25/03/2025

Solidariedade cosmética

O salão de beleza fervilhava. Os cabeleireiros, uma moça de trinta e poucos anos e três rapazes mais jovens, esmeravam-se nos cortes e penteados. Cada qual atendia uma cliente, cujos maridos ou namorados esperavam sentados no espaço de entrada do estabelecimento, servindo-se das revistas e dos cafés postos à disposição. Uma seleção de músicas suaves envolvia o ambiente, embora abafada pelo falatório do lugar. Ainda havia três outras senhoras aguardando a vez, acompanhadas dos respectivos parceiros. Era um vozerio ensurdecedor num espaço pequeno, incompatível com o tanto de gente. 

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Na parede, logo acima de um dos grandes espelhos, havia uma frase, decerto com finalidade motivacional: “Uma mulher que corta o cabelo está prestes a mudar sua vida”. Vinha com assinatura da autora, Coco Chanel. 

Reprodução agência Brasil

A decana das clientes era a mais vaidosa. “Começaram a aparecer uns cabelos brancos aqui no meio”, dizia, preocupada. Pablo, o profissional de cabeleira azulada que a atendia, tentou ser agradável:

— Cabelos brancos são raios de sabedoria.

A velhota emendou:

— Cãs não fazem o ancião. Às vezes só revelam pessoas que envelheceram em vão.

— Que chique! Está inspirada hoje, hein! — observou Pablo, mantendo tesoura e pente suspensos sobre a cabeça da senhora.

Acima do espelho defronte o qual se encontravam, havia a frase “Seu cabelo é o vestido de festa que você nunca tira. Jo Robertson”.

— Os canalhas também envelhecem. Rui Barbosa — gritou do local de espera o marido, ele mesmo já avançado em anos, com a sapiência empírica de quem fala do que bem conhece.

— É uma frase budista, querido! — explicou a esposa em relação à que ela mesma havia citado.

— Aaaah, Budaaá! A-mô! — extasiou-se Hanri, o cabeleireiro de bochechas róseas e tatuagens que lhe cobriam braços e pescoço.

— Pinto os cabelos de preto para os encontros amorosos e de branco para as reuniões de negócios. Aristóteles — retrucou o idoso, em tom de galhofa, expressando ares de safadeza.

— Aristóteles? — estranhou o mais jovem dos cabeleireiros, um rapazola geralmente calado. Era o único cujo espelho não ostentava frase alguma. Em sua mesa de apoio, havia um modesto porta-retrato com a imagem de Sócrates, o filósofo, no qual ninguém jamais houvera prestado atenção.

— Aristóteles Onassis. Um milionário grego. Foi marido de Jackie, viúva de John Kennedy, presidente dos Estados Unidos assassinado em 63. Século XX. Esta juventude não sabe de nada, não conhece a História — resmungou o colecionador de frases de ocasião.

A cabeleireira estava cansada. Havia tido um dia intenso, pente para cá, escova para lá, agora a tesoura, e tinta acaju aqui, para esta a cor castanho claro, nesta, chocolate, na outra, louro, e o vozerio incessante, e a filosofia de salão; tudo a entediava. Perdera a conta de quantas cabeças haviam passado por suas mãos ao longo do dia.

Seu corpo exaurido estava no salão, mas suas preocupações continuavam em casa, onde deixara com parentes os dois filhos pequenos adoentados. Terminou às pressas a última tarefa. Mal se despediu dos colegas e da clientela. Ao atravessar a porta, ouviu um “tchau Debby, vá com Deus”. Não reconheceu de quem era a voz e nem se deu ao trabalho de responder. Pablo fez um comentário, como se sussurrasse aos ouvidos da cliente, alto o suficiente para que todos ouvissem:

— Pense numa pessoa distraída!

Embora aflita por causa das crianças, a fé era maior e Débora optou por dar uma passadinha primeiro na igreja, onde faria uma breve oração antes de seguir para casa. Sentia-se em débito com a divindade por conta de seguidas ausências às celebrações, razão provável de os meninos estarem um com bronquite, outro com sarampo. “Deus castiga”, lembrou-se do que lhe dizia a avó, na infância, sempre que se recusava a acompanhá-la nos cultos.

Ao chegar à porta do templo, porém, deparou-se com um intenso movimento de fiéis. Um homem com expressão nenhuma de simpatia organizava a entrada dos devotos e ela seguiu a indicação quando o sujeito lhe disse, irritado, “por aqui, por aqui”.

Débora acabou sendo levada para a parte dos fundos. Acomodou-se numa das poltronas, perdida. A não ser pelas fervorosas orações dos demais, nada ali lembrava a igreja, parecia algo como um ônibus.

— Todos trouxeram suas Bíblias? — perguntou uma moça de camisa branca, mangas compridas e lacinho vermelho escorrendo do pescoço, como uma gravata reduzida. Débora explicou que só queria fazer uma oração antes de voltar para casa, que estava cansada e que não tinha o hábito de levar a Bíblia ao trabalho; sua voz, porém, saiu abafada pelo alarido do entorno. Ainda assim, a moça deve tê-la ouvido, porque lhe atirou ao colo um exemplar barato das sagradas escrituras, uma bandeira nacional, outra de Israel, e virou-lhe as costas.

Os demais seguiam entoando hinos de louvor, num volume estrepitoso, e a moça da Bíblia passou a dizer coisas incompreensíveis, como se falasse numa língua estrangeira. A cabeleireira tentou novamente explicar suas intenções, mas o ônibus havia avançado, já estava numa rodovia movimentada.

Ligou para casa. A bateria do celular, entretanto, não resistiu sequer até que a ligação fosse ao menos atendida. Débora tentou pedir aos demais um aparelho emprestado. Todos estavam tão envolvidos nos cânticos sagrados, alguns em transe, que ninguém lhe deu ouvidos. Levantou-se para sair, mas dois ou três rodopiavam no corredor do coletivo. Resolveu esperar até que cessasse a cantoria. Encostou-se na poltrona para relaxar. O cansaço e o sono a derrotaram.

Horas e horas depois chegaram à capital da República. "Nossa, desmaiei”, disse a si mesma quando acordou, assim que o ônibus parou num local amplo, ao lado de gramados extensos. Por todos os lados havia pessoas vestidas de camisas verde-amarelas, bandeiras nas costas, nos ombros, nas cabeças.

A pessoa que ocupava a poltrona ao lado da janela forçou a saída de Débora, ainda sonolenta, que mais de uma vez perguntou onde estavam. Ninguém lhe respondeu. Saiu do veículo pela força dos empurrões. Ao pôr o pé direito no chão, foi colhida pela procissão que seguia compacta, caminhando em manada e gritando palavras de ordem que ela mal compreendia. Não teve forças para resistir, para tomar outro rumo. Passou-lhe pela cabeça voltar para dentro do ônibus, mas o vento sacudiu-lhe os longos cabelos dourados como se lhe indicasse que o caminho a seguir era mesmo em frente.

Perguntou o que estava ocorrendo a uma senhora toda envolta na bandeira nacional e ela lhe respondeu que “minha bandeira jamais será vermelha”. Dirigiu-se a um rapaz magricela, que ao seu lado simulava marchar à maneira dos militares, carregando uma bandeira em mastro sobre um dos ombros, que lhe disse “abaixo o comunismo“.

À sua direita, outra senhorinha com Bíblia na mão gritava “morte aos corruptos”. O homem ao seu lado bradava “prendam o cabeça de ovo!” Um grupo ostentava uma faixa em que estava escrito “intervenção militar já”. Bandeiras de Israel e dos Estados Unidos espalhavam-se em meio à turba, competindo com a nacional.

Estranhou uma garota solitária de cabelos desgrenhados, vindo na contramão, que segurava um cartaz, “Meu cabelo tem liberdade de expressão. Mafalda”.

“Que loucura isso tudo!”, pensou Débora.

A despeito da fúria visível nas expressões das pessoas, aquela gente toda parecia pacífica, talvez porque contasse com a organização dos próprios policiais que acompanhavam o cortejo e lhe abriam o caminho. Muitos deles tiravam fotos posando sorridentes ao lado dos marchantes. Era um domingo agradável, de sol exposto, sem nuvens no céu, e o povo parecia fazer um passeio coletivo ao parque formado pelas extensas pradarias do entorno e alguns edifícios cujas fachadas a cabeleireira conhecia da televisão.

As horas de sono profundo no ônibus não lhe permitiram os cuidados básicos que toda mulher tem com a própria aparência. Sentia-se suja, suada, mal podia suportar o mau-cheiro que de si exalava. O ofício de cabeleireira, entretanto, ensinara-lhe a não perder a elegância em situação alguma, por adversa que fosse. Lembrou-se da frase que encimava seu grande espelho, no salão, “Se seu cabelo está bem penteado e você usa bons sapatos, consegue se safar de qualquer coisa”. Abriu sua bolsa e do interior retirou um espelho minúsculo, uma escova e um batom.

Caminhou uns cem metros escovando seus cabelos compridos. Tentando concentrar-se na própria imagem refletida pelo espelhinho enquanto andava, acabou empurrada para a frente de uma estátua gigantesca. Foi tão forte o empurrão que projetou o espelho para o alto. Débora perdeu-o de vista e supôs que tivesse sido lançado sobre o colo da escultura, imagem de uma mulher sentada que segurava uma espécie de bastão acomodado sobre a longa saia.

Apoiada nos ombros da multidão ao seu redor, ela subiu e se pôs de cócoras sobre o ventre da estátua. De fato, lá estava o espelho, todo espatifado. A cabeleireira teve uma sensação de derrota e ficou prostrada por uns instantes na barriga da estranha mulher de pedra, pensando, querendo entender tudo o que lhe acontecera nas últimas horas.

Não fazia ideia de onde estava, não reconhecia uma só pessoa no amontoado humano que agora contemplava do alto. Não conseguira fazer contato com os filhos, as pessoas não lhe davam atenção. Sentiu-se perdida, desolada, abandonada em meio à multidão. “Que estupidez, que bobeira eu dei, que ‘mané’ eu fui. Como vim parar aqui?”, torturava-se.

Desistiu de passar o batom em seus lábios. Fixou o olhar sobre a pequena peça cosmética, buscando resposta na ponta chanfrada de cor vermelha, como se olhasse para uma bola de cristal, esforçando-se para compreender como foi que viera do salão de beleza onde trabalhava direto para o colo da estátua esquisita.

Desacorçoada, firmou os dedos sobre o batom, apertando-o, como se quisesse esmagá-lo, como se o culpasse pelo infortúnio. Sem muito raciocinar, deslizou-o pela barriga da estátua, sob os seios pontudos. Tomada por indignação, pelo ódio que sentia de si mesma por ter-se deixado conduzir até ali, rabiscou com força na pedra a frase que sintetizava sua dor: “perdeu mané”.

Disfarçando as lágrimas — odiava chorar em público —, desceu da escultura com ajuda de alguns da multidão. Até foi capaz de sorrir quando percebeu uma infinidade de aparelhos celulares apontados em sua direção. Alguém gritou-lhe: “sua Bíblia, moça!”

Ela apanhou o livro sagrado, que nem era seu, o exemplar antigo de surrada capa preta que a jovem do ônibus lhe houvera dado. É esse livro, entretanto, que hoje a conforta nas horas de solidão na prisão, onde cumpre pena de quatorze anos por ter pichado uma estátua. Não faltaram provas de seu crime, fartamente documentado em fotos e vídeos espalhados pela internet, jornais e telejornais de todo o país e mundo afora.

Dói-lhe a saudade dos filhos, ela chora pela ausência de amigos e demais familiares. Por sorte, Débora tem contado com a inesperada ajuda de pessoas famosas e anônimas, uma espécie de gente que, como numa epifania, viu-se assomada por súbito espírito de solidariedade e que agora, negando a própria história, passou a denunciar tortura nas prisões e a clamar por justiça e direitos humanos.

Distrai-se penteando, escovando, tingindo os cabelos das parceiras de cárcere, mas enfurece-se se alguma lhe pede para fazer-lhe a maquiagem. Débora nunca mais usou batom.

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NOTA: eventuais alterações podem ser feitas a qualquer momento pelo autor na publicação original, aqui.