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02/06/2018

Cortem Nossas Asas!

Os caminhoneiros frearam o país. Bruscamente. O desastre foi inevitável. O engavetamento em que todo o Brasil se meteu resultou em avarias ainda não precisamente avaliadas.

Para muitos, no entanto, pareceu à primeira vista ser a oportunidade de o país retomar a rota da qual se desviou por força do golpe dos corruptos de 2016. Para outros, a chance de darmos ré até, pelo menos, o ano de 1964, com alguns militares mais afoitos já acenando com as baionetas pelo retrovisor.

O fato é que o país foi tomado de um misto de desespero e esperança – um e outra em doses excessivas. O que se viu, no entanto, foi uma sucessão de fatos hilários, que já descrevi na crônica “Febeapá Número 3” (publicada apenas no Facebook, nesta mesma página “Crônicas & Agudas”), um verdadeiro “festival de besteiras que assolam o país”, cuja sigla (“Febeapá”) dá nome a duas obras de Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do jornalista carioca Sérgio Porto, publicadas nos anos 70.

A manifestação dos caminhoneiros, por exemplo, jamais seria tolerada por um governo de militares. Seria reprimida duramente pelas forças policiais.

É um contrassenso manifestantes, que parecem prezar pelo direito de expressão, reivindicarem intervenção militar. É algo tão surreal como um liberto clamar para ser escravizado, um pássaro implorar para que lhe cortem as asas, um leão pedir de joelhos para que o enjaulem num zoológico, um homem livre rogar que o mantenham encarcerado.

Uma pessoa querida me enviou um vídeo em que um ator com cara de tiozão reaça bradava contra a classe política, contra suas "mordomias", e convocava para um grande ato na avenida Paulista em favor dos caminhoneiros, coisa de "um milhão de pessoas". Entusiasmada, ela dizia que deveríamos compartilhar o vídeo ao máximo.

Ao ver a imagem do ator, já fiquei desconfiado. Mesmo assim, fui até o fim. E acabei jogando um balde de água gelada na euforia da companheira.

O cara não fala abertamente em intervenção militar, mas deixa suficientemente clara sua posição nesse sentido. "Está nas entrelinhas”, disse eu a ela. Ele mencionava destituição ou renúncia de “toda a classe política” e completava dizendo que “pelas urnas não dá mais”...

Perguntei a ela quem é que substituiria "toda a classe política"? Importaríamos governantes da Europa? De Marte? A fala é sedutora, é contra os privilégios, contra os desmandos, contra a corrupção. Em 1964 foi assim também. Acabamos de passar por algo semelhante em 2016, com o impeachment.

E como é que "o povo" iria governar? Quem seria o líder? Como seriam escolhidos os ocupantes dos postos chaves das administrações, desde o governo federal até cada município do país?

Diante de minhas ponderações, ela me disse que talvez Lula pudesse ser esse líder. Eu, lulista de carteirinha, continuei: "Pois é. Mas como? Por aclamação? Ele se tornaria um rei?”

Não existe saída fora da Democracia. Por isso é necessário focar incansavelmente na defesa do estado democrático de direito, no respeito à Constituição, à soberania da vontade popular, ao voto.

Quando Lula se entregou ao invés de fugir, de exilar-se numa embaixada qualquer, mesmo tendo certeza, mais do que ninguém, de sua própria inocência, que recado ele nos deu? Que, chova ou faça sol, temos de respeitar as instituições e brigar por nossos direitos dentro das leis, num ambiente em que impere a legalidade. Contra as iniquidades, contra o arbítrio, nós temos que lutar sempre pelo cumprimento das regras jurídicas democraticamente estabelecidas.

De mais a mais, segui ponderando à minha interlocutora, os políticos que aí estão são reflexo direto da nossa sociedade. Se eliminarmos todos eles, se os levarmos todos de uma só vez a câmaras de gás – como parece que é o desejo insano de grande parte das pessoas –, imediatamente teremos de substituí-los. E na mesma imediatidade os substitutos se tornariam o quê? “Políticos”, ora essa! Ei-los aí novamente, extraídos do mesmo povo, que com igual rapidez reproduziriam os mesmos defeitos, as mesmas mazelas, pois, sendo eleitos ou escolhidos por uma inteligência suprema, eles são todos nós!

O que precisamos é aprimorar nossas instituições, aprimorarmo-nos todos como seres humanos, até que um dia, lá distante, atinjamos o ponto ideal.

"Vai demorar”, disse eu a ela. “Muito”, enfatizei. “Décadas. Séculos!", concluí.

Ela refletiu, lamentou não ter percebido as intenções contidas no vídeo, lastimou já o ter enviado para muita gente e me agradeceu. Só me restou dizer à companheira: "acontece!..."

O movimento serviu, pelo menos, para a queda de Pedro Parente, desde ontem não mais presidente da Petrobras, mentor de uma política de preços nociva aos interesses da nação brasileira.

Assim sendo, fé em Deus e pé na estrada!

(LUÍS ANTÔNIO ALBIERO, advogado em Americana-SP, ex-vereador pelo PT de Capivari-SP de 1989/92 e 2001/04).

01/06/2018

FEBEAPÁ Número 3

É o novo Febeapá, título dos livros de crônicas do saudoso Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do escritor e jornalista carioca Sérgio Porto, falecido em 1967, acontecendo espontaneamente na vida real, à revelia do seu potencial autor.

Refiro-me à sequência inesgotável de fatos hilários produzidos pelos personagens do Golpe de 16, desde a patética sessão da Câmara em que os deputados corruptos e parentes de corruptos votavam para derrubar Dilma Rousseff "por Deus, pela família, pelo coronel Brilhante Ulstra, pelos corretores de imóveis e pelos motoboys" até os mais recentes candidatos ao protagonismo de uma pretensa derrubada de Temer. Um novo e estranho golpe a seis meses de uma nova eleição.

Hoje vi um vídeo em que um grupo de manifestantes, autointitulados "pelotão dos caminhoneiros", foi a uma base militar no Rio Grande do Sul entregar aos milicos os seus caminhões, antecipando-se à ordem dada pelo ocupante da Presidência da República, com direito a perfilamento e a bater de continência dos novos soldados, autênticos voluntários da pátria. A espécie humana não encontra mesmo limite à parvoíce.

Tenho recebido uma profusão de áudios e vídeos em que supostos capitães e coronéis desafiam a autoridade de seus superiores, inclusive e principalmente do chefe supremo das forças armadas, um dos papéis constitucionais reservados ao presidente da República. Anoto que a Constituição não distingue entre presidente legítimo do usurpador com foros de legitimidade. Insubordinação é algo inadmissível no meio militar, em que impera a hierarquia. Em tempos de governo raquítico, porém, toda esdruxularia é possível.

Mas há mais. Nas gloriosas redes sociais que, segundo Umberto Eco, escritor italiano morto em 2016, deram vez e voz à imbecilidade, não faltaram manifestantes decepcionados com a traição do Exército brasileiro à sua tão nobre causa, a ponto de chamarem os comandantes de "comunistas"!

Em outro áudio, alguém informa a todos os caminhoneiros que Michel Temer havia acabado de assinar "uma liminar" determinando isto ou aquilo. Ora, eu nunca soube que Temer fosse juiz ou que presidente concedesse liminares. Detalhe: ele teria assinado o tal documento "em conjunto com todos os deputados federais e estaduais". Deve se tratar de uma lista telefônica ou algo parecido, imagino.

E há até mesmo um áudio em que um figurão da República - ora um certo deputado federal, ora o próprio Carlos Marum - grava uma mensagem no WhatsApp contando a um amigo detalhes da estratégia do governo para enfrentar os caminhoneiros, mas adota o extremo cuidado de fazer uma importante ressalva logo no início: "não deixe vazar este áudio!". Sinto informar, ministro. Vazou!

Agora acabei de receber mais uma mensagem, em que algum manifestante - suponho que seja, pois o movimento, como nas jornadas de junho, peca pela ausência de um líder, um interlocutor autorizado a falar em nome do conjunto - pede a renúncia do presidente e de "todos os ministros de Estados". Assim mesmo, no plural. Com um adendo: "em todas as esferas". Esferas de governo, quero crer. Com certeza inclui a totalidade dos ministros estaduais e, se minha imaginação não estiver indo longe demais, também os bravos ministros municipais...

Há quem peça a renúncia ou destituição de todos os cargos, eleitos ou não - do presidente da República e congressistas aos vitalícios ministros do Supremo Tribunal Federal, com direito a citação dos prediletos dessa turba ensandecida, Lewandowski e Toffoli, além de um certo "beiçola" (alguém tem ideia de a quem o manifestante possa estar-se referindo? Minha imaginação esgotou-se). O passo seguinte, creio, será importarmos políticos da Europa, quiçá marcianos.

Tem até um vereador do PT, aqui da região de Campinas, que fala por vinte minutos aos caminhoneiros e, em dado momento, depois de chamar Temer de "usurpador", pois "roubou o mandato", ameaça derrubá-lo também e lembra que "nós tiramos o Collor, nós tiramos a Dilma!" Do PT! "Chose de loc", diria Sebá, o nordestino exilado em Paris, personagem do Jô Soares nos anos 70.

Sem contar o próprio Temer em pessoa que, recentemente, em solenidade oficial, anunciou o novo lema de seu governo: "o Brasil voltou, vinte anos em dois". A vírgula não prejudica a meia confissão. Meia porque o país voltou pelo menos uns dois séculos sob sua batuta.

Stanislaw Ponte Preta, vivo fosse, teria um farto material para escrever, sem grande esforço de criação, novos volumes da sua série de Febeapás.

A propósito, Febeapá são as iniciais de "Festival de Besteiras que Assolam o País". Umberto Eco poderia escrever o prefácio. Estivesse vivo também, claro.

(Luís Antônio Albiero, advogado em Americana-SP, ex-vereador de Capivari-SP pelo PT, palpiteiro de Facebook)