Traído pelas Ondas

(Título alterado*)


Estava já desistindo quando a avistei apeando do táxi. Uma hora de atraso! Levantei-me para cumprimentá-la.

– Desculpe-me, acabei me perdendo. Fui à rua de Matacavalos, à do Fogo, até que localizei a anotação do endereço escondida num canto da bolsa. E esses números semelhantes, 174, 147, também me confundiram – disse-me, retirando as luvas e expondo a nudez de suas mãos.

—Sem problema. 

Cumprimentei-a com um beijo em cada face, tocando-lhe a mão direita.

—Importa é que veio — amenizei.

Confesso que esperava vê-la em trajes sóbrios. Generosa, no entanto, ela compartilhava com os comuns dos mortais a harmonia de suas formas perfeitas, exibidas num vestido preto, curto o suficiente para despertar instintos não propriamente nobres em um homem que se pretende decente. A roupa acentuava-lhe o torneio provocante das coxas e, de alças, divulgava um par de seios fartos e deleitosos. Avaliei, de mim para mim, que as vestes lhe conferiam ares de certa frivolidade, em descompasso com a imagem aristocrática que dela eu fazia.

—Tudo bem com você? – perguntei, ainda segurando sua mão direita com suave firmeza, sem que ela oferecesse resistência. Era mão macia, delicada, quente, levemente úmida. Se pudesse, não a soltaria jamais.

Minha entrevistada sentou-se junto à mesinha de rua em que eu a esperara por mais de hora, na calçada defronte à cafeteria, número 174 da rua Cosme Velho. Perguntei se queria entrar.

—Está bom aqui.

—Ótimo. Podemos começar?

Ela tirou da bolsa um isqueiro e um maço de cigarros. Levou um deles à boca.

—Não sabia que fumava – observei.

—Hábito recente. Desconhecia este utensílio — disse-me, acionando o isqueiro.

Distanciei minha cadeira da mesinha redonda para apreciar-lhe as pernas. Ela as cruzou com elegância e vagar, como se compreendesse e fizesse questão de corresponder à minha expectativa. O cigarro entre os dedos, levado à boca, e o movimento para tragá-lo realçavam seus lábios carnudos, vermelhos de batom. Ela soltou a fumaça, olhando-me interrogativa, e sorriu, desafiando o sol intenso com a luminosidade de seus dentes alvíssimos. Desconcertado, eu mal sabia como começar.

—Quer pedir alguma coisa? – indaguei. Já tomei uns três cafés enquanto a esperava, mas posso acompanhá-la em mais um.

—Pode ser.

Voltei os olhos pelo entorno e para dentro da cafeteria, ao fundo da qual estava a atendente, distante e de costas para nós. Ergui os braços e assim os mantive, até que lhe chamasse a atenção. Ela trouxe o cardápio e aguardou em pé, entre nós, e pude apreciar a beleza da garçonete de pele morena e bem cuidadas tranças que revelavam o orgulho de sua afrodescendência.

Enquanto minha entrevistada escolhia o que pedir, notei que por vezes lançava olhares oblíquos em minha direção. Ela optou pelo “brunch”, uma cestinha de pães, geleia, fatias de queijo e presunto e outras iguarias. Nada pedi, incapacitado que estava para raciocinar e fazer escolhas. Um suor frio escorria-me pelo corpo.

A cesta servia bem a duas pessoas e a dividimos, a seu convite. Enquanto comíamos, passou por nós o músico do lugar, famoso cartunista, que chegava com seu saxofone para a apresentação logo mais à noite. Cumprimentei-o apenas movendo as sobrancelhas.

Terminado o lanche, fiz à convidada ilustre a primeira pergunta, algo banal, a título de aquecimento, e me detive a admirar suas feições atrevidas, em que se destacavam dois olhinhos perversos e a boca polpuda que ela parecia oferecer-me.

Ela gesticulava graciosamente com as mãos enquanto me respondia. Aproximei a cadeira para que, sempre que fizesse as perguntas, pudesse também mover minhas mãos com intuito, que eu procurava dissimular, de tocar as suas. Tive êxito amiúde, cuidando para que os toques parecessem acidentais. E como foi excitante sentir a maciez, o calor e a delicadeza de suas mãozinhas! Meu desejo era segurá-las entre as minhas e beijá-las, e seguir beijando seu braço até alcançar-lhe o pescoço. Atribuo à ética profissional os esforços sobre-humanos que tive de fazer para conter a ânsia de acanalhar-me. Minha mente havia se transformado numa colônia de pensamentos lascivos que tornaram meu corpo febril e fremente.

Enveredei por fazer-lhe perguntas sobre seu relacionamento com o ex-marido. Ela contou o quanto era tóxica a relação, permeada de hipocrisias e falsas aparências.

—Mas os relatos dele revelam um homem apaixonado – objetei.

—Um cínico, isso sim. Extremamente ciumento, possessivo. Opressor, desconfiava de tudo. De tudo!

Eu anotava as respostas em um caderninho, à moda antiga, sem gravador ou celular. A ocasião merecia uma entrada ao vivo, uma “live”, mas não tive coragem de sequer sugerir. Temi desagradar quem, a meu sentir, praticava com habilidade o jogo da sedução e supus que ela preferisse discrição.

Enquanto fazia as anotações, observei que ela me fitava como se medisse cada parte do meu corpo. Cada gesto seu alimentava minha convicção de que quisesse me conquistar. Meu coração disparou, abriram-se as asas dos meus devaneios e minha alma escapou em voo cego. Estava desorientado, com sensação de desequilíbrio, atraído por seus ombros e braços nus, e foi doloroso ter de me conter para não cometer uma grave deselegância. Por mais de uma vez senti-me tragado por seus olhos, puxado para dentro de si, como ondas que me arrastassem para o fundo do mar. Era como se ela se despisse e se oferecesse para que eu invadisse seu corpo e sua alma. Havia cumplicidade em cada gesto seu. Por pouco não capitulei.

Terminada a entrevista, senti meu espírito leve, saciado, ao cabo de uma viagem por minhas mais delirantes fantasias. O corpo, porém, ainda suava e tremia, prolongando o regozijo experimentado.

Acompanhei-a até o táxi. Busquei sua mão direita, segurei-a e acomodei a palma de minha mão livre em sua face esquerda, fazendo suave pressão para trazer-lhe o rosto à frente. Despedi-me com um beijo demorado na face oposta, muito próximo do vértice que une seus lábios, e tive o prazer derradeiro de sentir o calorzinho úmido do cantinho de sua boca.

Quando o automóvel partiu, eu estava ainda mais perturbado do que no início da entrevista, decepcionado por não ter tido a coragem de formular a questão para a qual havia me preparado desde que lhe fizera o convite. Não consegui mais contatá-la, nunca mais soube dela, de modo que carregarei ao jazigo perpétuo o arrependimento por não ter feito a pergunta de milhões – capítulo inconcluso de minha vida –, se ela havia ou não traído o marido, desconfiança que ele próprio exteriorizara em seu histórico relato. 

Acompanhei o movimento do automóvel até que desaparecesse de meu olhar, enquanto outro, na contramão, me atropelava a consciência, esmagava-a. Culpava-me por ter-me deixado trair pela atração que ela deveras me impôs, a que resisti ao preço de um esforço espartano, custo que agora mais me pesa. 

Paguei a conta na cafeteria e caminhei em direção ao estacionamento. Um bando de andorinhas deixou ruidosamente o emaranhado de fios dos postes e revoou pelo céu da cidade maravilhosa, que começava a enegrecer.

Na manhã seguinte, no caminho até a redação da revista para concluir a matéria, olhei atentamente cada banca de jornal com que cruzei, temendo ver estampada a manchete que, em pesadelo, havia me feito acordar sobressaltado, a ponto de perder o sono pelo resto da noite: “jornalista é acusado de assédio sexual durante entrevista”.


(*) Título original: "A Entrevistada"

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Luís Antônio Albiero

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3 comentários:

Anônimo disse...

Muito, nobre companheiro das letras.

Luís Antônio Albiero disse...

"Muito" o que, nobre companheiro? A quem tenho a honra de me dirigir?

Você está publicando como "anônimo" e não tenho como identificá-lo.

Anônimo disse...

Como sempre conhecedor do bom português, parabéns.