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20/06/2019

O CPCu do Marreco

Doutor Frank me pediu que fosse ao gabinete do doutor Helene buscar o CPP, por empréstimo. Era o início dos anos 80 e não havia computadores, tablets, celulares. A fonte do Direito vinha mesmo em volumes pesados de papel e capa dura que reuniam leis, comentários, jurisprudência. Lá fui eu à sala do juiz da segunda vara criminal de Piracicaba buscar a fonte do direito processual penal para o outro magistrado, da primeira, de quem eu era escrevente de audiências.

Doutor Helene, hoje desembargador (imagino que aposentado), tinha fama de ser rude com os serventuários, o que me deixou com maus pressentimentos. Adentrei à sala, estavam apenas ele e Rosângela, a escrevente. Ele ditava qualquer coisa à minha colega e eu aguardei em pé, à porta. Quando terminou, ele, com ar grave adequado à fama, atirou em minha direção seus tremebundos olhões enormes, sob os quais cultivava fartos fios de bigode, tudo adornado por uma vasta cabeleira e vistosas correntes e pulseiras. Anunciei, com voz claudicante: “vim buscar o CPP, a pedido do doutor Frank”. Ele então esticou-se todo na cadeira, bufou, cerrou o cenho e me perguntou: “o que é CPP?”

Partindo tal pergunta de um juiz, eu só poderia concluir que ele estava brincando comigo. “Código de Processo Penal”, respondi candidamente, mas com uma nesga de preocupação. E ele: “quanta intimidade o senhor tem com o código, hein! CPP é para os íntimos!” O juiz malvado, no fundo, era mesmo um brincalhão. Ri, agradeci e saí.

As leis no Brasil, especialmente os códigos, são conhecidas assim, por apelidos. CF é a Constituição Federal; CLT é a Consolidação das Leis do Trabalho; ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente. A antiga LICC – lei de introdução ao Código Civil – agora é LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – à qual chamo, na intimidade, de “Lindbergh”. De fato, as siglas proporcionam uma certa aproximação íntima com o objeto.

As leis federais, sabemos, têm valor nacional, ou seja, valem por todo o território brasileiro, podendo alcançar até mesmo, conforme o caso e a pessoa, espaços no estrangeiro, como navios e aeronaves. Mas há uma gleba no Brasil em que as leis federais e a própria Constituição parecem não valer. Refiro-me a Curitiba.

Ali desenvolveu-se um ramo próprio do Direito, em que é normal um juiz conversar com procuradores da República para traçar estratégias de atuação dos acusadores contra determinado réu. Não vou mencionar o nome de um réu em especial, para não passar a impressão de que o direito curitibano tenha por destinatário uma única pessoa, nem insinuar que naquela próspera comuna paranaense não se respeite o princípio da impessoalidade.

Lá na zona franca de Curitiba a lei permite, por exemplo, condução coercitiva ainda que o conduzido sequer tenha sido previamente intimado a depor. Lá é possível que um juiz intercepte (ops!) uma ligação telefônica entre uma presidenta da República e seu colega ex-presidente. Lá é normal que o mesmo juiz encaminhe a conversa não ao Supremo Tribunal Federal – que, ao que parece, abriu mão de sua jurisdição sobre as plagas curitibanas –, mas à Rede Globo de Televisão.

Estou me referindo ao Código Penal de Curitiba, que, para não confundir com o nosso bom e rejuvenescido Código de Processo Civil (CPC), resolvi apelidar de CPCu. Na intimidade, por óbvias razões abjetas, eu pronuncio "cepecu".

De acordo com o CP-Cu, é absolutamente normal que o juiz estabeleça contato com um procurador por meio de um aplicativo de rede social e, pedindo sigilo, passe-lhe orientações sobre como uma de suas colegas deva se comportar em audiência. Aliás, até mesmo que esse procurador recomende ao chefe do bando – ops! –, digo, da força-tarefa, que a moça não esteja presente quando o réu, aquele determinado a quem não me referi, for ouvido em depoimento.

Como escrevente do saudoso doutor Frank, falecido no cargo de desembargador, muitas vezes presenciei seus diálogos com promotores e advogados. Nunca o vi sugerir a uns ou outros como devessem agir em determinados casos. Quando alguém se metia a pedir isto ou aquilo em relação a um processo, o juiz nascido em Itapetininga, onde houvera exercido dois mandatos de vereador antes de ingressar na magistratura, dizia-lhes simplesmente: “peticione, que eu respondo nos autos”.

Já o jurista natural de Maringá, cujo notório saber figadal concebeu o CP-Cu, abandonou a magistratura, assumiu seu lado político e hoje responde pelo Ministério da Justiça do Brasil. Chegou a tentar emplacar parte de sua genuína obra em todo o país, por meio das tais “dez medidas”, formalmente propostas por seus dallagnoizinhos a quem servia de “coach”, mas hoje parece renegá-la em parte. Cito como exemplo aquela parte em que a “orcrim” (adoro siglas) dos malandros federais tentava tornar normal em todo o Brasil, como já era prática corrente na capital paranaense, a utilização de prova obtida por meio ilícito – se bem que, por aquelas bandas, por vezes ocorre de prova alguma ser necessária.

O marreco autor do CP-Cu agora deu de grasnar que os diálogos por ele travados na escuridão das redes sociais com os procuradores, trazidos à luz pelo site The Intercept Brasil, foram obtidos por meios ilícitos e que, por isso, esse tipo de expediente não tem valor legal. Ou seja, ele acabou de reformular seu CP-Cu, de modo que sensacionalismo e vazamento já não são mais normais.

(Luís Antônio Albiero, 55, procurador municipal e ex-vereador de Capivari-SP pelo Partido dos Trabalhadores)

16/06/2019

A Prática da Conspiração

Na prática, a teoria é outra. De fato, descobrimos que por vezes é mais grave do que pode supor o mais sábio dos homens.

As revelações até agora feitas pelos jornalistas do site “The Intercept Brasil”, comandados pelo premiado Glenn Greenwald, mostram a sordidez inimaginável do conluio da operação Lava Jato.

Enquanto toda a colusão sobrevivia nas sombras, sempre alertamos para a evidência de que desde a origem a Lava Jato estava viciada, porque, ao pretexto de combater a corrupção, dedicava especial disposição de perseguir e punir integrantes do Partido dos Trabalhadores. Sabíamos que, cedo ou tarde, a verdade viria à tona, mas não podíamos supor a profundidade e o alcance das investidas da organização criminosa que se instalou em Curitiba com seus integrantes trajados de super-heróis. Tudo o que dizíamos nesse sentido era logo desqualificado: “ah, teoria da conspiração! Você acredita em Papai Noel!” Pois é. A teoria revelou-se procedente e foi muito além das suposições.

As revelações ainda são mínimas, mas bombásticas e bastantes até aqui para uma reflexão acerca do alcance devastador do conciliábulo que, desde o início, esteve sujeito ao movimento dos dedos (metafórica e literalmente) de um juiz de primeira instância lotado numa capital provinciana deste país continental.

Não foi apenas uma perseguição a um cidadão nominado Luís Inácio na pia batismal, nem somente a um líder político de dimensão mundial alcunhado Lula. A conspirata corroeu todas as instituições do país. Um juiz de piso e meia dúzia de deslumbrados meninos de faces róseas e pendores messiânicos puseram abaixo a República. Da mídia ao Supremo, não restou pedra sobre pedra. O que ainda se mantém em pé são escombros que cairão à primeira lufada.

Das mãos – e dedos – de Sérgio Moro e seu bando saíram petardos que detonaram a indústria da construção civil brasileira que começava a conquistar o mundo, a indústria naval que se reerguia, partes importantes da Petrobras – empresa à qual juravam estar defendendo – e, a seu reboque, veio abaixo um estado inteiro como o Rio de Janeiro. Milhões de empregos foram dizimados, a economia brasileira foi para o espaço e o pré-sal, esperança nacional, foi bovinamente entregue a estatais (leia-se nações) estrangeiras.

A Farsa-Jato envenenou a população contra um governo que, apesar dos problemas, ostentava altos índices de aprovação. Em parceria com a mídia velha, conseguiu convencer importantes segmentos da sociedade de que o comando do país estava tomado por corruptos, o que, entre aspas, “legitimou” a derrubada da presidenta, ainda que não houvesse um crime de responsabilidade, e em seguida a condenação e prisão da liderança política com maior viabilidade de vencer as eleições seguintes. Exterminou todas as demais lideranças e partidos de centro-direita e pavimentou a avenida que levou à eleição do parvo fascista que hoje nos governa. Tudo isso é sabido, não representa novidade, ao menos para quem enxergava os fatos políticos com um mínimo de sensatez e inteligência.

Mas a Farsa-Jato é responsável por muito mais. Seus métodos ilegais foram o tempo todo justificados por órgãos superiores do sistema judiciário porque era importante “combater a corrupção”. O TRF-4, julgando certa conduta de Sérgio Moro, concluiu que “situações excepcionais exigem soluções excepcionais”. De todos os desembargadores que compõem o tribunal, apenas um – um! – votou em sentido contrário. Todos os demais desconsideraram o art. 5º da Constituição Federal que garante a todo cidadão brasileiro que “não haverá tribunal de exceção”. Significa que o cumprimento da lei não admite o tratamento excepcional dado pelos magistrados gaúchos. A lei é a lei e, como tal, deve ser respeitada, e ponto. Ninguém está acima dela, muito menos o juiz, que tem por dever funcional observá-la e fazer com que seja cumprida.

O raciocínio tortuoso dos desembargadores gaúchos não só foi tolerado pela Suprema Corte como assimilado por muitos de seus ministros, inclusive pelo Conselho Nacional de Justiça, que detinha competência para reprimir as diatribes e conter a desenvoltura com que, a céu aberto, agia Sérgio Moro, cujo resultado foi a derruição do estado democrático de direito.

E eis que vêm a lume suas ações criminosas cometidas nos recônditos esgotos das redes sociais.Expostas ao sol, vemos Moro e seus comparsas responsáveis pela terra arrasada que se tornou o Brasil. Tínhamos convicção disso, agora temos provas.

Thank You, Glenn. Congratulations.

(Luís Antônio Albiero, Capivari-SP, 15 de junho de 2019)