Anela

(Para Veronica Stigger)

Antoninho Pavlov sentiu-se feliz por não estar gelada a água que lhe serviram. Bastava-lhe o friozinho na barriga. Sentado ao centro de uma mesa enorme, ao lado de figuras ilustres do mundo da psicanálise, tendo sob seu olhar perdido centenas de profissionais, estudantes e estudiosos do assunto, o conferencista disse de si para si que era mesmo um homem realizado.

Encontrava-se no Principado de Mônaco, num hotel de luxo, a convite da associação latino-americana de psicanalistas, para sua primeira conferência em terras europeias. Fora convocado a expor na mesa principal, no encerramento do encontro. Iniciou com despercebido nervosismo a palestra e rápido desfez as amarras da insegurança, que costumava terrificá-lo nesses momentos. Deslizou pelo tema com a habilidade de um esquiador a descer uma montanha de neve. O inverno europeu contribuía para a frialdade inicial. Fez-lhe bem a indesejada tepidez da água.

Formado em medicina, especializou-se em cirurgia plástica e se revelou exímio cirurgião. Notabilizou-se ao garantir perfeição estética a algumas celebridades internacionais e conquistou fama e clientes de toda parte do planeta. No auge da carreira, próximo de completar quarenta anos de idade, surpreendeu amigos e colegas ao tomar a decisão de abandonar a medicina e se dedicar à psicanálise.

A opção por abandonar a antiga profissão deu-se após uma epifania em que se lhe descortinou a consciência de que mais importante do que cuidar do corpo humano, sobretudo da sua estética, era assistir a mente das pessoas. Desde então, Pavlov publicou uma dezena de livros sobre o tema, com milhares de exemplares vendidos ao redor do mundo. Tornou-se referência na sensível área do conhecimento humano.

Não colhia frutos nas mesmas proporções dos tempos de cirurgião plástico, é verdade, mas julgava compensadores os resultados. “O ser humano é uma formidável máquina por dentro e por fora”, repetia em palestras. “Contudo, nada é mais encantador do que a mente, essa parte imaterial do corpo, o sopro de vida que movimenta o funcionamento do complexo mecanismo humano”.

Fazia já quase quinze anos desde que inaugurara seu consultório de psicanálise num vistoso prédio da rua da Consolação, defronte à entrada principal do cemitério, em São Paulo. Não tardou para que se repetisse o sucesso profissional anterior. Descontado o olhar econômico, pode-se afirmar que foi bem mais longe. Moveu-o a convicção de que, conhecendo a própria mente, as pessoas podem curar-lhe os males.

Em “Freud e o Suicídio”, sua obra de maior sucesso, Pavlov analisa o fenômeno a partir do fato curioso de que o psicanalista austríaco não se tenha dedicado a estudar a autoliquidação, desfecho trágico comum a alguns dos mais rotineiros dramas humanos que ele tão bem soubera decifrar. Partindo de Freud, o autor aprofunda-se no exame do que Durkheim denominara “suicídio racional”, que pode derivar de sentimentos como humilhação ou fracasso econômico. “É ocorrência bastante comum entre médicos”, conta no livro e repete em colóquios profissionais.

O impresso informativo e o cartão digital de promoção do evento, organizado pela Fundação Príncipe Albert II de Mônaco, traziam a imagem do psicanalista brasileiro em destaque. Era homem de traços agradáveis, olhos vívidos, rosto quadrático, cabelos pretos com madeixas que realçavam sua jovialidade, em contraste com esparsas mechas grisalhas que em boa medida lhe afiançavam a autoridade dos anos idos. Sob sua foto, o tema que lhe caberia abordar, “Suicídio: uma Decisão Racional?”.

O palestrante optou por centrar seu discurso na figura icônica de Sigmund Freud. Principiou contando que o pai da psicanálise, convidado a participar de um simpósio sobre o tema, em 1910, fora parcimonioso e escrevera apenas duas páginas a respeito. “Vejam só, justamente ele que, ao fim e ao cabo, se revelaria um autocida”, comentou, provocando risos tensos e encabulados.

Pavlov prosseguiu afirmando que “três mil pessoas se suicidam diariamente, segundo a Organização Mundial da Saúde, e cada qual o faz por variadas razões, umas para se autopunir, outras para pôr fim a sentimentos como vingança, inferioridade, culpa, desespero”. À medida em que estes vão-se tornando intoleráveis, explicou, “a pulsão de morte conduz o indivíduo a preparar o ato de autoextermínio, até que de fato ele o realiza”.

— O suicídio é tema que sempre me fascinou. Não é uma escolha do indivíduo, mas uma decisão imperativa. As escolhas vêm antes, a cada vez que ele tenta e desiste. Ele desiste porque escolhe continuar vivendo. Quando, porém, realiza o ato e põe cabo à própria vida, ele o faz porque o acúmulo dos sentimentos que o levaram até esse momento tornaram o desfecho inevitável. É uma decisão, sim, sem dúvida, mas que resulta de uma coerção irresistível, como se alguém lhe apontasse uma arma contra sua cabeça e lhe dissesse “ou me passa a vida ou morre”. Só que a voz que lhe pronuncia a ameaça vem de sua própria cabeça, sua mente adoentada, e a escolha por continuar vivendo já não é mais possível.

Findos os aplausos e a conferência, Antoninho Pavlov acompanhou alguns colegas ao glamuroso cassino de Monte-Carlo. Fazia parte da programação, que incluía atividades profissionais e, no tempo vago, turísticas e de lazer. Ao chegarem em frente ao suntuoso edifício, teve sua atenção atraída por uma gigantesca bola de cristal que jazia sobre uma fonte, no pátio em frente. Ao se aproximar do pé da escadaria, deteve-se a contemplar a majestosa construção do século XIX. Notou, acima da marquise, à esquerda e à direita, duas grandes estátuas de mulheres seminuas; no alto da torre, o relógio ladeado por outras duas esculturas, estas de anjo, que davam ao prédio aspecto de igreja. Tentou, sem êxito nem grande esforço, compreender o significado desses elementos.

Pavlov e colegas adentraram e, com o vagar de quem aprecia o ambiente, atravessaram um imenso salão praticamente vazio; caminharam pelos diversos ambientes, formados por colunas de sustentação imensas, e se detiveram a adquirir fichas de apostas. No trajeto, outras esculturas, quadros, afrescos, entremeados por máquinas de jogos eletrônicos e poltronas espalhadas por todo o ambiente. Alcançaram, enfim, o saguão das roletas, repleto de homens com aparência de abastados, acompanhados de mulheres em trajes sensuais e elegantes. Lá, o destino o agraciou com duas agradáveis surpresas.

Logo que se aproximou da roleta inglesa, pareceu a Antoninho ter avistado Anela, o grande amor de sua juventude. Ao tempo em que cursava medicina, apaixonara-se pela estudante de letras da mesma universidade. Era rapaz bonito e não foi difícil conquistar a atenção da moça. Iniciaram um namoro que durou quase dois anos.

Anela era muito, muito bela. Ele, um pobretão sonhador que tudo o que tinha a lhe oferecer era apenas um futuro promissor. Parecera-lhe que ela tivesse iguais ambições. Assim que terminou o curso, ela decidiu romper o relacionamento. Antoninho fez diversas tentativas de se reaproximar, sem sucesso, e o tempo encarregou-se de esmaecer essa possibilidade.

Desde então, convencera-se de que Anela o rejeitara porque o via como um fracassado, o pé-rapado que de fato era. A universidade era pública, o curso, gratuito; ainda assim, via-se obrigado a trabalhar nas horas vagas em atividades simplórias, como garçom ou atendente de balcão, em garantia de sua sobrevivência. Nessas horas, perpassava-lhe a mente que Anela tivesse vergonha do que ele fazia.

Por aqueles tempos difíceis, Antoninho Pavlov nutria confiança no futuro e tentava de todo modo convencê-la das certezas que o animavam. Queria-a parceira na construção desse porvir. Desfeito o namoro, porém, a vida incumbiu-se de conduzi-lo por caminhos que o distanciaram de vez da amada. O passar dos anos não foi capaz de apagá-la de seus pensamentos. Anela foi, de fato, a única mulher a quem amou em toda a vida.

Quando teve a visão à beira da roleta, não teve dúvida, era ela; os mesmos olhos amendoados, belíssimos, vivíssimos, os mesmos cabelos ruivos e encaracolados caídos sobre os ombros, as sardas nas faces, a covinha no queixo. Era Anela, com o frescor juvenil de trinta anos atrás! “Meu Deus, como é possível?”, pensou. A atmosfera idílica do lugar contribuía para que revivesse os bons tempos.

Antoninho olhou-a como se olha para quem se conhece desde sempre, sorriu-lhe como se costuma sorrir a alguém com quem se compartilham momentos íntimos, e a reação dela foi de assombro. A mulher fitou-o por um instante com deliberada frieza e baixou os olhos, desconfortável. Num ímpeto, ele caminhou em sua direção. Ela se encolheu como lebre espavorida e se escondeu entre os amigos.

Foi então que a realidade desabou sobre Antoninho. “Santo Deus, não pode ser Anela, é óbvio! Que idiota, eu… Trinta anos depois, não seria possível”. Sentiu vergonha ao ocorrer-lhe que a garota aparentava ter idade para ser sua filha.

Distanciou-se dos colegas com quem viera ao cassino e se aproximou do outro grupo, levado por indômita curiosidade. Acompanhavam a moça duas amigas e um rapaz. Antoninho dirigiu-lhes uma saudação em inglês. Uma das garotas, de traços orientais, apresentou-se em português e o parabenizou pela palestra. Eram jovens psicanalistas vindos do Brasil que o reconheceram da conferência. Cumprimentou-os com apertos de mãos.

Chamava-se Ângela a que lhe provocara a perturbação mental. De fato, era muito semelhante a Anela. “Idêntica, e se chama Ângela. Que coincidência!”, comentou consigo mesmo. Ela se mantinha calada.

— E você, o que achou da palestra, Ângela?

— Muito boa, doutor —, respondeu-lhe com voz sumida, olhando de lado para ele que, desconcertado, perguntou aos jovens se iriam arriscar a sorte.

— Não, só estamos observando — adiantou-se a de ascendência nipônica.

— Ah, pois então me observem! Será minha primeira vez e, claro, a boa e velha sorte de principiante prevalecerá.

Aproximou-se da mesa, apostou no treze e aguardou. O crupiê fez girar a roleta. A sorte de principiante não veio. Notou que as meninas riram, o rapaz riu, e ele riu também. Deteve seu olhar sobre Ângela. Ela lhe atirou de volta um sorriso refreado, porém, tão meigo e confortável que ainda mais o fez lembrar-se de Anela.

Respirou fundo, bebeu da taça de vinho que lhe servira o garçom e que trazia à mão com a elegância de um aristocrata e apostou em dois números; insistiu no treze e acrescentou o catorze. Perdeu novamente. Fez outras quatro tentativas, todas em torno do número treze, e perdeu. Desligou-se da realidade a tal ponto que não percebeu o momento em que Ângela e os amigos se afastaram. “Foram-se e nem se despediram de mim”, lamentou-se.

Quis partir em busca de Ângela, mas já havia posicionado a ficha sobre a interseção de quatro números, o treze e o catorze, o dezesseis e o dezessete. Pressentia que, de novo, não teria êxito e já desanimara de tanto e só perder. A prudência recomendava que esperasse.

O improvável aconteceu. Pavlov acertou. E continuou jogando, e acertou uma vez mais, e outra, e outra. No fim das contas, a sorte mais que lhe quintuplicou as economias de três décadas de carreira profissional. Um milhão de euros foi o prêmio total.

Apressou-se a ir ao caixa. Os colegas com quem viera ao cassino há muito haviam desaparecido e não testemunharam seu feito. Fez as tratativas, as operações necessárias para transferir o valor para sua conta, e perdeu muito tempo com as providências. Não mais localizou Ângela. Atravessou os saguões, subiu as escadas de tapetes vermelhos sobre os degraus, reparou nos lustres, nos vitrais, no teto decorado com imagens de pessoas nuas; foi ao terraço, de onde pode contemplar barcos atracados e a infinitude do oceano, mas não a viu. Teve a ilusão de que a reencontraria no hotel, quem sabe, ou no voo de volta ao Brasil. Lamentou profundamente que o destino não lhe houvesse conferido tal sorte.

No aeroporto de Cumbica, assim que desembarcou, concedeu a entrevista de caráter promocional que havia combinado com um amigo, dessas amizades de conveniência, repórter do jornal O Popular. Num aprazível café do aeroporto, entre um gole e outro de uísque, conversou com o jornalista esbanjando alegria. Bastou que o entrevistador ligasse o gravador e Pavlov desandou a falar como se estivesse num divã. Contou sua história de sucesso profissional e, levado pela euforia, mencionou seu amor por Anela, a visão de Ângela no cassino, o recente sucesso no jogo. “Corte essa parte”, pediu ao amigo, rindo. Pelo vidro que contornava o café, olhava insistentemente na intenção de encontrá-la entre os passantes.

A felicidade o envolvera de fato, tanto que ao chegar em casa, antes mesmo de desfazer as malas e descansar, acessou numa rede social da internet o perfil de Anela Franco. “Professora de literatura, Universidade Federal”, estava escrito ao lado do nome, em meio a outras informações pessoais. Não lhe interessou nada mais, apenas sua imagem, que ele ampliou para melhor contemplá-la. Estava bonita, embora já não espelhasse o esplendor de outrora.

Enviou-lhe uma longa mensagem privada em que fez juras de um amor resistente ao tempo e mencionou as saudades que dela sentia. Contou-lhe que já não era mais o pobretão de quando se conheceram, falou do sucesso na carreira profissional, do prêmio que acabara de conquistar, e relatou o encontro com a jovem psicanalista no cassino. “Era idêntica a você, um anjo que me trouxe muita sorte e que, como anjo, cumpriu sua missão e desapareceu sem deixar vestígios”. Por fim, expressou o desejo de se encontrarem.

A ex-namorada postou, em resposta, minutos depois, “olá, Antoninho. Parabéns pelas conquistas. Estou casada há vinte e oito anos com um professor, José; temos um casal de filhos, uma netinha a caminho, e eu amo meu marido e minha família.”

Antoninho Pavlov leu, releu, e releu várias vezes. Teve frêmitos de frio pelo corpo. Por minutos infinitos, manteve a mão direita apoiando a cabeça e repuxando os lábios para cima. Seu olhar morria sobre a resposta de Anela.

Embora fosse verão, um incômodo friozinho percorreu-lhe a região do abdome. Uma voz sussurrou-lhe à mente que levantasse. O doutor em psicanálise reconheceu a voz, conhecia-a havia muito tempo, e a obedeceu. Ele se ergueu e foi em direção ao guarda-roupa. Do fundo da prateleira mais elevada retirou uma caixa, tantas vezes contemplada, jamais aberta, em que guardava a arma adquirida havia mais de uma década. Estava intacta, e ele decidiu que era chegada a hora de cumprir o fim a que se destinava.

Aos primeiros raios de sol, o entregador lançou sobre o muro da casa um exemplar d’O Popular. Na capa, o jornal estampava uma foto imensa do famoso cirurgião plástico e psicanalista brasileiro. Ele ostentava o sorriso encantador que lhe exaltava a beleza e a juventude na flor dos cinquenta e dois anos de idade. Em página interna, a íntegra da entrevista concedida na véspera, em que Antoninho Pavlov falava sobre seu sucesso e o quanto era, de fato, um homem realizado.

(Luís Antônio Albiero, em Capivari, SP, aos 17 de novembro de 2024)

Publicado originalmente em Casa Literária (Substack)


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(Baseado em célebre anotação do escritor russo Anton Tchekhov, possivelmente projeto de um conto jamais escrito: “Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida”)

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Crédito da imagem: Wikipedia


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