08/08/2024

Crise Existencial

(Resposta que enviei a uma cobrança que recebi pelo WhattsApp)

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Prezado senhor, ou senhora, Cepié Fiele, boa tarde.

O senhor, ou senhora, me lançou em profunda crise de identidade ao me remeter essa cobrança, "apenas 01 conta em aberto", como está dito na mensagem. "Vencida desde 20240509 no valor de R$ 129,82". E com a advertência explícita de que "esse débito encontra-se APTO PARA NEGATIVAÇÃO OU PROTESTO" assim mesmo, em letras maiúsculas, como se um cobrador estivesse à porta de minha casa cobrando-me aos gritos, expondo a toda a vizinhança a ignominiosa maldade que cometi contra essa empresa.

Ameaça séria. Idônea. Daquelas capazes de gerar aflição em qualquer devedor que preza a própria honra. Mas, reconheço, não chega a ser ameaça de morte, de sorte que não tem efeitos jurídicos a ponto de caracterizar o crime de ameaça, porque desprovida de potencial para causar "mal grave e injusto"

Ao contrário. Bem sabemos que a inclusão do nome do devedor em róis negativos ou de levar-lhe o título a protesto é, na medida do razoável, exercício legítimo de direito por parte do credor. 

Poderíamos, no extremo, pensar em cobrança vexatória, com repercussões no campo do Direito do Consumidor, mas não me parece o caso, como seria se fosse real a hipótese da cobrança gritada para todos os vizinhos ouvirem. 

Parece mesmo razoável, enfim, a ameaça. Sujar o nome do cidadão inadimplente, por óbvio, é um mal que se pratica contra o devedor, e grave, mas, nas circunstâncias, é do tipo "mal justo"

Sim, também sabemos todos que há justiça em certos males; ao menos, é essa a leitura que a lei faz da vida dos humanos a que ela se dirige. E ainda há quem acredite que inteligência artificial seja novidade dos tempos modernos!

O problema é que a cobrança é endereçada a mim, quando é certo que meu nome não é João Ataliba. Esse nome tem sido insistentemente utilizado em ligações que há muitos anos venho recebendo, das mais diversas fontes. E não adianta ter dito, todas as vezes, que eu não sou João Ataliba, não conheço João Ataliba, não faço ideia de quem seja esse sujeito... as pessoas que o procuram insistem em ligar para mim!

A insistência é tanta que chego a me perguntar se eu sou eu mesmo ou, quem sabe, não seja eu de fato esse tal João Ataliba.

Trago do batismo e do registro civil o prenome Luís. Fui chamado de Luisinho da dona Cida desde menino, Luisinho do Bar do Tota na adolescência. Até de Totó me chamaram, na escola, apelido dado por uma professora de Música –--  sim, sou de um tempo em que tínhamos aulas de Música na escola pública! –--, que eu odiei... 

Odiei o apelido e odiei a professora. E, porque odiei, pegou! Foi por pouco tempo, mas pegou, e passou. 

Depois, fiz Direito, fui vereador, e passei a ser chamado pelo sobrenome. Hoje, advogado de longa trajetória, me chamam, a meu contragosto, de "doutor", seguido do meu patronímico, que não é Lourenço, como o do tal João Ataliba. Muito menos "Lourenco", como o senhor, ou a senhora, escreveu.

Fico me perguntando que história de vida terá tido João Ataliba Lourenço, o sujeito que vocês insistem em cobrar por meu intermédio, crentes de que eu seja ele, ou que ele seja eu. 

Que apelidos ele terá tido na escola, no trabalho, na vida em comunidade? TalibaTalibinha, Talibão? Talvez simplesmente Binha, como um Ataliba que foi meu vizinho, amigo de infância, e que não era João, muito menos Lourenço. 

Será ele gordo, magro, negro, branco? Terá olhos claros como o azul do céu, esverdeados como os meus, ou pretos como uma jabuticaba? Cabelos lisos e longos com madeixas ou curtos? Pixaim? Crespos? Serão louros, negros ou já branqueados, como estes que me ornamentam o telhado que Deus me deu?

Até endereço vocês atribuíram ao Binha, ou Talibinha, rua "Professora Neuza Tereza", vila São Pedro, em Espírito Santo do Pinhal. Não conheço Espírito Santo do Pinhal. Imagino que seja uma cidade aprazível, a julgar por duas amigas agradabilíssimas que vêm de lá, a Maria Amélia e a Ana Eudóxia, a "Docinha". Olha que doçura! Mas essa rua –-- pesquisei no Google Maps –-- essa rua não existe! Eu não a localizei. Nem mesmo corrigindo o nome para o bom português ("Neusa" "Teresa", ao rigor das regras ortográficas vigentes, escrevem-se ambas com "s" em lugar do "z" que o senhor, ou senhora, usou).

Sei que, em geral, não se exigem muitos conhecimentos, sobretudo gramaticais, para quem quer enveredar pela promissora carreira de golpista –-- de que suponho tratar-se. Aliás, quanto mais capricharem no pecado do gerundismo, por exemplo, mais autênticos se tornarão, ao menos quando se trata de ligação telefônica. "Vamos estar transferindo", dizem os pobres funcionários, hoje ditos "colaboradores", de telemárquetin encarregados das ligações reais, mal e porcamente imitados pelos que pretendem dar golpes. 

Eles, os reais, de uns tempos para cá, vêm sendo orientados a incorporar um suave e sereno “tenha um excelente dia, senhor” ao final das ligações; imagine uma reclamação estressante, daquelas de discutir com o atendente em termos que deveriam ser ouvidos pelo dono da companhia; ao fim e ao cabo, com o resto do dia estragado, o enfurecido consumidor ainda é obrigado a ouvir da mocinha ou do rapazote o falso desejo de que tenha um excelente dia, senhor”

Convenhamos, todavia, é de se exigir que, por escrito, empresas do porte de uma Cepié Fiele adotem certos cuidados.

Enfim, a rua não existe, a conta de instalação não existe, provavelmente o tal João Ataliba Lourenço também não exista, e eu chego a pensar se é mesmo real a minha própria existência.

Prezado senhor, ou senhora Cepié Fiele. Estou lhe enviando esta resposta nem tanto para aliviar meu espírito, por conta da crise identitária em que sua mensagem me atirou, mas sobretudo para tentar evitar que o nome do meu amigo Binha –-- sim, já o tenho por velho amigo, em consideração aos tantos e tantos anos, às tantas ligações que venho recebendo em seu nome! –-- seja lançado no rol dos culpados, dos devedores, dos maus cidadãos que não honram seus compromissos, por razões que ninguém procura, nem quer saber. 

A condenação sumária é sempre um remédio salvífico à  consciência dos apressados juízes da vida alheia.

Quanto a mim, seja como for, o senhor, ou a senhora, já me lançou no rol dos espíritos atormentados pelas incertezas, dos que perderam a convicção quanto à própria existência. Não sei se terei remédio jurídico para situação tão desconfortável. Vou procurar outro advogado, porque não dou conta de demandas de caráter existencial, decerto da área dos Direitos Humanos, sobre o qual, confesso, não tenho grande domínio.

Atenciosamente,

Luisinho da Dona Cida, que não é João Ataliba Lourenço. Nem Lourenco.

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06/08/2024

Em Qual Fraude Você Prefere Acreditar?

Está dificil compreender o frenesi que tomou conta de significativa parcela dos oito bilhões de viventes sobre a face da terra em relação à Venezuela e à reeleição de Nicolás Maduro à presidência do país.

Mídia, centro, direita, extrema-direita e parte da esquerda do Brasil e do mundo aceitam como favas contadas que houve fraude nas eleições presidenciais da Venezuela e sequer por remota hipótese admitem a possibilidade de que as atas exibidas pelos opositores sejam, elas mesmas, frutos de fraude.

Eu me pergunto: o que essas pessoas -- desde parte da esquerda aos ponteiros da extrema-direita -- esperam que o Brasil, os Estados Unidos, o Papa, a ONU ou os extraterrestres façam? Que desconsiderem o que foi proclamado pelas autoridades constituídas da Venezuela, intervenham em assuntos internos do país vizinho, destituam Maduro do poder à força e em seu lugar coloquem Edmundo González, o Juan Guaidó da nova temporada?

Esse desejo é fruto da mesmíssima distopia que leva os bolsonarentos a crerem que, eleito Donald Trump presidente dos Estados Unidos, o Grande Irmão do Norte virá à "terra brasilis" e, quiçá pessoalmente, como um sonhado Rambo da política, desfará todas as acusações que pesam sobre o seu congênere dos trópicos, retirará o "Micto" de trás das grades, onde certamente estará em breve, e o fará sentar-se no trono real, então já não mais da presidência República, mas da monarquia refundada?

Ah, mas o governo brasileiro deveria ter reconhecido a oposição como vitoriosa! Com base em quê, cara pálida? Nos "documentos" apresentados pelos opositores? Será que já esquecemos das falas golpistas e das incontáveis provas de BolsoNero sobre a fraude das eleições brasileiras de 2022 jamais apresentadas? 

Em que se diferenciam, em credibilidade, a apuração realizada e proclamada pelas autoridades venezuelanas competentes e a documentação exibida pelas Corinas e seus aliados? Suspeita-se de fraude de um dos lados e se dá pleno crédito ao outro com quais suportes?

Os princípios internacionais da autodeterminação dos povos e da não-intervenção obrigam a que as demais nações do mundo respeitem os vereditos emanados das autoridades constituídas de quaisquer países. Desacreditar da palavra oficial de uma corte estrangeira ao ponto de negar-lhe os efeitos jurídicos é, em si mesmo, odiosa intervenção em assuntos internos. 

Ah, mas o Brasil poderia ao menos liderar um movimento de embargos econômicos à Venezuela. Sim, claro. E com isso contribuir ainda mais para o empobrecimento do povo vizinho e estimular que mais venezuelanos atravessem a fronteira e venham se somar aos que já se encontram do lado de cá. É isso mesmo que queremos?

Outra incompreensão é sobre o papel que Lula vem desempenhando, que lhe atrai críticas da esquerda e de todo o espectro à direita, que não compreendem sua índole conciliadora e sua postura de neutralidade, embora ele jamais tenha negado o bom relacionamento que procura manter com Nicolás Maduro e com qualquer chefe de Estado do planeta, da esquerda ou da direita, democrático ou com pendores ditatoriais.

Queriam os mais afoitos da direita que Lula de plano reconhecesse que houve fraude e desse como vitorioso o principal opositor de Maduro. No lado oposto, queriam que ele declarasse vencedor desde logo o sucessor de Hugo Chávez. 

Sem elementos para se posicionar, com convicção, de um lado ou de outro e, obrigado pela Constituição Federal do Brasil à neutralidade e ao respeito às decisões internas das autoridades venezuelanas, só lhe restava confiar e referendar o decidido. Com sua sabedoria de estadista, porém, por certo considerou que a comunidade internacional não teria a mesma postura e teve o tino de concluir que era necessário ganhar um tempo -- ele mesmo, o bom e velho deus Tempo, senhor da razão e dos enganos.

Foi por isso, creio, que Lula resolveu apelar para uma tal "entrega das atas", questão, a rigor, já superada pela Corte venezuelana, que ouviu todos os candidatos a presidente -- apenas Edmundo González, e justamente ele, se recusou a depor -- e proclamou o resultado definitivo. 

Esse hiato temporal proposto por Lula tem servido como uma ponte almofadada para que Maduro, toda a Venezuela e a comunidade internacional possam transitar tranquilos e confortáveis de um para o outro lado, aquele em que a nação venezuelana seguirá o curso normal da vida, com o mandato renovado de seu presidente. Tenha ou não havido fraude, é questão tormentosa que só o povo vizinho poderá resolver, com os meios que sua construção civilizatória lhe tenha proporcionado. 

Em 2018, o Brasil vivenciou uma situação parecida. O principal candidato a presidente fora encarcerado um ano antes, sem crime, nem prova de qualquer ilícito, por forças da direita malmente ocultas sob a toga do poder judiciário, para que não pudesse disputar a eleição. Avenida aberta, elegeu-se um pulha, ao custo de uma facada de autenticidade no mínimo duvidosa que serviu para humanizar o monstro caricato e retirá-lo dos debates. Uma fraude atrás da outra!

Desgovernado, o país ainda se viu obrigado a enfrentar, com centenas de milhares de dolorosas perdas de vidas humanas, a pandemia da Covid-19, e nem por isso ficamos aguardando socorro de nações estrangeiras ou forças extraterrenas (diferentemente dos bolsonarentos distópicos no pós-eleição de 2022). 

Encontramos a saída e resolvemos nós mesmos os nossos problemas. É só o que resta ao mundo em relação à Venezuela, confiar que esteja preparada para tecer a solução. 

Respeito é bom e todos gostamos.

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(Luís Antônio Albiero, de Capivari, SP, em Jacareí, SP, madrugada de 6 de agosto de 2024)

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