31/12/2016

Os Estertores de um Desertor

Juanito deixou Cuba quando mal houvera completado vinte anos. Cedo avaliara que a vida lhe reservava algo mais emocionante do que passar sete, oito horas seguidas ouvindo inflamados discursos del comandante.

No ardor da rebeldia juvenil, chegou a esboçar uma ou outra investida contra o regime de Fidel, mas sucumbiu. Passou a alimentar o sonho de viver em solo americano, como alguns de seus amigos de colégio haviam ousado tentar, com êxito. Resoluto, seguiu-lhes os passos. Fez o perigoso percurso dos desertores e migrou para os Estados Unidos, onde permaneceu clandestino por muito tempo. Conveniências políticas, porém, facilitaram-lhe a vida, tornando regular sua permanência no país de Tio Sam, Tio Patinhas e dos Três Patetas.

Trabalhou com o afinco com que um latino-americano sabe trabalhar em terras ianques. Cresceu na profissão a ponto de montar negócio próprio, que lhe proporcionou uma pequena fortuna. Entregou-se às inteiras à sedução capitalista, o que o fez gozar prazeres que jamais teria tido em seu país natal. É verdade que se desinteressou pela política insular, mas manteve-se fiel ao anticastrismo juvenil.

Casou-se com uma compatriota, Regla, também fugitiva, que lhe deu cinco hijos. Juanito fazia à esposa constantes e sinceras juras de amor; porém, nunca foi verdadeiramente capaz de se ajustar às rígidas regras do matrimônio. Quando amigos expressavam desconfiança de suas múltiplas aventuras amorosas e lhe cobravam fidelidade, ele costumava sair-se com uma frase assaz enigmática:

- Soy fidel, pero no soy castro!

Tantas foram suas desandanças que um combinado de derrame cerebral e infarto do miocárdio veio colhê-lo ainda em pleno regozijo da idade do lobo. A vida tem dessas coincidências. Ao mesmo tempo em que Juanito agonizava incógnito num quarto de uma clínica particular de Nova York, os jornais pelo mundo afora estampavam Fidel Castro esboçando sorrisos ao lado de Hugo Chávez num hospital público de Havana, fingindo convalescença.

Pressentindo o desfecho indesejado, Juanito quis porque quis que lhe arranjassem uma bandeira de seu torrão natal. Não queria partir desta para melhor (nunca compreendera por que haveria de ser melhor estar a sete palmos do chão...) sem que primeiro pudesse demonstrar todo amor que ainda nutria pela pátria que o vira nascer. Queria, enfim, poder dar um beijo num estandarte de Cuba, antes que o instante fatídico pusesse tudo a perder.

Seus cinco filhos empenharam-se na busca do objeto do derradeiro desejo do pai. Em plena era Bush, porém, estava difícil encontrar um pavilhão cubano em território americano. Foi então que apareceu uma compatriota, una cubanita mui hermosa, que afirmava ter a tal bandeira tatuada nas nádegas.

Acertadas as bases contratuais, ela compareceu ao leito de Juanito no dia e na hora combinadas. Delicada e piedosamente, baixou as calçolas e deixou que ele lhe tascasse um beijo em seu belo traseiro. Foi um longo e apaixonado ósculo, naturalmente. Afinal, ele estava longe da pátria amada havia décadas.

Quando la chica levantava as calças com a dignidade de quem cumprira um dever cívico, imaginando que Juanito estivesse satisfeito, eis que este começou a suplicar-lhe:

- ¡Ahora vira! ¡Vira! ¡Por favor, vira-te!
- ¿¡Que pása!? – indignou-se a garota. ¿Usted no deseaba solo besar el estandarte de Cuba?

- ¡Si, si! – respondeu o ávido e impávido Juanito. ¡Pero ahora – explicou – deseo también dar uno patriótico beso en la face socialista de camarada Fidel!

A garota tanto que relutou, heróica, mas resolveu ceder às súplicas do moribundo e lhe deu enfim a outra face. Foi quando Juanito deparou-se com um portentoso charuto cubano devidamente aceso. Não resistiu. Foi fulminante.
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Publicado originalmente no blog "Crônicas do Falsíssimo", em 19 de fevereiro de 2007

A Inclusão Digital de Terêncio

Quando Terêncio completou quarenta anos, seu compadre Luís Fernando falou alto, em pleno churrasco de comemoração do natalício, diante da esposa, filhos, amigos, da parentada toda:

- Ê, Terêncio, é chegada a hora de te inscreveres num programa de inclusão digital!

Acostumado à lida dos pastos, ao trato de bezerros e de touros, homem que aonde chegava despertava a atenção por recender a estrume de vaca, Terêncio não entendeu. Teve um princípio de vergonha, mas venceu-a e perguntou:

- Mas que diacho é isso, tchê?

Luís Fernando não se fez de rogado e disparou, sem medir o vexame a que submetia o compadre:

- Inclusão digital, oras! Terás que ir ao médico, que introduzirá um dígito no miolo de ti!

Foi uma gargalhada geral. Enrubescido, Terêncio dessa vez engoliu a seco e deliberou não escancarar sua ignorância. Sua esposa Elis, entendida e constrangida, adiantou-se em concordar com o compadre e se comprometeu a agendar consulta com um especialista, que o próprio amigo indicara.

Na data aprazada, Terêncio compareceu ao consultório do Doutor Avamileno. Chegou até ali sem saber ao certo de que se tratava a tal inclusão digital. O médico, um bonachão duns sessenta anos, cabelos inteiramente grisalhos, que clinicava nos pampas desde o início da carreira, apareceu à porta da sala. Exibindo um sorriso maroto, fez com o indicador direito o peculiar movimento para chamar o paciente.

Terêncio entrou sozinho. Olhou suplicante para Elis, mas a mulher achou que seria constrangedor acompanhá-lo.

- Te abanque, índio velho! – disse o médico paulista, imitando o sotaque e o linguajar próprios do lugar.

Um tanto ressabiado, o paciente sentou-se diante da pequena escrivaninha. O doutor procurou tranqüilizar Terêncio, explicando-lhe que seria apenas um toque e o quanto o exame era importante para prevenção do câncer na próstata. Dito isso de maneira sucinta, ainda incompreensível para o criador de gado, recomendou a ele que fosse para trás do biombo e ali trocasse toda a roupa por um avental azul.

Assim fez o pecuarista. De volta, o médico pediu a ele que, mantendo-se em pé, dobrasse o tronco sobre uma maca, de modo que suas nádegas ficassem em posição que facilitasse o exame. Bundinha arrebitada e atônito, Terêncio imaginou que o médico fosse aplicar-lhe uma injeção, decerto para coleta de sangue. Não viu quando o outro meteu uma luva de borracha na mão direita e a ajeitou especialmente no dedo indicador, que esticou para conferir que estava em ordem. Tudo evidentemente foi feito às costas do paciente.

Quando o médico introduziu o dígito, Terêncio soltou um “uuu!” doloroso, mas sua reação foi abafada pelo toque do celular do doutor. Mantendo o dedo em riste no lugar onde fora introduzido, o especialista atendeu a ligação segurando o aparelho com a outra mão, abrindo-o com a boca e apoiando-o no ombro esquerdo. Era sua filha, que recentemente obtivera licença para dirigir.

- Oi, filha! Tudo bem, meu amor?

Terêncio mordia os lábios e se contorcia, incomodado com o dedo que parecia penetrar-lhe a alma. O médico seguia impassível.

- Sei sim onde fica esse salão de cabeleireiro, filha. Onde é que você está? Hmmm, deixe-me ver. Você está vendo à sua esquerda o prédio da prefeitura, não?

Ao dizer isso, o médico moveu levemente seu indicador para o lado esquerdo. Terêncio suportou, mas não pôde conter uma primeira lágrima.

- Ótimo, ótimo! Então, filha, você vai passar pela frente da prefeitura e virar na primeira esquina à direita.

O dedo do médico seguia as orientações que ele dava à moça, agora em movimentos bruscos. Outras lágrimas escorreram pelo rosto de Terêncio.

- Em seguida, você vai andar por duas quadras e virar à esquerda!

E lá foi o dígito do médico, primeiro num movimento de duplo vaivém, depois girando para a esquerda.

- Isso, isso. Depois, você vira novamente à direita...

E o dedo girou na mesma direção.

- ...dá uma volta na praça...

Nesse momento, o médico desenhou no âmago de Terêncio um círculo, dando com o dedo uma volta de 360 graus.

- ...segue por mais uma quadra...

Fez um entra-e-sai derradeiro.

- ...e pronto! Chegou!

Num momento de profunda ternura, despediu-se da filha dizendo o quanto a amava e pôs-se à disposição para novas informações. Desligou o celular, e só então percebeu que Terêncio, antes tenso, agora estava relaxado e suando a bicas. Com o pescoço torcido e a cabeça voltada para trás, disse ao médico:

- Ah, doutor, dá mais uma voltinha na praça! Só mais uma voltinha, tchê!

Elis jamais entendeu por que o marido passou a fazer visitas quinzenais ao Doutor Avamileno.

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Publicada originalmente no blog "Crônicas do Falsíssimo" em 18 de abril de 2007