia e excitar o sadismo de milhões de telespectadores, ávidos por uma pancadaria espetacular ou uma "pegadinha" nada original. Como num passe de mágica, os aparelhos televisores acabam sendo transformados numa imensa janela indiscreta.

O nariz comprido já não é uma característica das bruxas dos tempos modernos. Há umas que até têm narizinho bonitinho, bem feitinho, arrebitado, uma graça. Àquelas menos afortunadas pela natureza sempre restará a possibilidade de recorrer a uma cirurgia plástica corretiva; afinal, bruxa que se preza acompanha o desenvolvimento tecnológico. Ou estará fadada (bruxas detestam este termo) a ser uma eterna bruxa velha e decadente. De qualquer forma, a proeminência nasálica está presente, ao menos de forma simbólica, como emblema de quão elas são mentirosas, verdadeiros pinóquios voadores.

As bruxas adoram voar à luz da lua cheia., pois é na calada da noite que elas aprontam suas piores mandingas. Mas engana-se quem acredita que elas sejam seres exclusivamente notívagos. Elas têm uma vitalidade tal que nem precisam dormir. Atuam dia e noite, incansáveis.

Parece machismo falar das bruxas assim, no feminino. E é. Pois esse mal não é exclusividade das mulheres. Terrível injustiça, claro, porque há também os bruxos, seres ainda mais perversos do que as fêmeas de sua espécie.

E há os intermediários, sexualmente indefinidos. Mal amadas, algumas ainda virgens, essas bruxinhas são histéricas, acham tudo um tédio, adoram armar confusão, criar inimizade. Anos atrás, cruzei com uma delas pelas ruas do centro. Ela caminhava num ritmo cadenciado, bruxuleante, bumbum para cá, bumbum para lá, esforçando-se com algum êxito para aparentar a elegância de uma gazela. Uma delicadeza!

A bruxinha atravessou a rua bem à frente de meu automóvel. Histriônica e doidinha para armar confusão, a moçoila deu um salto tresloucado e pôs a boca no trombone. Rodou a baiana. Soltou aquele gritinho estridente próprio das bruxas, que quase me estourou os tímpanos. Desci para ver o que tinha acontecido. Absolutamente nada! Puro susto da menina, que, incontrolável, dizia aos berros que eu quase a havia atropelado. "Aaaaai , você quer me mataaaar, ô bofe?", esbravejava.

Há quem diga que elas têm mesmo essa mania de perseguição. Vêem ameaça em tudo. Um olhar mais sério, um gesto mais abrupto e pronto. Elas se borram de medo, são ariscas como uma marmota.

O melhor é não dar trela para elas. Se há uma bruxa em sua vizinhança, ignore-a. Não lhe dê mais do que um bom dia ou boa noite, e olha que já é muito. Acautele-se. Ponha proteção em suas portas e janelas, por mais altas que estas já sejam. Lembre-se de que a elas basta uma vassoura para que possam alcançar as alturas. E elas sempre poderão contar com o auxílio de um binóculo.

Se, contudo, for inevitável o contato, principalmente não acredite nas bruxas. Porque elas mentem uma barbaridade. E, impiedosas, fazem cada estrago!

15/07/2002

A Sabedoria do Mestre Exíbio

Mestre Exíbio não tinha a aparência de um profeta. Não era idoso, não possuía barba branca, tampouco cavanhaque ou olhos puxados como os de um monge chinês. Sujeito franzino, cabelos sempre alinhados, olhinhos miúdos e um sorriso dissimulado faziam dele um homem comum, um boa-praça, apenas isso. Mas era botar o paletó preto e ei-lo com um insuspeito ar de pastor evangélico.

Apesar da pouca idade, era O Mestre. Contavam-se nos dedos de uma das mãos as pessoas que o levavam a sério, mas era assim que ele se intitulava.

Como todo guia espiritual, Mestre Exíbio tinha seus seguidores. O mais próximo e mais constante era um indivíduo baixinho, de corpo desengonçado, a quem o mestre chamava de Pequeno Micuim. Contrapondo-se ao seu cérebro diminuto, Micuim era dono de protuberantes barriga e traseiro, que lhe proporcionavam uma certa e bisonha simetria. Algo como o côncavo e o convexo, como se as conchas do Congresso Nacional tivessem sido postas uma contra a outra, levemente deslocadas.

O andar de Micuim era lento como seu raciocínio. Enquanto conversava, costumava apertar o olho esquerdo, sem fechá-lo. Se se esforçava muito para pensar, aquele olho cerrava-se totalmente, enquanto o outro se abria mais do que o normal.

Os dois caminhavam pela manhã de uma sexta-feira qualquer, como de hábito. O discípulo indagou:

– Terá o Mestre algum inimigo?

– Pequeno Micuim – respondeu o outro, pausadamente -, reflita sobre estas palavras que vou pronunciar. Quem não está comigo, está contra mim. Aquele que não é meu amigo, meu inimigo é. E todo aquele que for amigo do meu inimigo, também nutrirei por ele a mesma inimizade. E dois inimigos meus, ainda que um não conheça o outro, considerá-los-ei amigos entre si.

Micuim não compreendeu nada daquele discurso. Porém, era seu costume elogiar o outro.

– Sábias palavras, ó Mestre!

Um pássaro passou muito próximo dos dois, num vôo rasante, enquanto Micuim olhava para o alto. Se quisesse, aquela ave não teria tido pontaria tão certeira. Uma substância branca com cobertura preta jorrou do animalzinho e alojou-se exatamente no olho esquerdo de Micuim, obrigando-o a fechá-lo de vez. O mestre soube tirar daquele episódio mais uma importante lição:

– Veja, Pequeno Micuim. Você, que sempre se proclamou amigo dos passarinhos, bem vê agora a antipatia que tais animais nutrem por você. D’agora em diante, como poderá você continuar considerando amigos os pássaros?

Limpando o olho atingido com a alça direita de sua camiseta sem mangas, com o outro Micuim fitava Mestre Exíbio sem perder o ar de admiração. Assim permaneceu mesmo quando se abaixou para, de joelhos e com a fralda da camiseta, limpar os respingos que haviam caído sobre o sapato do Mestre. Este era, para ele, um ídolo incontestável. Desmanchar aquele êxtase permanente, que os seres desprovidos de luz manifestam logo que vêem alguém a quem têm por superior, seria tão pecaminoso como um cristão pôr em dúvida a existência de Deus.

– Mestre, eu não tenho inimigos…

O profeta retorquiu, em tom de advertência:

– Então procure fabricá-los, meu caro. Não apenas um, nem dois, mas vários de uma só vez. Prefira os grandes. Um homem certamente ficará incomodado se uma formiguinha estiver acossando seu calcanhar. Ele terá que parar para afastar aquele inseto indesejável. Veja como isso é maravilhoso, Pequeno Micuim! Aquele homem, de pernas longas e passos largos, estará sendo subjugado por um bichinho quase invisível.

Pequeno Micuim jamais ousaria questionar as verdades que piamente acreditava contidas nas palavras mais fúteis de seu guia. Quando fazia perguntas ao Mestre, nunca era por duvidar do que o outro lhe dizia. Havia sempre o intuito sincero de aprender, de bebericar do que julgava ser a fonte do saber. Micuim só não fazia idéia do quão impura era a água daquele manancial.

– O que isso representará para a formiguinha, Mestre?

– Feliz indagação, meu aprendiz. Veja como isso será bom para aquele inseto: ele se sentirá tão grande e tão forte como o homem a quem incomodava. Por isso eu lhe digo: incomode! Incomode o maior número de pessoas que puder. Crie inimizades sem parar! A vida sem percalços não tem a menor graça.

– Não deveria eu perdoar os meus inimigos?

– Não, Pequeno Micuim. O perdão não é virtude, é apenas demonstração de fraqueza. O homem que perdoa quem o ofende pratica injúria contra si mesmo, renega a sua própria honra.

– Mas, Mestre. Não está nas sagradas escrituras que chegará o dia em que leões e cabritos, lobos e ovelhas abraçar-se-ão?

Mestre Exíbio não era leitor dos textos sagrados, senão eventual, de modo que foi tomado de surpresa com pergunta de tanta profundidade. Sem alterar o semblante, prosseguiu em seu lento caminhar, buscando no horizonte inspiração para responder ao discípulo. Então disse:

– Vamos com calma, Pequeno Micuim. As coisas não são simples como parecem. É certo que esse dia chegará. Mas, antes do grande acordo final, será sempre necessário acertar os honorários dos advogados…

Micuim ficou prostrado, boquiaberto diante do que cria ser uma sapiência inesgotável.

– Sábias palavras, ó Mestre! – foi tudo o que conseguiu dizer.

Assim prosseguiram naquela caminhada matinal, o mestre exibindo sua filosofia, em jorros de falácias, e o pobre Micuim embebedando-se delas.

(Publicado originariamente na revista “Perfil”, de Capivari, em agosto de 1998)

13/01/2001

A Tribo dos Tipoassins

- Nossa! Você também pertence à tribo dos tipoassins?!

Rolava um papo supersério com um chegado, que me passava detalhes de como seria seu divórcio, tipo eu vou ficar com a casa da praia e o carro importado mas tudo bem ela pode ficar com o cachorro e se quiser com a casinha dele também, quando eu o interrompi com essa pergunta.

Meu conhecido não é de origem indígena. Melhor dizendo, deve ter aquele fiozinho de sangue índio que corre pelas veias de quase todos nós brasileiros (não é à toa que os americanos imaginam que no Brasil, em qualquer rua de qualquer cidade, há silvícolas travando guerra de flechas o tempo todo. E americano costuma odiar índios e flechas e tupiniquins e latinos em geral).

Expliquei ao meu amigo que essa tribo nem os irmãos Vilas Boas, famosos indigenistas, chegaram a conhecer. Ainda não está sequer catalogada nos compêndios de antropologia. Mas não era a uma tribo indígena que eu estava me referindo. Hodiernamente (eta palavrinha odiosa esta, um tanto quanto hedionda. E obsoleta.), "tribo" designa qualquer agrupamento de pessoas que se distinguem por uma característica comum, sem que tal distinção seja por origem étnica, como a princípio pode parecer. Há a tribo dos esquinredes, dos fanques, dos revimétal (como será o plural disto?). São as mais conhecidas. E todas têm alguma consangüinidade ou afinidade ideológica com os tipoassins. Eu mesmo redigi com absoluta naturalidade o parágrafo que começa com "rolava um papo supersério" porque, em certa medida, também tenho laços com a tal tribo. Não renego minhas origens.

É fácil reconhecer um legítimo tipoassim. Basta ficar atento ao vocabulário das pessoas. Experimente, por exemplo, girar lentamente o daio (do inglês "dial", que significa daio) do seu rádio FM. Ao percorrer menos de duas ou três estações, se tanto, você logo ouvirá um locutor esgoelando-se, berrando com voz esganiçada a seguinte frase:

- E aí, galeeeeeeeera? (ai, meus tímpanos!)

Pronto. Você já achou um autêntico representante dos tipoassins. Mais do que isso, você acabou de encontrar um dos maiores propagandeadores da cultura e dos costumes dessa gente.

Nas ruas, nos ônibus, nas escolas, onde você estiver, com certeza haverá alguém por perto que pertence à tribo. Você mesmo, quem sabe, ou alguém de sua própria casa pode ser um deles.

Creio que os tipoassins são seres dotados de extrema inteligência; afinal, são bons entendedores. Meia palavra basta para que todos entendam tudo. Uma reticência é uma sentença. São minimalistas do raciocínio, adeptos ferrenhos da lei do mínimo esforço, especialmente mental.

Quando você for à rodoviária de Campinas, por exemplo, procure sentar-se naqueles bancos de espera, próximo a um grupo de estudantes. Não importa que sejam da PUC ou da Unicamp. Você os identificará pela grande quantidade de mochilas e pela vestimenta. Eles só vestem roupa "Versáti", ou seja, calças jeans e uma camiseta "básica", que servem para qualquer ocasião. Tudo é muito "versáti", eles dizem, referindo-se à "versatilidade" dessa espécie de vestuário. Note que logo chegará outro, amigo deles, que os cumprimentará com o indefectível "e aí, galera".

Fique muito atento ao "papo que vai rolar". A certa altura, um deles passará a explicar alguma coisa aos demais. Imaginemos, por hipótese, que ele esteja contando o que pretende fazer no final de semana:

- Tipo assim, acho que vou pro sítio do meu avô, sei lá. Tá a fim, galera?

Outro perguntará mais sobre o tal sítio. E a resposta será tipicamente tipoassim:

- Ah, tipo assim. Tem lagoa... mil coisas.

E virão novas perguntas em linguagem tipoassim:

- Seu avô, tipo assim, planta alguma coisa lá?

- Tipo assim, meio que parece que ele meio que planta cana, sei lá.

A essa altura, uma garota do grupo vai dizer que conhece o sítio, pois já esteve lá certa vez.

- Eu superadorei! É mó legal. É dez! Tipo assim, sei lá. É super.

O agourento do grupo, aquele que sempre é do contra, vai dizer:

- Aí, manera! Lance mais besta, galera! Perder o finzão de semana no meio do mato, pisando em m... de vaca, meu? Qual que é, dá um tempo. Tipo assim, meio que programa de índio. Sei lá.

Chega a hora de descer para a plataforma 5, que o Caprioli prepara-se para sair. Alguém diz:

- Vam’nessa, galera, que o buzão já tá roncando.

E lá se vão os tipoassins, em bando, cuidando da preservação de sua cultura. Siga-os. Discretamente, sente-se num banco à frente dos que eles escolherem. Os tipoassins costumam viajar nas poltronas do fundão. E vão zoando a viagem toda. Curta o passeio. Ouvido neles! Não se esqueça de, no final, antes de descer do ônibus, dizer-lhes:

- Valeu, galera! Foi super!

Fui.