20/07/2024

A "Picuirinha" de Meu Avô

Atriz de cinema? De novela? Não, nada disso. É muito mais importante! 

 
A bela moça da foto, provavelmente dos anos 50, é minha mãe. Ela deixou nosso convívio em 2010, após bem vividos 82 anos de idade.

Na infância, trabalhou no cultivo de cebola e batata em sítios de meu avô Roque, com minha avó Maria Augusta e meus tios Benedita, Antônio, Francisca, Luiz, Teresa e Luzia

Meninos, todos eles caminhavam quilômetros de estrada de terra desde o bairro Caraça, na zona rural de Capivari, para estudar no centro da cidade. Traziam os calçados nas mãos e só os calçavam quando chegavam à margem do córrego, já na entrada da zona urbana, onde lavavam os pés (vem daí o nome "lavapés", embora o termo tenha batizado apenas o congênere do outro lado da cidade), para assim chegarem na escola limpinhos, com a dignidade das pessoas simples do campo. Ela só pôde estudar até a terceira série, como todos os meus tios. 

O pai chamava-a de "Picuíra" (*), porque tão pequenininha. Contava-me ela que certa feita almoçava com o pai num restaurante próximo ao mercado municipal da cidade, onde ambos vendiam o produto da lavoura colhida, quando um casal paulistano ofereceu-se ao meu avô para levá-la consigo. Na capital, diziam eles, aquela menina de quatro anos de idade, tão bonita e de olhos verdes, certamente teria melhores condições de vida – ou, muito provavelmente, como demonstra a experiência, queriam-na para servir-lhes de escrava. Meu avô recusou, mas a oferta chegou a deixá-la preocupada, assombrada com a hipótese de ser retirada do convívio com a família. 

Ainda moça, enfrentou o desafio de trabalhar fora de casa, longe dos pais, em cidades distantes. Num tempo em que era tabu mulher ter um emprego, ela foi empregada doméstica em Capivari, em casa de uma família proprietária de uma farmácia no centro da cidade, emprego do qual partiu para Piracicaba, onde trabalhou na residência do maestro Petermann e foi metalúrgica na empresa Boyes. 

Tempos depois, a convite de amigas de Capivari que haviam ido trabalhar em São Paulo, foi empregada de um casal de idosos que residia num prédio da avenida Rebouças, próximo à Oscar Freire, na capital, onde sua maior alegria era ir às missas na Igreja Nossa Senhora do Brasil, na avenida Brasil, ali perto. Voltou a ser metalúrgica, dessa feita na indústria Villares, de São Bernardo do Campo, ao tempo em que morava em pensionato no bairro da Aclimação, na capital. 

Namorou meu pai Ildefonso (Nego) por dez anos. Casou-se quando viu iminente o risco de perder seu “italianinho" para outra... Acabaram vivendo juntos durante apenas cinco anos, pois meu pai faleceu precocemente, mal havia entrado nos quarenta. 

Viúva, sozinha, criou dois filhos pequenos – eu e minha irmã Eliana. Lutou com extremas dificuldades, trabalhando incansavelmente, ela e os filhos, no "Bar do Tota", e teve a sabedoria de nos estimular a estudar para não sucumbirmos às armadilhas da vida. Depois de viúva, ainda teve forças para ser faxineira no Banco do Brasil e na Caixa Econômica Federal, em Capivari. 

Juntos, levamos muitos tombos e, graças ao seu espírito guerreiro, sempre tivemos a força necessária que dela irradiava para nos levantarmos. 

Hoje ela jaz em seu descanso eterno. Deixou-nos por herança o exemplo de sua marcante generosidade, a alegria de sua gostosa risada, muito amor e a insuperável capacidade de resiliência que nos mantém em pé. 

Apparecida Feliciano Albiero, a Cidinha, a "Dona Cida do bar do Tota", a "Picuirinha" (*) do meu avô, foi uma gigante na vida. 

Saudades! 

Luís Antônio Albiero 
Capivari, SP

(*) A grafia correta é "piquira", "piquirinha". Optei pelo uso da letra "c", em lugar de "qu", por se tratar de palavra em desuso e para não confundir a sonoridade original.

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Este texto foi escrito em 28 de outubro de 2015, originalmente publicado no meu perfil Facebook , reescrito recentemente para o livro "Querida Mãe", da editora ComPactos, coletânea organizada pela estimada amiga Cleusa Slaviero.

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