28/06/2025

Entrevista sobre meu livro (#36)

Estou me preparando para o lançamento do meu primeiro livro impresso, "O Onomaturgo e Outras Histórias". Será no próximo dia 19 de julho — daqui a três semanas, portanto —, em Capivari, a mais importante cidade do interior de São Paulo (ao lado de Rafard, claro). São treze contos de variadas inspirações.

Cartão promocional do lançamento do meu livro, 19 de julho, na Casa Rosa, em Capivari, SP


Como parte da promoção do evento, acabei convidado pelo famoso jornal Nyor’Quetais, dos poucos ainda impressos que resistem à modernidade, para conceder uma entrevista. Claro que fiquei nervoso — já estava por demais ansioso —, mas topei. “Faz parte”, apeguei-me ao filósofo contemporâneo. O repórter acaba de chegar e vou atendê-lo à porta. Acompanhe.

— Olá, Albiero! — ele me cumprimenta como se me conhecesse desde sempre.

— Olá — respondo, ressabiado.

O repórter é jovem, deve ter menos de vinte anos. Magricela e de bochechas realçadas, óculos enormes, dentes proeminentes e desencontrados, cabelos pretos engruvinhados, olhos azuis pendendo para o verde. Lembra muito alguém que conheci na minha juventude, nos tempos em que eu mesmo trabalhava no jornal de minha cidade.

— Entre, por favor. Sente-se. Aceita um cafezinho?

— Agradeço, mas será breve. Tenho que fechar a matéria ainda hoje.

O jornalista mal se senta e logo se anima a fazer a primeira pergunta. Eu o interrompo:

— A propósito, e com sua licença, o seu nome é…

— Eumesmo.

— Eumesmo? Muito prazer. Nome interessante. Prossiga.

— O prazer é todo meu. Desculpe este meu jeito atropelado… Meu nome é a junção dos nomes dos meus pais, Eudice e Mimesmo.

— Ah! Mais interessante ainda…

— Albiero, sabemos que você escreve crônicas políticas. Será um livro de crônicas?

Penso que Eumesmo não me conhece.

— É verdade que escrevo crônicas, mas não apenas. Quem me acompanha pelo Facebook e Substack sabe. Escrevo crônicas, contos, poemas, até um romance ando me arriscando a escrever. Mas não, não é um livro de crônicas.

Luciana traz o café e cumprimenta a visita. Servimo-nos. Eumesmo agradece a ela, que se retira dizendo que é para nos deixar à vontade.

— É um livro de contos — complemento.

Eumesmo me lança um olhar desconfiado. Finjo não ter percebido. Devolvo-lhe um olhar interrogativo, tipo “e então?”, como convidando-o a seguir em frente.

— E de que trata o conto?

Não, não é possível. O glorioso NQ me envia um repórter com esse grau de despreparo, penso, indignado. E explico:

— Não é um conto. São treze contos.

— Treze? É sobre política?

Mal acredito na observação, menos ainda na pergunta. Sorrio e prossigo.

— Não, meu caro. Treze é, e de fato é mesmo, o meu número de sorte. Aliás, é em essência o número da sorte. Mas foi mera coincidência, inspirado em “A dama do cachorrinho e outras histórias”, de Anton Tchekhov, formado também por treze contos. O livro não é político, não trata de política partidária. É pura criação literária.

— Ótimo. E de que trata o livro? Os contos, os treze contos.

— Vários temas — respondo, deixando de propósito um vácuo perturbador.

— Vários? Não lhe parece que “vários” é muita coisa? — indaga Eumesmo.

— Sim.

O silêncio agora dura uns trinta segundos, Eumesmo olhando para mim, eu mirando Eumesmo.

— Bom, mas cite-me alguns dos temas, por favor.

— Claro, meu querido. Estou apenas descontraindo. Vejo que você está apressado, um tanto nervoso. É sua primeira entrevista?

— Sim… Na verdade, é um “frila”, o primeiro que me encomendaram…

A confissão de Eumesmo me deixa mais à vontade. O jovem repórter não deve ter percebido, mas eu estou mais nervoso do que ele. É minha primeira entrevista sobre o livro e temo que possa ser a única. Primeira e última, como dizia minha mãe quando a irritávamos nas vezes em que ela nos levava a um passeio novo, como na primeira ida ao circo, ou a fazer compras na Treze de Maio (treze!), em Campinas. “Primeira e última vez que eu trago vocês”, ela dizia, enfezada. A aproximação do lançamento, o temor de que ninguém compareça ao evento, o juízo que os outros farão do livro, se haverá venda ou se vai ficar encalhado na editora… tudo isso me deixa perturbado.

— Como é que o senhor elabora sua obra? Seus contos são relatos da sua vida real, são pura fantasia, como é que é essa coisa de escrever ficção?

Sinto-me uma tralha, chamado de senhor.

— Boa pergunta! — digo eu a Eumesmo. — Só não me chame mais de senhor. Eu costumo devolver na mesma moeda, senhor Eumesmo.

— Ah, o senhor me perdoe. É respeito… Você sabe.

— Entendo. Muitas vezes pensei em tingir estes meus cabelos brancos, mas são eles que dão a garantia da minha maturidade a quem vê esta minha carinha de dezoito.

Eumesmo ri. Respondo:

— Algumas histórias têm um pé na realidade, outras são fantasia pura. O conto que abre o livro, “A primeira pescaria”, por exemplo, é uma história quase cem por cento real. Aconteceu comigo, de fato. Foi logo na minha primeira pescaria, a que fui levado por meus tios. Embora no conto eu chame apenas um de “tio”, na história real os quatro eram meus tios, dois de sangue, irmãos de minha mãe, e dois agregados, cunhados dela e deles. O conto resume toda uma vida de opressão que vivi enquanto estive sob os cuidados desse meu tio. Desde crianças, eu e minha irmã, assim como minha mãe, trabalhamos no bar desse tio, que era alcoólatra. Imagine, um alcoólatra dono de um bar. Eu tinha quatro anos e meio quando morreu meu pai. Minha mãe, viúva e com dois filhos pequenos, resolveu mudar-se de Rafard, onde morávamos, para Capivari, junto aos pais dela. Contíguo à casa de meus avós havia um bar, explorado por esse meu tio, que gostava de pescar, como os demais. Cresci sob o jugo dele.

— Arrã. Acho que entendi. É uma autobiografia, então.

— Não! É uma história que criei na qual introduzi elementos autobiográficos. Quando você o ler, poderá observar que há elementos reais e há pura ficção, como a cena final.

— Unrum…

— A segunda história também tem um pé em fatos verdadeiros. Esse mesmo tio havia sido noivo de uma moça da cidade, mas teve de desfazer o noivado por ordem do pai dela, influenciado por uma fofoca de meu avô, por vingança. Minha mãe contava que foi por isso que ele se tornou alcoólatra e eu vi nesse fato um bom mote para um conto. Veja lá. Noventa por cento dele, porém, são pura ficção.

— Entendi.

— Há uma entrevista, como esta que estamos fazendo, em que um repórter parecido com você, Eumesmo, entrevista uma celebridade atemporal. É um conto narrado em primeira pessoa, cheio de “ovos de páscoa”, os “easter eggs”, como dizem em língua inglesa, que revelam quem é a moça entrevistada.

— Interessante.

— Há outros dois contos em que os personagens discutem sobre Deus. Num deles, um casal de ateus enfrenta a doença rara e grave do único filho, alternando sentimentos sobre um ser sobrenatural que nos rege. No outro, um rapaz que não acredita em Deus, mas admite a possibilidade de sua existência, tem um encontro com Ele. E há um em que a personagem principal é uma mulher idosa, presa a uma cadeira de rodas, que se vê posta por horas sem fim diante de uma imensa parede branca de sua casa, sem poder mover a cabeça, o que a leva a refletir sobre sua vida. Ela acaba atacada por projeções de sua mente, seus fantasmas, torturada por seus remorsos, ou pela falta de remorso, não sei… É um fim triste.

— Não sabe? Mas se você criou a história, você sabe tudo sobre os personagens, a trama…

— Nem sempre, meu caro Eumesmo. Nem sempre. Quase nunca, arrisco-me a dizer-lhe. Há um outro conto em meu livro, que reputo dos mais interessantes, em que uma escritora se vê às voltas com um dilema, como encerrar o romance que ela vem escrevendo. Ao mesmo tempo, essa minha personagem escritora mantém um relacionamento com um rapaz, um fã de seus livros que se apaixona por uma das personagens e tenta influenciar a autora sobre o que fazer com sua obra.

— E esse título estranho, Onomaturgo… o que é isso?

— Eis o mistério da fé… É o mistério do livro, e do próprio conto. Você quer que eu dê “estrago”?

— Dar estrago? Como assim?

— Em inglês, seria “spoiller”. Prefiro estrago.

— Ah!

Eumesmo olha para o celular, como se conferisse alguma coisa.

— Bom, acho que está bom. Vou indo.

— Espere. Tem outros contos dos quais não falei ainda.

— Ó, me perdoe — diz, já com meio corpo acima do sofá. Ele volta a acomodar-se.

— Sem problema. Há um conto, “Fogo que Arde”, que noventa por cento dele também são frutos da minha imaginação, mas com um pé num fato ocorrido na vizinhança do bar de meu tio, o “bar do Tota” que, no conto, “vira bar da Tata”, no bairro Jardim América, em Capivari, o mundialmente famoso bairro “Buraco da Onça”. Mas esse fato real é justamente o desfecho do conto, de modo que não posso “dar estrago”.

— Compreendo. Algo mais?

— Sim, sim. Há um conto, fruto de um exercício que me propuseram num curso. O desafio era produzir uma história a partir de uma foto. E a foto que escolhi foi a de um rapaz observando sua própria imagem refletida numa poça d’água num chão rachado, com dois pedaços de pau ao seu lado formando uma cruz. No primeiro olhar, julguei, pelo espaço, que se tratasse do Pelourinho, em Salvador, Bahia, e imediatamente me veio a história à mente. Segundos depois percebi que não era o lugar que pensei, pois se tratava do chão rachado do sertão nordestino, castigado pela seca, mas a história já veio pronta em minha mente e eu a desenvolvi tal qual ao meu primeiro olhar. A imagem me lembrou a mitologia grega e nela me inspirei. Abrasileirei e enegreci o mito. E espero que você e os leitores compreendam. Não será difícil.

— Ótimo. Podemos encerrar?

— Calma, rapaz! Lu! — chamei por minha esposa. — Traga mais um café, por favor!

Ela traz e Eumesmo se serve. Prossigo.

— O conto derradeiro fala da desigualdade que assola o Brasil desde que os p’rtugueses cá ap’rtaram — digo, forçando o sotaque. — Em “Os dois Josés”, falo do abismo que separa o luxuoso Residencial Ventura da favela Vila Baldo, um ao lado da outra, quase que o edifício sobre a favela, narrado a partir do ponto de vista de um vizinho que passa horas a contemplá-los da varanda do prédio de classe média em que reside. Nele, faço conexões com fatos bem recentes da história do nosso país que demarcam a separação real que existe entre os dois Brasis e o ponto comum em que ambos se tocam, que não raro é a tragédia.

Eumesmo olha fixo para mim, como se assombrado com minha imagem.

— Acabamos? — pergunta.

— Ah, ainda faltou mencionar outros dois. Num deles, falo da pandemia, das divergências que se afloraram nesse triste período da história da humanidade, da luta que se travou entre a ciência e o negacionismo. O final é um tanto inverossímil, reconheço, considerando o temperamento e a agressividade sem limites dos negacionistas, que exigia solução inversa à que acabei dando, mas aí prevaleceu o fato de que eu sou o deus das histórias que crio, de modo que o desfecho dessa história é meu.

Sorvo mais um tanto de café, para dar fôlego à prosa, e continuo.

— E há um em que um desembargador se vê premiado como o “juiz do ano”, conferido pela associação nacional dos magistrados brasileiros. Sem saber a razão da premiação, ele revolve suas memórias tentando encontrar um fato relevante de sua trajetória como julgador que justifique a comenda. Acaba indo à sua infância. Esse fato ao qual ele chega, que está na parte final do conto, é totalmente inspirado em um episódio da minha própria infância.

— Ah, você é juiz?

— Não, não, meu caro. Sou apenas um modesto procurador municipal. Nas horas vagas, sou achador. Acho muita coisa, desde as coisas perdidas dentro de casa até o que acho sobre os mais diversos acontecimentos do universo.

Eumesmo dá um risinho forçado, sem graça. Temo pelo juízo que esteja fazendo de mim.

— De todo modo, o livro gira muito em torno de você mesmo. É isso?

— Não. Ou melhor, sim e não, Eumesmo. Toda obra ficcional contém, por óbvio, uma carga muito forte da experiência vivenciada por cada autor. Não tem como não ser assim. Ainda que você crie um romance ambientado em Marte, com seres absolutamente diferenciados dos humanos, você necessariamente introduzirá elementos da sua história de vida.

— Pra finalizar, que mensagem você deixa para os jovens que estão começando agora a carreira literária?

— Nenhuma. Acumulo atualmente sessenta e um anos de juventude, de modo que eu sou um deles. Estou aprendendo também, nada tenho a ensinar.

Eumesmo, desconcertado, me pergunta:

— Algo mais?

— Só dizer que meu livro é uma celebração à palavra, à nossa menosprezada língua portuguesa. Um amigo muito querido, que o leu como leitor beta, ou alfa, nunca sei, aquele amigo que lê antes de os originais serem enviados a alguma editora, fez a observação de que uso algumas palavras “difíceis” nos contos, palavras já em desuso, o que decerto haveria de dificultar a compreensão dos leitores contemporâneos, especialmente dos mais jovens. Eu disse a ele que era proposital. Temo parecer pedante, mas ainda assim insisto. Precisamos, ao menos os que se dedicam à literatura, homenagear constantemente nossa matéria prima, que é a nossa língua, desenvolvida por nossa gente ao longo de séculos e séculos. E nossa língua portuguesa é muito, muito bela! Inculta e bela. Quando leio Machado, também não compreendo muitas das palavras que ele utiliza, pois ele as escreveu há mais de um século, mas, graças a todas as facilidades que a tecnologia hoje nos proporciona, é simples, basta digitar algumas teclas e consultar o oráculo do século XXI, o doutor “Gugo”, os dicionários virtuais.

Eumesmo toma o último gole, desajeitado, e se levanta com pressa maior do que a que o trouxe. Despedimo-nos.

Sujeito esquisito esse Eumesmo.
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22/06/2025

Petricor

IMPORTANTE: Prezada leitora, prezado leitor. Preciso muito saber da sua opinião sobre este conto, sobretudo quanto à temática e à forma como é tratada. Se puder me dar retorno, desde já lhe sou grato. Se não for possível deixar seu comentário ao final desta publicação, na página “Casa Literária“, por qualquer restrição da plataforma Substack, peço-lhe que o envie pelo e-mail laalbiero@yahoo.com.br ou comente na postagem replicada no meu Facebook ou blogue.


Houve tempo em que o caminho da roça era um verdadeiro banho de poeira vermelha. Agora, com o asfalto, o pó incomoda apenas no curto trecho entre o carreador e a estrada, suficiente, ainda assim, para sujar tanto quanto antes. A terra impregna na roupa dos trabalhadores de um modo que não tem como tirar. Os cortadores de cana-de-açúcar se aglutinam sobre a carroceria do caminhão, em que se adaptaram algumas tábuas para servir de bancos, cobertos de lona.

A viagem da volta após o término da extenuante jornada de trabalho é marcada por odores de homens, mulheres e umas poucas crianças, amontoados como animais, suados e exauridos por quase dez horas ininterruptas sob a nudez do sol. Ninguém, porém, se incomoda com o mau cheiro, acostumados que estão a respirar a catinga uns dos outros.

O caminhão parece que vem tropeçando de tão velho. Frequenta oficinas mecânicas como um idoso doente a um hospital – tantas vezes lhe diagnosticaram a morte, à qual resiste, teimoso como a gente que carrega em seu dorso. 

O melhor da jornada de trabalho é o caminho da volta, diz Ana de Chico, que se arrisca a cantarolar. Os demais vaiam e riem. Uns contam piadas, outros tratam de banalidades domésticas. Os problemas de cada um contam pouco nessa hora. A maioria troca impressões sobre o trabalho. 

O vozerio forma um mosaico oral de sotaques variados. Durval, baiano, discute com o velho Ticão, paranaense de carapinha branca, quem teria cortado maior quantidade de cana-de-açúcar no dia. O nordestino não concorda com Ticão, que proclama que o campeão teria sido o mineiro Isaías. Jeremias, negro da terra, diz que concorda, caprichando no “r” retroflexo característico do interior paulista.

As margens da pista são ambas inteiramente plantadas de cana-de-açúcar. Isaías sente o cheiro de terra, molhada pelo breve chuvisco que caíra há pouco; agrada-lhe a fragrância adocicada. Ele joga o toco do cigarro que guardara do breve descanso pós-almoço e aspira com força o cheiro que, de tão doce, parece emanar dos pés de cana, como se houvesse um deus das matas de cujas veias escorresse uma seiva que banhasse o solo, espargindo o perfume que se sobrepõe ao de suor dos trabalhadores.

Olha para Olinda, sua companheira, parda de quase trinta. Ela usa um chapéu de aba larga, como todas as outras mulheres do grupo. Também como as demais, traz um lenço debaixo do chapéu que lhe esconde os cabelos rijos de não lavar, ou de só os lavar uma vez por semana.

Nas casinholas onde moram não há água encanada, nem energia elétrica. Ajeitam-se com velas e lamparinas e buscam em baldes a água que lhes fornece dona Luzia, mãe do turmeiro Gumercindo, o dono do caminhão e daquilo a que chamam de casa, pela qual pagam aluguel que vem descontado do ordenado. A paga pelo labor vem tão repleta de despesas pelo pouco que lhes abastece o patrão que quase nada lhes sobra em espécie.

No retorno, os trabalhadores são deixados perto de onde moram. A maioria desce no ponto final, defronte um boteco vizinho à casa do patrão, onde alguns dos homens adentram. Isaías é um deles.

Olinda pede para que não demore, que traga um quilo de feijão, pão e salaminho para o jantar. Leva consigo os apetrechos do marido, o podão, a garrafa de água, a de café e a marmita de alumínio vazia, acondicionados num grande saco de lona. 

O boteco é pequeno, mal comporta o grupelho de trabalhadores. A luz é insuficiente. Do rádio a válvula, exposto numa das prateleiras ao lado dos maços de cigarro, ouve-se o noticiário d’A Voz do Brasil.

Quase dez da noite, já são quatro as garrafas de cachaça vazias sobre o balcão. A porção de mortadela e azeitonas há muito deixara de existir. Pendendo de bêbado, Isaías tem o rosto moreno brilhando de suor. Diz coisas desconcertadas. Volta-se para Ticão, aponta-lhe o dedo como se empunhasse uma arma. Solta palavrões, balbucia o nome de Olinda e coisas que ninguém compreende, nem se esforça para entender. E tomba.

Ticão, que mal se segura em pé, tenta levantá-lo. A muito custo, ele e Chico conseguem levá-lo até a casa. Olinda o recebe aos gritos e palavrões, esquecendo-se de que as crianças dormem. Isaías não revida. Cambaleante, ruma à cama, que fica bem perto da porta. Desaba e ronca. As crianças não chegam a acordar, acostumadas com gritos e a dormir famintas.

Na manhã seguinte, domingo, os meninos já longe de casa, Isaías e Olinda conversam ainda no leito. Do quintal, vem um cheiro de estrume. Uma galinha passeia com a ninhada pela casa, sobe na mesa..

Foto: Roberto Faria, via David Arioch - Jornalismo Cultural

 

Isaías olha para a mulher, abre um sorriso e começa a beijar-lhe o rosto, voraz feito lobo sobre a carniça. Morde-lhe as orelhas, puxa-lhe os cabelos duros como esponja de alumínio. Isaías procura, mas não encontra em Olinda o aroma terroso, a fresca sensação do orvalho matinal.

As mãos grossas de Isaías envolvem, firmes, os peitos já não tão rijos de Olinda, que responde com beijos no rosto do amante. Ela evita a região da imensa cicatriz da face direita do parceiro, resultado de antiga briga de bar.

As pernas magras de Olinda não impedem que delas Isaías se delicie, que lhe corra a língua desde o tornozelo. Ele morde as panturrilhas, as coxas, as nádegas. Gemem um e outro. Ameaça beijar o sexo da mulher, mas o forte odor o repele. Volta os lábios para os seios e segue beijando.

Ambos ofegam. Olinda escorrega os dedos grossos do trabalho duro sobre a carcaça do parceiro. Desce as mãos às coxas, toca-lhe o sexo.

— Merda! Desse jeito não vai dar! — grita e se desgruda do corpo do homem.

— A culpa é sua, sua fedorenta! Porca, filha de uma égua!

Isaías levanta-se ligeiro, envergonhado, o brio ferido. A galinha e os pintinhos correm, em pânico. Enquanto se veste, ele não poupa ofensas à mulher:

— Onde é que eu ‘tava com a cabeça quando inventei de juntar os trapos com uma mulher que fede a urina e alho, e com esse bafo de jiboia!? Não tem homem que consiga.

Soluçando, Olinda procura defender-se:

— Até treis meis atrás, ‘tava tudo bem. Agora a culpa é minha? Seu bêbado, sem vergonha. Seu frouxo!

Isaías dá um pontapé no rosto de Olinda que a faz sangrar. Sem forças para revidar, ela se debruça sobre o travesseiro, tinge-o de sangue, encharca-o de lágrimas. Seu homem sai sem destino. 

Ele chega nos fundos de um clube de grã-finos. Sem ser percebido, escala o muro e se senta sobre ele. De cima, contempla a beleza do lugar e sua gente chique. Gente bonita, alegre, tão distante de sua realidade de boia-fria. Gente sustentada pelo meu trabalho, pensa.

Fixa os olhos na piscina do clube. Detém-se a observar as meninas, suas nádegas perfeitas, as coxas volumosas, os peitos firmes querendo saltar dos biquínis. Procura esquecer Olinda, feia, tão nova e já envelhecida, sem qualquer graça.

Um rapaz conversa à beira da piscina com uma bela morena, de biquíni tão pequeno que parece nua. Lembra sua Olinda, bem mais nova. Sentada na cadeira, as pernas abertas, óculos de sol, ela expõe o ventre na direção dos olhos de Isaías, que imagina ver-lhe os pelos do púbis e já não enxerga as peças do maiô. Ele deseja as coxas bronzeadas que vê.

A moça levanta-se a convite das amigas. Vão jogar voleibol. À medida em que pula, seus seios balançam com graça e todas as suas delicadas formas serpenteiam e se acentuam. Isaías pensa em Olinda, dez anos atrás, como era linda, como eram apaixonados.

Num lance exagerado, a bola, caprichosa, ricocheteia numa pedra e se acomoda próximo ao muro onde Isaías está, atrás dos vestiários, de forma que nem da piscina, nem da quadra de vôlei se pode ver. A garota que o encantara vem buscá-la.

Da grama há pouco regada provém o cheiro de terra molhada. A garota abaixa-se para pegar a bola e não vê nem percebe Isaías aproximar-se por trás. Não tem tempo de gritar. Isaías a agarra, tapa-lhe a boca com as suas mãos enormes e calosas, tira-lhe o quase nada que veste. Ela desmaia, não tem como resistir. Ele aprecia seu corpo nu, inerte, indefeso, uma deusa em seus braços.

Enlevado pelo frescor da menina, ele se abaixa para aspirar de perto e melhor os odores de sua intimidade. Isaías sente-se levitar com o cheiro, doce como a cana, que se confunde com o da água caída sobre o solo gramado e com o da seiva vertida do ventre da deusa, a escorrer pelas pedras e plantas, da deusa domada, toda nua, toda sua, dormente em seus braços. Ele morde as orelhas com cuidadosa voracidade, depois o pescoço, as coxas, as nádegas, belas como um par de luas cheias.

Tudo gira no entorno de Isaías, que rola com a garota, ainda inconsciente, sobre a relva da qual provém o olor que se mescla com o cheiro de ventre de menina, perfume de mulher em desabrocho que o inebria, de Olinda rejuvenescida, o orvalho da manhã que há pouco buscava na companheira.

Isaías deita-a sobre o gramado para tirar sua própria camisa. Olha desapressado para a bela mulher que tem diante de si e nela reconhece a sacralidade de uma deusa. Adivinha-lhe a virgindade menina e a traz de novo junto ao próprio peito, agora nu. Isaías a abraça com intensidade, com força tal que, súbito, ele decide converter em brutal ternura, como se agora a quisesse proteger, como se defendesse uma filha do monstro que a ataca, como se lutasse para salvá-la de si mesmo.

A demora da moça preocupa as amigas, que saem a buscá-la. O grito doloroso e prolongado da primeira que vê a cena acompanha Isaías até atrás das grades.

Na manhã seguinte à noite maldormida, por conta do duro castigo que lhe impuseram os companheiros de cela, Isaías é levado à presença da autoridade judicial. No corredor do fórum, Olinda o aguarda, aflita. Não lhe permitem, porém, que fale com ele.

Ela se desfaz em prantos ao vê-lo passar cabisbaixo diante de si, escoltado por dois policiais fardados que o apressam com empurrões nas costas, a caminho da sala de audiência, as algemas prendendo-lhe os punhos, o andar claudicante, sem coragem de olhar para a mulher.

Da cela, Isaías traz o cheiro de cimento mijado, a fetidez da miséria humana impregnada em sua roupa. 

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NOTA: eventuais alterações podem ser feitas a qualquer momento pelo autor na publicação original, aqui.

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