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06/04/2018

O Drible da Vaca

Não foi por vinte centavos que o povo foi às ruas em 2013. Nunca foi para combater a corrupção que tiraram uma presidenta honesta do governo para por em seu lugar Michel Temer e sua ávida e insaciável quadrilha. Sempre foi pelo preconceito, pelo ódio de classe. E essa hipocrisia ficou escancarada no julgamento desta quarta-feira, 4/4, sobretudo no voto vaivém da ministra Rosa Weber, aquela que vota girando conforme bate o vento, como biruta de aeroporto. Foi o espetáculo mais deprimente da História do Poder Judiciário brasileiro, transmitido ao vivo, em rede nacional, uma vergonha exposta ao mundo todo.

“In claris cessat interpretatio”, diziam os latinos, e a Constituição é suficientemente clara, cessando qualquer necessidade de interpretação, ao estatuir, no art. 5º, inc. LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Ora, trânsito em julgado é um momento preciso do processo, que se dá quando não cabe mais recurso, ou seja, quando enfim esgotados todos os recursos cabíveis. Nesse momento, um serventuário certifica nos autos que no dia tanto de tanto “o acórdão (ou a sentença) de fls. transitou em julgado”. A partir daí, não há mais o que fazer e o condenado pode ser levado à prisão para dar início à execução da pena.

Há hipóteses legais de prisão antes desse momento, mas são prisões em caráter excepcional, a prisão em flagrante, a temporária e a preventiva. Para cada uma delas, há requisitos que devem ser observados e são todas provisórias. O requisito para que alguém seja preso em definitivo, ou seja, para cumprimento da pena, é que a condenação haja transitado em julgado e ponto final. É o que está na Constituição!

O ministro Luís Roberto Barroso, do alto de sua intelectualidade cosmética, chegou a mencionar, em tom crítico, que por vezes “as palavras perdem sentido”. De fato, parece mesmo que o ministro ainda não encontrou o sentido de palavras tão singelas como a expressão “até o trânsito em julgado”. Sem culpa formada em definitivo, ninguém pode ser preso a título de cumprir a pena.

A sempre espantada ministra Rosa Weber – mais assustada do que nunca, decerto por conta da intensa pressão que lhe fez a mídia e da ameaça do comandante do Exército – ofereceu seu voto embrulhado em uma retórica dúbia que lhe permitia encaminhar-se para qualquer lado. Um voto “primoroso”, segundo a ironia e o cinismo do colega Dias Toffoli. Em essência, Rosa Weber disse que é contra a prisão em segunda instância, mas negou o habeas corpus ao ex-presidente em prestígio ao tal “princípio da colegialidade”. Votou como tem votado na Turma da qual faz parte, acompanhando feito “maria-vai-com-as-outras” os demais colegas, comportamento que repetiu mesmo reconhecendo que o plenário é o local apropriado para que a Corte estabeleça novos rumos e, portanto, cada ministro tenha ali a oportunidade de expressar seu posicionamento com liberdade. Como a água que gira em círculo, mas sempre vai pelo ralo, ela fez literalmente um raciocínio circular. Penso A, mas voto B porque há uma maioria que vota assim, embora se hoje eu votasse A, como amanhã votarei, hoje mesmo haveria maioria na direção de A. Uma excrescência, enfim, que revela apego a um formalismo irracional e desumano, justamente por quem jura que não é adepta da “forma pela forma”.

Fico imaginando a ministra, findo o “jogo”, concedendo entrevista ainda no “gramado”, tentando explicar como foi que fez esse golaço. Diria ela, repetindo um jogador do XV de Piracicaba nos anos setenta: “fiz que fui, mas não fui e acabei ‘fondo’”. Uma espécie de “drible da vaca” – e que me perdoem as bovinas se as ofendo.

Nesse imbróglio jurídico, repetiu-se aquilo que na mesma sessão o ministro Barroso disse recusar-se a fazer parte. No país dos “delinquentes ricos”, ao fim e ao cabo ele e a maioria do Supremo mandaram para a cadeia o menino pobre de Garanhuns, primário e dono dos melhores antecedentes possíveis. É o que acontece diariamente, Brasil adentro. Prisão por um crime que o acusado não cometeu, corrupção passiva sem propina, sem ato de ofício, sem provas, baseada apenas em delação. Enfim, uma condenação teratológica, a teratologia (monstruosidade) que Luiz Fux disse não ter vislumbrado nos autos.

A direita hoje festeja porque pensa ter alcançado seu objetivo. Depois de quatro derrotas seguidas, arrancou à força a presidenta legitimamente eleita pelo povo e agora, por faltar-lhe um candidato minimamente competitivo, imagina ter tirado do jogo o craque que tanto a amedronta. Quer ganhar por “WO”, sem adversário em campo. E se orgulha desse vexame.

(Luís Antônio Albiero, advogado, ex-vereador de Capivari pelo PT em 1989/92 e 2001/04)