07/03/2020

Chora Mais

Acabei de rever o premiadíssimo documentário "Democracia em Vertigem", que concorreu ao Oscar, e confesso que me emocionei mais do que da primeira vez.

Dele, Pedro Bial, o intelectual do BBB, disse tratar-se de uma "peça de ficção". Se eu não tivesse acompanhado tão de perto os fatos políticos retratados, se eu fosse um estrangeiro a quem de repente fosse apresentado o filme, eu tenderia a concordar com o jornalista global. Duvido, porém, que o melhor dos autores de ficção de toda a história da Humanidade, de Homero aos contemporâneos, passando por Shakespeare e suas peças sobre a intimidade do poder, tivesse criatividade suficiente para elaborar um roteiro tão surreal como os recentes acontecimentos que vitimaram a democracia brasileira.

Estou no PT desde antes de sua criação, desde que li, numa entrevista à Folha de São Paulo em 1979 - eu, então com dezesseis anos, trabalhava num jornal de minha cidade - que o líder sindical que sacudia o Brasil e abalava a ditadura militar havia constatado que era insuficiente a classe trabalhadora se organizar para atender apenas os interesses de cada categoria profissional. Dizia Lula que era necessário pensar num partido político que efetivamente representasse a classe trabalhadora, pois só a tomada do poder seria capaz de implementar políticas em favor de todos, inclusive dos cidadãos desorganizados e alijados das relações econômicas. Sinto-me, portanto, corresponsável pela construção do sonho de um partido oriundo das camadas populares chegar ao poder - e isso independentemente de ter sido vereador por dois mandatos e dirigente partidário até hoje.

Já é quase uma obra de ficção a realização do sonho de tornar um homem do povo presidente da República de um país tão marcado por preconceitos. Reelegê-lo, então, parecia algo impossível, tanto quanto eleger duas vezes a primeira mulher a exercer o cargo - logo ela, que, acusada de terrorista na juventude, encarou com altivez os militares. Emblemática a foto dos seus inquisidores escondendo o rosto, enquanto a perigosa menina franzina mantém a cabeça erguida, destacada no documentário.

Ficcionais, igualmente, parecem os fatos que marcaram o golpe dos corruptos de 2016, como o vazamento de uma conversa entre senadores da República em que um deles afirmava que, para "estancar a sangria" das investigações de corrupção que Dilma Rousseff se recusava a interromper, o melhor a fazer era colocar o vice Michel Temer em seu lugar, "num grande acordo nacional, com supremo, com tudo". Que autor seria capaz de entabolar um tal diálogo com tanta criatividade? Basta ver que o renomado cineasta brasileiro José Padilha, a despeito da obra construída pela realidade, não foi capaz de compreendê-la e, na série "O Mecanismo", da Netflix, cometeu a desonestidade histórica de por essa frase, "com supremo com tudo", na boca de Lula! (Agora ele anuncia que dirigirá uma série baseada em Marielle Franco e eu temo que ele conclua que quem mandou matá-la foi Lula!).

Quer espetáculo mais surreal do que a vergonhosa votação da autorização para a abertura do processo de impeachment pela Câmara Federal? Aquela do "voto sim pela minha família, por Deus e pelo meu cachorrinho".

Tudo isso está friamente retratado no documentário de Petra Costa e é mesmo difícil acreditar que toda aquela sucessão de horrores tenha acontecido na vida real. "Uma obra de ficção", diz o jornalista da Globo que se acostumou a viver a realidade retratada no "reality show" que ele apresentou por anos a fio, sobretudo porque é sua obrigação funcional defender os seus patrões, os donos da emissora que "Democracia em Vertigem" desnuda como participe ativo do golpe. Aceitar a realidade - a realidade real - não deve estar sendo fácil a essa gente.

O documentário passa pelo desmonte da economia nacional pela Lava Jato - com destaque para o corajoso enfrentamento de Lula com Sérgio Moro, por ocasião do célebre interrogatório em Curitiba - e se encerra com a eleição bizarra de um sujeito bizarro, esse que se recusa a governar e demonstra maior aptidão ao papel de palhaço. Que só venceu a eleição graças a uma facada ainda muito mal explicada - a mim não convence a encenação - que causou comoção nacional, "humanizando" o apologista da tortura, e o retirou de qualquer debate em que suas "ideias" pudessem ser confrontadas com as de Fernando Haddad, isso tudo coroado com uma avalanche de "fake news" financiada via caixa dois por empresários igualmente apalhaçados, como o inacreditável Luciano Hang da Hawan. Ou seja, o PT só perdeu a eleição, que seria sua quinta vitória consecutiva, graças a um novo golpe, necessário para garantir o anterior, entremeados um e outro pela farsa da prisão e silenciamento de Lula, que teria vencido o pleito mesmo encarcerado.

O que mais dizem os repetidores do "mito" é que o PT não soube perder, seguido da frase surrada que dá título a esta crônica.

Hoje chorei revendo o documentário. Chorei, não por mim, que tenho a vida feita, que me proporciona um bom conforto, independentemente de quem esteja no poder. Chorei pelas famílias que foram desligadas ou estão na fila do bolsa-família. Chorei pelos que hoje estão desempregados e pelos que perderam o alento e já nem mais são computados nos índices de desemprego.

Chorei pelo fim do programa Minha Casa Minha Vida, pelos que tiveram que se mudar para as ruas e pelos que foram obrigados a voltar aos semáforos e às portas de igreja para pedir esmolas - tenho me deparado com essa situação até mesmo dentro de shoppings, supermercados e restaurantes.

Choro, sim, por você que pensa que debocha de mim mandando-me chorar mais. Choro por sua incapacidade de compreender a realidade em que você próprio está metido, choro pela ignorância hoje alçada a requisito para governar o país e adotada como base para políticas públicas de educação por quem sinceramente acredita que livros didáticos são "um monte de coisas escritas". Choro pela morte de programas de pesquisa científica, pelo fim do "Ciência sem Fronteira", dos programas de facilitação do acesso à universidade, pública e privada, pelo desmonte do ensino público.

Choro por ver o palhaço do Planalto assumindo cada vez mais essa condição, sob aplauso de um nada respeitável público que com ele se identifica, pelo caráter autoritário, truculento, pela sua ignorância orgulhosa e arrogante, pela sua incompetência, por sua confessada inaptidão para governar.

Choro por ver a cultura deste país, como mencionado por quem outrora foi a "namoradinha do Brasil" e hoje se diz "casada" com o presidente de pendores fascistas, reduzida ao pum de talco que sai da bunda do palhaço. Palhaço, no caso, que a nomeou para o cargo.

Eu choro, choro sim, enquanto você ri dessa palhaçada toda.

Ria, ria mais!

(Luís Antônio Albiero, em São José dos Campos, aos 7 de março de 2020)