Faltavam segundos para as sete da noite quando Cainã viu surgir na tela do computador mais uma ligação a ser feita. Seria a última do dia, pois seu turno chegava ao fim. Estava ansioso por ir embora e odiou a inserção desse novo número de telefone que lhe fez a pessoa sem rosto que lhe supervisiona o trabalho, passa-lhe ordens e lhe dá as broncas por metas não atingidas.
Enquanto tocava e ele, dedos cruzados, torcia para que o destinatário não o atendesse, pôs-se a reparar nos colegas. Todos expunham na fisionomia, nos gestos, na pressa, o cansaço de mais um dia de dissabores insólitos.
Odiou mais quando do outro lado alguém o atendeu.
— Senhor José Fanzine? — indagou Cainã, com voz honestamente simpática.
Uma voz de homem respondeu, serena:
— Boa tarde. Pode falar.
— Ótima tarde, senhor…
Cainã mal iniciou o discurso treinado e foi interrompido pelo interlocutor:
— Qual o seu nome, por gentileza?
— Cainã, senhor. Falo em nome da…
— Cainã! Bonito nome. Indígena, presumo. Exala o frescor da natureza. Que bom que você ligou, Cainã. Estava mesmo me sentindo solitário, precisando de alguém para conversar.
— Que bom, senhor José. Eu falo em nome…
— Eu sei, eu sei. Você fala pela empresa Concentro, em nome do banco Santo André. Você já deve ser o décimo quinto que me liga hoje.
— Eu preciso que o senhor me confirme o número de seu…
— CPF. Vamos pular essa parte. Como eu lhe disse…
— O senhor é mesmo José Fanzine?
— De que adiantará lhe dizer que não? Só hoje, foram quinze ligações. Quinze! Veja que eu neguei cinco vezes mais do que Pedro a Cristo, mas não adiantou. Cá está você! Vocês insistem em me ligar. Há pouco, ligou-me um Alfonso.
Cainã olhou em volta, os colegas retiravam fones de ouvido e fios da cabeça, alguns já perfilavam diante do computador que serve de relógio de ponto eletrônico. O sujeito do outro lado da linha prosseguia, indiferente:
— Até semana passada, era outra empresa, uma certa Alma Viva, ou Vivalma. Convenhamos, o nome era mais simpático, mais interessante do que Concentro. Muito prosaico, este. Alma Viva, ou Vivalma, tinha ao menos um quê de poesia. Era mais “versaico”, se me permite um neologismo; mais cheio de vida.
— Senhor, eu vou estar precisando checar seus dados.
— Compreendo, Cainã. Mas foi você quem me ligou, e você tem todos os meus dados. Aliás, tem os dados desse José Fanzine, Pazini, Magazine… enfim, desse pobre coitado em quem vocês me transformaram.
— Senhor, vou estar anotando aqui que…
— Não vai adiantar, meu caro Cainã. Agradeço sua boa vontade, mas eu já solicitei umas quatrocentas e trinta e sete vezes que riscassem meu número do seu caderno, e não adianta! — disse, com voz calma, arriscando-se a cantarolar Risque, de Ary Barroso. — Você vai registrar, e eu não duvido disso; vai desligar e, dez minutos depois, outro me telefonará com igual discurso pronto. “Ótimo dia, senhor”, ele me dirá. A propósito, interessante essa transformação. Até uns tempos atrás, vocês eram treinados para desejar “bom dia”, “boa tarde”, como manda e sempre mandou a boa educação. De repente, as empresas de teleatendimento deram um salto de qualidade, um “apigreide”, como se diz em línguas estrangeiras, e atualizaram essa expressão de desejo. Passaram a nos dizer “ótimo dia”. Ainda hoje me ligou uma moça, sua colega dessa mesma empresa, simpática como você, a Ismália. “Tenha um ótimo dia, senhor!”, ela me disse, depois de me fazer a mesma cobrança. Como eu quis conversar, como faço agora com você, ela bateu o telefone e me deixou falando sozinho. Que ótimo! O treinamento tem funcionado, sem dúvida, mas o resultado é horrível. Soa falso, é irritante.
— Senhor, eu… grouuouo… gruoouou…
— Cainã, querido. A ligação ficou péssima, de repente. Quer ter a bondade de repetir o que disse, por gentileza?
— Perdão, senhor. Um minutinho, vou ajustar… Agora, sim. Eu estava lhe dizendo que entendo o senhor e que vou estar fazendo uma anotação, mas sugiro que o senhor entre em contato com o banco…
— Cainã, simpático Cainã! Bondade sua, e agradeço pela sugestão, mas vou lhe dizer, vou dizer a vocês, pela quadricentésima trigésima oitava vez — e seguiu falando com a calma inverossímil das pessoas dotadas de paciência inesgotável. — Eu não sou José Fanzine! Eu não faço ideia de quem seja esse pobre-diabo que, sem querer, anda me pondo em crise de identidade. E não vou perder meu tempo e meu humor para ligar para um banco para dizer que eu sou eu e que não sou outra pessoa! Até porque, com certeza, com pessoa é que não vou conseguir falar. Você sabe disso melhor do que eu. Uma voz de robô me atenderá e me recitará um rosário de números, “disque um para isto, disque dois para aquilo”, depois “digite seu CPF”, e nesse diapasão jamais chegarei a ser atendido por um ser humano, como você. É incrível que, na hora de cobrar, os bancos optem por seres humanos.
O jovem de vinte e dois anos, cabelos longos, olhos esverdeados e compreensíveis dificuldades com a língua pátria era generoso e educado e não quis fazer desfeita ao homem que o atendera de modo tão inesperado e, de certa forma, não lhe faltara com a gentileza.
— Senhor, vou precisar estar encerrando…
— Cainã, estimado e compreensivo Cainã. Sabe, eu trabalho em teleofício, em romiófis, como se diz em línguas estrangeiras, em minha própria casa. Passo os dias solitário, sem ter um único colega com quem eu pudesse definir, entre um cafezinho e outro, as soluções para os grandes problemas da humanidade. Confesso que até gosto dessas ligações, dessas cobranças que vocês insistem em me fazer, por mais perturbadoras que sejam. É a chance que tenho de dialogar com alguém, entende? A propósito, você assistiu ao jogo de ontem, do Palmeiras…?
O telecobrador riu e explicou que não curte futebol.
— Ah, que pena. Achei que poderíamos entabular uma rodada de debates sobre o jogo de ontem, a roubalheira que foi...
— Lamento, senhor. Olha, eu poderia…
— Sei, sei. Você tem outras ligações a fazer e eu estou apenas tomando seu precioso tempo. Mas vou lhe fazer mais esta confissão: é proposital. É a lei de Talião, já ouviu falar? Quem com ferro fere, olho por olho será ferido. É o meu troco, dente por dente. Vocês acham que eu tenho tempo para ficar recebendo ligações, cobranças por alguém que não sou e nem conheço. Minha arma é tomar o seu tempo! Pela natureza da sua atividade, suponho que o seu tempo valha mais dinheiro do que o meu. Afinal, sabemos de antemão que comigo você não terá êxito, pois, como venho lhe dizendo, não faço ideia de quem seja esse tal José Fanzine. Já se você estivesse cobrando de outro, quem sabe...
O sujeito não queria deixar Cainã respirar, pois a um vacilo, o cobrador desfaria a ligação.
— Sabe que seus colegas já me ligaram até oito horas da manhã de sábado? Várias vezes. Eu, querendo dormir até mais tarde… Sábado! Dia do Senhor, e não dia de sim-senhor-não-senhor. Essa empresa para a qual você trabalha, assim como a anterior e as demais, são todas impiedosas! Onde já se viu acordar alguém às oito horas da madrugada, num fim de semana? Onde já se viu obrigar um trabalhador honesto e dedicado como você a cobrar outro em plena madrugada de um sábado?
— Perdoe-me, senhor, mas vou desli…
Cainã interrompeu a ligação antes de completar a própria frase. Com destreza, retirou fios e fone das orelhas e, num salto, estava batendo o ponto. Dos colegas de turno, já não havia mais ninguém.
Na rua escura, um vento gelado cortava-lhe os ossos. Correu em vão para pegar o ônibus, que saía do ponto lotado. O motorista não atendeu ao seu sinal. O próximo só viria uma hora depois e ele decidiu caminhar. Enquanto andava, seu celular tocou. Era um telecobrador, de uma empresa concorrente, que lhe cobrava um valor qualquer. Cainã desligou.
Ao atravessar a ponte, parou para contemplar o reflexo do luar sobre as águas calmas do rio. Olhou para o céu e se encantou com a lua cheia. Cainã desejou alcançar a lua do céu e calculou que, para tanto, a lua do rio haveria de servir-lhe de caminho.
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Luís Antônio Albiero
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