03/03/2018

Memórias de um Advogado Bissexto

Hoje seria dia de eu comemorar exatos trinta anos de profissão, mas o calendário gregoriano engoliu a minha data e me deixou assim, pendurado na brocha, sem escada, sem folhinha para rasgar.

Em 29 de fevereiro de 1988 deu-se minha inscrição nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. Lá nos primórdios calculei que aos vinte anos de carreira eu estaria rico. Profissional bissexto nos ganhos, três décadas depois o cálculo continua o mesmo, só se deslocou no tempo o marco zero, que passa a ser o dia de hoje. Enfim, a cada dia renova-se a velha e imortal esperança! A diferença é que inicio um novo período marcado já por rica experiência.

Como advogado, sou anterior à Constituição Federal, quase contemporâneo. Acompanhei nos bancos da faculdade o desenrolar da assembleia nacional constituinte, que, naquele mesmo ano, em 5 de outubro, viria a conceber a tal “Carta Magna”, a que o saudoso Ulysses Guimarães ousou chamar de ”Constituição Cidadã”, tais as conquistas prometidas em favor da cidadania nacional.

De Lula a Mário Covas, passando pelo próprio Doutor Ulysses, a Constituição brasileira de 1988 foi concebida por muita gente séria. A despeito de um perfil conservador, mais inclinado à centro-direita, aquele congresso constituinte soube elaborar uma carta política francamente progressista, das mais avançadas do mundo. Lá estavam Florestan Fernandes, José Genoíno, Plínio de Arruda Sampaio, Roberto Campos, Delfim Neto, Jarbas Passarinho, dentre outras estrelas de primeira grandeza.

Ao longo desses trinta anos, tive a oportunidade de vivenciar, na prática diária do Direito e da Política, o desenvolvimento constitucional brasileiro. Eleito vereador no mesmo ano em que me tornei advogado, sou em parte testemunha, em parte, muito modestamente, protagonista dos avanços que o país experimentou a partir do seu novo marco jurídico, cercado, no parto, das esperanças de que dias melhores viriam, e que em boa medida vieram, de fato.

Nos moldes do novo desenho constitucional, sobrevivemos ao primeiro impeachment, em que o presidente Collor fora diretamente acusado de envolvimento em ato de corrupção, e experimentamos importantes conquistas sociais, econômicas e políticas. Depois de um golpe na poupança, confiscada pelo presidente afastado, instituímos uma nova moeda e controlamos o monstro insaciável da inflação. Seguiu-se a eleição do primeiro operário presidente da República e, com ele, trinta milhões de brasileiros antes condenados a morrer de fome ou à exclusão social, souberam o que é ter um mínimo de dignidade e puderam desfrutar de um inédito processo em massa de inclusão e ascensão social. Direitos foram ampliados, salários e benefícios previdenciários valorizados, empregos criados aos milhões. O Brasil ganhou respeito no cenário internacional. O operário foi reeleito, elegeu e reelegeu a primeira mulher a ocupar a presidência da República. Com ela, chegamos ao final de 2014 em situação de pleno emprego, com índices irrisórios de desocupação, abaixo dos 5%.

Mas, com a reeleição da presidenta, aflorou o ódio de uma casta insatisfeita com a presença dos da senzala na sala de controle da casa grande, ingrediente que se somou ao recalque de um narcocandidato das elites que não soube digerir a derrota e fez juras de vingança e morte à eleita. Em meio a essa combinação explosiva, ascendeu o hoje presidiário Eduardo Cunha, a par do mais conservador, reacionário e corrupto conjunto de parlamentares jamais visto na História do Brasil. Com as pautas-bomba de Cunha e a execução da promessa de sangria de Aécio e seus aliados, inviabilizou-se o governo Dilma até o ponto de tirá-la do governo sob falsa acusação de crime de responsabilidade, por conta de mal explicadas “pedaladas fiscais”. Executou-se o golpe, enfim, que se desenhava desde as “jornadas de junho”; aliás, desde o “mensalão”, em que líderes políticos progressistas foram condenados sem provas, na esteira de uma tal “teoria do domínio do fato”.

Esse processo de esgarçamento dos direitos assegurados pela Constituição Federal alcançou seu clímax recentemente, com a condenação de um ex-presidente da República também sem crime e sem prova, igualmente sustentado, de maneira envergonhada, enrustida, na mesma teoria que nem contra os nazistas ousou-se aplicar, com a clara intenção de alijá-lo da disputa presidencial deste ano. Três desembargadores que poderiam ter posto um fim a esse propósito da classe dominante de alijar do processo político o ousado representante das camadas populares preferiram cumprir o papel que lhes foi destinado pela elite e, num julgamento patético que fez corar o mais distraído aluno do primeiro ano de Direito, mantiveram a sentença e ampliaram a pena para Lula. Tudo sob o olhar complacente e conivente de um acovardado supremo tribunal federal, “guardião da Constituição”, indigno, no entanto, de ter seu nome escrito com iniciais maiúsculas.

Em 29 de fevereiro deste ano eu deveria estar comemorando meus trinta anos de carreira profissional. Imaginava fazê-lo em melhor condição. A riqueza não veio e me comeram até o dia da comemoração. Há três décadas, como diria Drummond, um anjo torto deve ter-me dito “vai, Luís, ser um advogado bissexto na vida”. Só não imaginei que ao fim e ao cabo desse longo espaço de tempo eu viesse a concluir um artigo pedindo – como o jogador que marca três gols num mesmo jogo e pede música no programa dominical da TV – um réquiem para nossa Constituição Federal, falecida, coitada, antes mesmo de chegar aos trinta.

Som na caixa, maestro!

(Luís Antônio Albiero, advogado, vereador em Capivari pelo PT em 1989/92 e 2001/04).