Está dificil compreender o frenesi que tomou conta de significativa parcela dos oito bilhões de viventes sobre a face da terra em relação à Venezuela e à reeleição de Nicolás Maduro à presidência do país.
Mídia, centro, direita, extrema-direita e parte da esquerda do Brasil e do mundo aceitam como favas contadas que houve fraude nas eleições presidenciais da Venezuela e sequer por remota hipótese admitem a possibilidade de que as atas exibidas pelos opositores sejam, elas mesmas, frutos de fraude.
Eu me pergunto: o que essas pessoas -- desde parte da esquerda aos ponteiros da extrema-direita -- esperam que o Brasil, os Estados Unidos, o Papa, a ONU ou os extraterrestres façam? Que desconsiderem o que foi proclamado pelas autoridades constituídas da Venezuela, intervenham em assuntos internos do país vizinho, destituam Maduro do poder à força e em seu lugar coloquem Edmundo González, o Juan Guaidó da nova temporada?
Esse desejo é fruto da mesmíssima distopia que leva os bolsonarentos a crerem que, eleito Donald Trump presidente dos Estados Unidos, o Grande Irmão do Norte virá à "terra brasilis" e, quiçá pessoalmente, como um sonhado Rambo da política, desfará todas as acusações que pesam sobre o seu congênere dos trópicos, retirará o "Micto" de trás das grades, onde certamente estará em breve, e o fará sentar-se no trono real, então já não mais da presidência República, mas da monarquia refundada?
Ah, mas o governo brasileiro deveria ter reconhecido a oposição como vitoriosa! Com base em quê, cara pálida? Nos "documentos" apresentados pelos opositores? Será que já esquecemos das falas golpistas e das incontáveis provas de BolsoNero sobre a fraude das eleições brasileiras de 2022 jamais apresentadas?
Em que se diferenciam, em credibilidade, a apuração realizada e proclamada pelas autoridades venezuelanas competentes e a documentação exibida pelas Corinas e seus aliados? Suspeita-se de fraude de um dos lados e se dá pleno crédito ao outro com quais suportes?
Os princípios internacionais da autodeterminação dos povos e da não-intervenção obrigam a que as demais nações do mundo respeitem os vereditos emanados das autoridades constituídas de quaisquer países. Desacreditar da palavra oficial de uma corte estrangeira ao ponto de negar-lhe os efeitos jurídicos é, em si mesmo, odiosa intervenção em assuntos internos.
Ah, mas o Brasil poderia ao menos liderar um movimento de embargos econômicos à Venezuela. Sim, claro. E com isso contribuir ainda mais para o empobrecimento do povo vizinho e estimular que mais venezuelanos atravessem a fronteira e venham se somar aos que já se encontram do lado de cá. É isso mesmo que queremos?
Outra incompreensão é sobre o papel que Lula vem desempenhando, que lhe atrai críticas da esquerda e de todo o espectro à direita, que não compreendem sua índole conciliadora e sua postura de neutralidade, embora ele jamais tenha negado o bom relacionamento que procura manter com Nicolás Maduro e com qualquer chefe de Estado do planeta, da esquerda ou da direita, democrático ou com pendores ditatoriais.
Queriam os mais afoitos da direita que Lula de plano reconhecesse que houve fraude e desse como vitorioso o principal opositor de Maduro. No lado oposto, queriam que ele declarasse vencedor desde logo o sucessor de Hugo Chávez.
Sem elementos para se posicionar, com convicção, de um lado ou de outro e, obrigado pela Constituição Federal do Brasil à neutralidade e ao respeito às decisões internas das autoridades venezuelanas, só lhe restava confiar e referendar o decidido. Com sua sabedoria de estadista, porém, por certo considerou que a comunidade internacional não teria a mesma postura e teve o tino de concluir que era necessário ganhar um tempo -- ele mesmo, o bom e velho deus Tempo, senhor da razão e dos enganos.
Foi por isso, creio, que Lula resolveu apelar para uma tal "entrega das atas", questão, a rigor, já superada pela Corte venezuelana, que ouviu todos os candidatos a presidente -- apenas Edmundo González, e justamente ele, se recusou a depor -- e proclamou o resultado definitivo.
Esse hiato temporal proposto por Lula tem servido como uma ponte almofadada para que Maduro, toda a Venezuela e a comunidade internacional possam transitar tranquilos e confortáveis de um para o outro lado, aquele em que a nação venezuelana seguirá o curso normal da vida, com o mandato renovado de seu presidente. Tenha ou não havido fraude, é questão tormentosa que só o povo vizinho poderá resolver, com os meios que sua construção civilizatória lhe tenha proporcionado.
Em 2018, o Brasil vivenciou uma situação parecida. O principal candidato a presidente fora encarcerado um ano antes, sem crime, nem prova de qualquer ilícito, por forças da direita malmente ocultas sob a toga do poder judiciário, para que não pudesse disputar a eleição. Avenida aberta, elegeu-se um pulha, ao custo de uma facada de autenticidade no mínimo duvidosa que serviu para humanizar o monstro caricato e retirá-lo dos debates. Uma fraude atrás da outra!
Desgovernado, o país ainda se viu obrigado a enfrentar, com centenas de milhares de dolorosas perdas de vidas humanas, a pandemia da Covid-19, e nem por isso ficamos aguardando socorro de nações estrangeiras ou forças extraterrenas (diferentemente dos bolsonarentos distópicos no pós-eleição de 2022).
Encontramos a saída e resolvemos nós mesmos os nossos problemas. É só o que resta ao mundo em relação à Venezuela, confiar que esteja preparada para tecer a solução.
Respeito é bom e todos gostamos.
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(Luís Antônio Albiero, de Capivari, SP, em Jacareí, SP, madrugada de 6 de agosto de 2024)