07/11/2022

Fênix e a Primavera

Não foi uma vitória qualquer. Foi o desfecho de uma sequência de vitórias que começou pela sobrevivência à fome e à seca, à miséria, à perseguição que lhe impôs a ditadura militar, a consecutivas derrotas eleitorais e perdas dolorosas no âmbito pessoal; ao assassinato de reputação que tentou impor-lhe a mídia, servil ao poder econômico.

Empreenderam-lhe uma perseguição implacável. Foi processado, condenado e preso sem crime e sem prova por um juiz ladrão, corrupto, parcial e incompetente. Com Supremo e com tudo, impediram-no de vencer em 2018, mas em 2022 não resistiram à sua força descomunal.

Sábio, ele compreendeu que era preciso unir os diferentes para enfrentar o antagônico, o fascismo em franco desenvolvimento.

Generoso, foi ao fundo do poço do ostracismo e de lá resgatou antigo adversário para ser seu vice. Inovou na arte culinária e, para garantir a comemoração, fez do chuchu a cereja do bolo.

Gênio, foi preciso no cálculo e venceu.

De pária do sistema, sagrou-se o salvador da Pátria, o redentor da Democracia.

Sem ele, não haveria vitória. Tinha que ser, qualquer outro não teria vencido, mas cada aliado, do vice aos adversários de primeiro turno, passando pela militância, por cada apoiador famoso que se empenhou, ou anônimo como este humilde escrevinhador, todos fomos fundamentais para o êxito. A vitória é nossa e é especialmente dele.

O triunfo de um e de todos deu nó nas vísceras intestinas que formam o cérebro de uma espécie animal bípede e mamífera, semelhante aos primatas, que, incapaz de se adequar ao ambiente democrático, chegou a bloquear com caminhões as rodovias de todo o país.

Democraticamente, eles clamam pelo fim da Democracia. Querem uma ditadura que possam chamar de sua e que lhes cale a boca, para nunca mais clamarem por coisa alguma.

Essa gente abilolada comemorou três ou quatro “prisões em flagrante” do ministro do tribunal eleitoral e não cessa de festejar cada vez que a tia do WhatsApp informa que, de novo, “foi confirmada a fraude”, da qual o Micto há tempos insiste em dizer que “tem as provas”.

Uma turba amalucada que não se acanha de cantar o hino nacional para um pneu, tenta segurar caminhão na unha bancando o Super-Homem e se ajoelha no asfalto molhado para rezar um terço puxado por uma religiosa de festa junina, versão feminina do padre de “Arakelmon”.

A patuleia acredita com fervor que o Micto está mictando à ré, “mijando para trás”, em seus raros pronunciamentos, mas “de mentirinha”, apenas para enganar o ministro ingênuo, o mesmo que não para de ser preso em flagrante. E vai ao delírio cada vez que ouve que o Micto precisa de 72 horas para dar o golpe – tempo que se conta a partir de cada novo anúncio.

Revoltam-se quando informados de que Paulo Freire será o ministro da educação do novo governo, mas se reanimam quando lhes contam que o finado educador pernambucano também foi preso. Em flagrante, claro.

Vão em multidão à sede do exército do Rio de Janeiro ou em porciúnculas diante dos Tiros de Guerra, como, para minha vergonha, fizeram ridículos conterrâneos de minha amada Capivari, para marchar como soldados cabeças-de-papel, bater continência aos meninos fardados a cada vez que hasteiam e arriam a bandeira e pedir intervenção militar, a que chamam de “intervenção federal” (cuidem-se, governadores!) em defesa – pasme, caro leitor! – da “liberdade de expressão”.

Alucinação generalizada, alienação coletiva, “remake” tupiniquim do Templo dos Povos, seita liderada por Jim Jones em 1978 que, iniciada nos Estados Unidos, teve seus ramos em terras de Pindorama (Belo Horizonte e favelas do Rio) e desfecho trágico na Guiana.

A cada amigo que vejo mergulhado nesse transe coletivo – que lamentavelmente não são poucos – indago: já chorou? Já esperneou? Já lambeu as feridas? Fez bem. Agora engula esse choro, cesse os soluços, respire fundo e se prepare para a próxima, que já tem até data marcada: 4 de outubro de 2026. Assim é na Democracia. Aceite, que lhe será menor a dor.

Podaram uma rosa, podaram duas, podaram dez, mas não foram capazes de impedir que a Primavera retornasse triunfante. Com ela, a ave fênix, de exuberantes penas vermelhas e garras douradas, ressurgiu soberana das próprias cinzas.

Lula está eleito, babaca!

(Luís Antônio Albiero, em Capivari, SP, em 7 de novembro de 2022)

De Facas e de Cebolas

Eva preparava o almoço quando viu, pelo vitrô da cozinha, Jesus em pessoa defronte à sua residência. Ouviu-o falar em paz e amor e viu-o multiplicar peixes e pães, saciar a fome e a sede dos que encontrava pelo caminho, levar dignidade, esperança, oportunidades e vida em abundância a mais de trinta milhões antes condenados à exclusão social ou a morrer de inanição. Assustou-se, porém, ao notar que ele estava acompanhado de uma gente preta vinda das favelas, de miseráveis maltrapilhos, prostitutas, ex-prisioneiros e homens efeminados. Sentiu medo. Descansou a cebola e a faca sobre a pia e telefonou à polícia. Jesus foi preso.

Ao cair da tardinha, viu o próprio Capeta na calçada oposta. Olhos avermelhados de sangue e portando um tridente, ostentava ele vistosos chifres e serpenteava exuberante rabo de dimensões extraordinárias. Cercado de homens brancos e bombadões que gritavam "mito, mito", ele fazia arminha com as mãos e se dizia o Messias. Encantou-se Eva com o que viu e ouviu e, no ímpeto de ir ao encontro do outro, cortou-se ao livrar-se da faca e da cebola com que preparava o jantar. Às lágrimas e com sangue escorrendo entre seus dedos, juntou-se à turba e elegeu o Capiroto presidente da República.

Não tardou para que a nação começasse a sofrer na pele o resultado da escolha maligna. E quanto mais escura a pele, maior o sofrimento.

Por vingança dos céus ou mera coincidência, viu-se o mundo tomado por uma peste que só no país de Eva arrebatou setecentas mil almas, a maioria porque o Trevoso optou por incitar os compatriotas a enfrentarem a moléstia de peito aberto, em aglomerações em seu louvor e sem máscaras. Ele falava em imunização de rebanho enquanto negociava vantagens indecorosas para adquirir vacinas a peso de ouro.

Fingia enfrentar o mal nomeando diversos ministros que fizeram da pasta um autêntico ministério contra a saúde. Um a um foram todos caindo, do maneta ao pesadelo em forma de general, até que só sobrasse... "Que droga!", resignou-se o Tinhoso à falta de melhor opção.

Em seu governo, nada era a favor da nação. A regra era ser contra. Contra tudo e contra todos. A favor, só da família presidencial.

Os ministros contra a educação também se sucederam, culminando com uma tríade de pastores que, por inegável inspiração cristã, pediam oferendas para si como ouro, incenso e mirra para que verbas fossem liberadas.

Houve ministros contra a cultura, os quais desnudaram a ópera bufa que foi o governo do líder das Trevas. Começou com uma encenação de orgulhar Goebbles, passou pelo pum de talco espirrado da bunda do palhaço, e assim foi mudando de mãos e de bundas até terminar em malhação. Não a do Judas, das mais celebradas festividades populares. Malhação do próprio histrião que só soube fazer pum, mictar e defecar durante todo seu escatológico reinado.

O Cramulhão criou o Ministério Contra os Homens de Cor, para o qual nomeou seu mais fiel capitão do mato. Para o ministério contra a Justiça escolheu o juiz ladrão que trocava sentenças por cargos.

Seu ministro contra as relações exteriores foi um lunático que bradava contra o globalismo, na defesa de que a terra era plana. Se bem que quem passou os anos todos no mundo da lua foi o astronauta, ministro contra a ciência e tecnologia. Dizia-se à sorrelfa no baixo escalão que ambos dividiam a condição de ministros das relações extraterrestres.

Houve uma ministra contra a família e contra os Direitos Humanos que descria da laicidade das goiabeiras e do Estado e agia para que meninos usassem azul e meninas, rosa, zelosa para que estas, se estupradas, deixassem crescer a barriguinha.

O ministro contra o meio ambiente empenhou-se em passar o trator e a boiada, incendiar florestas, extrair árvores, pedras preciosas e peixes impunemente, inclusive matar índios e jornalistas mal vistos, enquanto o povo se distraía com a peste.

O mais importante foi o ministro contra a economia, apodado Posto Ipiranga pelo presidente em razão de seu gosto insaciável por elevar o preço dos combustíveis dia sim, dia também. Sabia ele como bem aplicar suas próprias economias, as quais mantinha no exterior, resguardadas da corrosão inflacionária, embora vulneráveis às frequentes oscilações da moeda internacional que ele mesmo controlava.

Ao fim de quatro anos, Eva estava satisfeita. Considerava que o Coisa Ruim havia feito o que pode para enfrentar a pandemia. Afinal, ele não poupara combustível em frequentes motociatas que organizava em homenagem a si próprio e para festejar suas vítimas. O importante, pensava Eva, é que a pátria estava salva, estreme de extremados extremismos extremos, embora ainda restasse enfrentar a extrema-imprensa e a Corte Extrema.

Até que veio a notícia de que o parlamento pretendia instalar comissões de inquérito. O governo então anunciou o contra-ataque: criaria uma comissão para investigar os oposicionistas. Sua intenção era desvendar tudo que pudesse ser alcançado, desde quem matou um insepultável prefeito, passando pelo crime da rua Toneleros e pelo assassínio de Júlio César pelos senadores, até quem matou quem nos primórdios da humanidade, se Caim a Abel ou vice e versa. Foi então que Eva ponderou que, naquele universo machista e misógino onde e quando ainda só havia quatro exemplares da espécie humana, talvez ela não devesse ter-se deixado encantar pela serpente que servia de rabo ao Capiroto.

Súbito, Eva compreendeu de quem era a culpa por toda a desgraça que se abateu sobre o país, desde o dia em que escorreram lágrimas de cebola de seus olhos e sangue de seus dedos.

(LUÍS ANTÔNIO ALBIERO, em Jacareí, SP, madrugada de 7 de julho de 2022)