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Houve tempo em que o caminho da roça era um verdadeiro banho de poeira vermelha. Agora, com o asfalto, só há pó no curto trecho entre o carreador e a estrada, suficiente, ainda assim, para sujar tanto quanto antes. A terra impregna na roupa de um modo que não tem como tirar.
Os cortadores de cana-de-açúcar aglutinam-se sobre a carroceria do caminhão, em que se adaptaram algumas tábuas para servir de bancos cobertos de lona.

A viagem da volta após o término da extenuante jornada de trabalho é uma aventura terrível de odores nada agradáveis. Homens, mulheres e crianças amontoados como animais, suados e exauridos por quase dez horas ininterruptas sob a desavergonhada nudez do sol. Ninguém, porém, se incomoda com o mau cheiro. Estão acostumados a respirar a catinga uns dos outros.
O caminhão parece que vem tropeçando, não só por causa dos buracos do asfalto. Está muito velho. Frequenta oficinas mecânicas como um idoso doente a um hospital. Tantas vezes lhe diagnosticaram a morte, à qual resiste, teimoso como a gente que carrega em seu dorso. É uma sorte que não quebre no meio do percurso.

O melhor da jornada de trabalho é o fim, o caminho da volta, diz Ana de Chico, que se arrisca a cantarolar. Os demais vaiam e riem. Uns contam piadas, outros tratam de banalidades domésticas. Os problemas de cada um não contam nessa hora. A maioria troca impressões sobre o trabalho. O vozerio forma um mosaico de sotaques variados.
Durval, nordestino, discute com o velho Ticão, paranaense de carapinha branca, quem teria cortado maior quantidade de cana-de-açúcar no dia. O baiano não concorda com Ticão, que proclama que o campeão teria sido Isaías.
— Na medição, roubaram ele — afirma o velho.
Durval olha para Isaías com inveja. Caboclo forte, o mineiro vem calado, não percebe que falam a seu respeito. Vem observando o sol que desaparece aos poucos, encantado com o vermelho alaranjado que ornamenta o encontro do céu com a terra. É lua cheia e ela já surge no horizonte oposto, iluminada, redondinha, no rastro do caminhão.
As margens da pista são ambas inteiramente plantadas de cana-de-açúcar. Isaías sente o cheiro de terra, molhada pelo breve chuvisco que caiu há pouco; agrada-lhe a fragrância adocicada. Ele joga o toco do cigarro que vinha fumando, que guardara do breve descanso pós-almoço, e aspira com força intensa o cheiro que vem do chão, como se brotasse da cana, que se mistura ao de suor dos trabalhadores.
Olha para Olinda, sua companheira, parda de quase trinta. Ela usa um chapéu de aba larga, como todas as outras mulheres do grupo. Também como as demais, traz um lenço debaixo do chapéu que lhe esconde os cabelos rijos de não lavar, ou de só os lavar uma vez por semana. Isaías não a cobra por isso, porque com ele ocorre o mesmo. Com todos ali.
Nas casinholas onde moram, não há água encanada, nem luz. Ajeitam-se com velas e lamparinas. Água, buscam em baldes a que lhes serve dona Luzia, mãe do turmeiro Gumercindo, o dono do caminhão e daquilo a que chamam de casa, pela qual pagam aluguel que vem descontado do ordenado, da paga pelo labor, tão repleta de despesas do que lhes fornece o patrão que quase nada lhes sobra em espécie.
O itinerário do caminhão pela cidade repete-se todo dia. No retorno, os trabalhadores são deixados perto de onde moram, nos mesmos lugares em que são apanhados na madrugada. A maioria desce no ponto final, defronte um boteco de esquina, vizinho à casa do patrão, onde alguns dos homens adentram. Isaías é um deles.
Olinda pede para que não demore, que traga pão e salaminho para a mistura do jantar. Leva consigo os apetrechos do marido, como o podão, a garrafa de água, a de café e a marmita de alumínio vazia, acondicionados num grande saco de lona. Ela e Ana dão-se os braços e vão com as outras mulheres. As casas, precárias e contíguas, formam uma pequena vila particular num grande descampado, nos fundos da casa de dona Luzia, onde o filho estaciona o caminhão.
No bar, risos e gargalhadas, fumaça, tosse, mortadela e azeitona regadas a farta doses de cachaça. Os homens conversam em voz alta sobre futebol, mulheres, música. Durval insiste que é o melhor no corte de cana, olhando de esguelha para Isaías. Ticão persiste em defender o amigo mineiro, por quem demonstra profunda afeição.
— Quanto foi que ‘cê fez hoje, Zaía? — provoca Durval, com voz já um tanto pastosa.
— Ah, isso não interessa, o que importa é trabalhar — esquiva-se o mineiro, sem muita convicção.
— O trabalho dignifica o homem — arremata Ticão, há muitos anos na cidade.
— Danifica — observa Jeremias, negro da terra que expõe a branquitude de seus dentes imensos, o único do grupo a ostentar arcada dentária completa. Os outros riem, cada qual com seu sorriso falho, esburacado.
O boteco é pequeno, mal comporta o grupelho de trabalhadores. A luz é insuficiente. Do rádio a válvula, exposto numa das prateleiras ao lado dos maços de cigarro, ouve-se o noticiário d’A Voz do Brasil.
— Seu Gumercindo é que leva a vida. Tem o caminhão, uma casa boa, com televisão e geladeira. Faça as contas. Só com o salário da gente, quanto é que ele deve gastar? Tudo pago pela usina. Dessa quantia, garanto que o lucro dele é mais que o dobro, só pra ele.
Todos assentem com a cabeça à observação de Durval. Gumercindo é o responsável pela turma de trabalhadores, contratado pela usina e dono dos casebres em que aloja seus empregados, a maioria vinda de outros estados.
— Podre de rico e ainda chora que não tem dinheiro — observa Jeremias, caprichando nos “r” retroflexos, característicos dos nativos da cidade.
— É, mas veja que seu Varte é mais rico ainda — replica Isaías.
— Bem mais — reforça Chico de Ana, um magricela recém-chegado de Pernambuco, que veio com a família toda, para ficar.
— Claro. Ele é dono da usina, oxente! ‘Cê queria o quê? Ele é dono de tudo — devolve o baiano.
— Mas não é dono de nói — retruca Jeremias.
— E daí, que é dono de tudo? Não é gente igual a gente? Por que é que nós tem que trabalhar de sol a sol para chegar em casa e não ter o que comer, não ter água, nem luz, com mulher e três filhos para tratar, enquanto ele tem lá três ou quatro carrão, um baita de um casarão? Dizem que até avião o home tem.
Novamente seguem-se acenos de cabeça às ponderações de Isaías.
— É verdade, Zaía.
— Tanta terra que ele tem sem plantar, tanta terra parada. O governo é que devia dar um jeito nisso — completa o mineiro, ingerindo mais uma dose.
Quase dez da noite, já são quatro as garrafas de cachaça vazias sobre o balcão. A porção de mortadela e azeitonas há muito deixara de existir. Durval sua, fala engasgado, os olhos baixos, mortos. Com um velho e enferrujado canivete, estica o braço e o aponta para Isaías, como se ameaçasse feri-lo. O mineiro encara o desafeto, mas não lhe responde. O dono do estabelecimento intervém, expulsa Durval, que se vai trôpego.
Também pendendo de bêbado, Isaías tem o rosto moreno brilhando de suor. Diz coisas desconcertadas. Volta-se para Ticão, aponta-lhe o dedo como quem empunha uma arma. Solta palavrões, balbucia o nome de Olinda e coisas que ninguém compreende, nem se esforça para entender.
Principia a chorar e pede repetidas desculpas a Ticão. Tem a impressão de que o bar todo gira. Uma teia de aranha no alto da prateleira, tomada por garrafas empoeiradas, torna-se imensa. Os finos tentáculos da aranha engrossam. Ela parece querer feri-lo, dá voltas em torno de Isaías, gigantesca.
— Alguém pare essa merda!
E ele tomba.
Ticão, que mal se segura em pé, tenta levantá-lo. A muito custo, ele, Chico e Jeremias conseguem levá-lo até sua casa.
— ‘Cês são tudo uns puto, isso é que vocês são — repete Isaías pelo caminho.
Olinda o recebe aos palavrões e gritos, esquecendo-se de que as crianças dormem.
— E o salaminho, seu bosta? Os meninos foram dormir com fome, só comeram as sobras de arroz, foi pouco. Ah, você ainda me paga, filho de uma vaca!
Isaías não revida. Cambaleante, ruma à cama, que fica bem perto da porta. Desaba e começa a roncar. As crianças não chegam a acordar, acostumadas com gritos e a dormir famintas.
Na manhã seguinte, domingo, os meninos já longe de casa, Isaías e Olinda conversam ainda no leito.
— Dei muito trabalho onte, veia?
— Não, que isso, bem — responde a mulher, com meiguice e sinceridade.
Isaías abre um sorriso e começa a beijar-lhe o rosto, voraz feito lobo sobre a carniça. Morde-lhe a orelha, puxa-lhe os cabelos que se assemelham a esponja de alumínio. O mau cheiro de um não incomoda o outro. Ainda assim, Isaías procura identificar um aroma terroso, mas não encontra em Olinda o frescor do orvalho da manhã.
As mãos grossas de Isaías envolvem, firmes, os peitos já não tão rijos de Olinda, que responde com beijos no rosto do amante. Ela evita a região da imensa cicatriz da face direita do parceiro, resultado de antiga briga de bar.
As pernas magras de Olinda não impedem que delas Isaías se delicie, que lhe corra a língua desde o tornozelo. Ele morde as panturrilhas, as coxas, as nádegas. Gemem um e outro. Ameaça beijar o sexo da mulher, mas o repele um forte odor desagradável. Volta os lábios para os seios e segue beijando.
Ambos ofegam. Olinda escorrega os dedos grossos do trabalho duro sobre a carcaça do parceiro. Desce as mãos às coxas, toca-lhe o sexo.
— Merda! Desse jeito não vai dar! — grita e se desgruda do corpo do homem.
— A culpa é sua, sua desdentada! Porca! Égua!
Isaías levanta-se sorrateiramente, tomado pela vergonha, pelo brio ferido. Enquanto se veste, não poupa ofensas à mulher.
— Onde é que eu estava com a cabeça quando inventei de juntar os trapos com uma mulher porca, que fede a urina e alho, com esse bafo de jiboia!? Não tem homem que consiga.
Soluçando, Olinda procura defender-se.
— Vagabundo! Até três meis atrás, ‘tava tudo bem. Agora a culpa é minha? Seu bêbado, sem vergonha. Seu frouxo!
Isaías dá-lhe um pontapé no rosto que lhe põe abaixo mais um dente. Do quintal, vem um cheiro de estrume. Uma galinha passeia com a ninhada pela casa, sobe na mesa.
— Merda de vida! — lamenta Isaías.
Olinda, ensanguentada, não tem forças para revidar. Debruça-se sobre o travesseiro, tinge-o de sangue, encharca-o de lágrimas. Seu homem sai sem destino.
— Aquela bunda seca! Não tem quem sinta tesão.
Entra num pequeno campo de futebol de várzea. O jogo, no entanto, não o atrai. Vê uns amigos, faz que não conhece. Sai e continua seu caminho sem rumo.
Chega nos fundos de um clube grã-fino sem perceber, nem ser percebido. Escala o muro e se senta sobre ele, e de cima contempla a beleza do lugar e sua gente chique. Gente bonita, alegre, pensa Isaías, tão distante de sua realidade e de seus companheiros boias-frias. Gente sustentada pelos frutos do seu trabalho.
Três meses… Olinda até que foi generosa. Na verdade, desde o início da safra não conseguia completar o ato sexual.
— Mulher desdentada. Gente rica é que leva a vida.
Fixa os olhos na piscina do clube. Detém-se a observar as meninas, suas nádegas perfeitas, redondinhas, as coxas volumosas, os peitos rijos querendo saltar dos biquínis. Procura esquecer Olinda, feia, tão nova e já envelhecida, sem qualquer graça.
Um rapaz conversa à beira da piscina com uma bela morena, de biquíni tão pequeno que parece nua. Lembra sua Olinda, bem mais nova. Sentada na cadeira, de pernas abertas, óculos de sol, ela expõe o ventre na direção dos olhos de Isaías, que imagina ver-lhe os pelos da púbis e já não enxerga as peças do maiô. Excitado, ele deseja as coxas bronzeadas que vê, tão oferecidas.
A moça levanta-se a convite das amigas. Vão jogar voleibol. À medida em que pula, seus seios balançam graciosamente e se acentuam todas as suas delicadas formas. Isaías pensa em Olinda, dez anos atrás, como era linda, como eram apaixonados.
Num lance exagerado, a bola, caprichosa, cai próximo ao muro onde Isaías está. A garota que o encantara vem buscá-la. A bola acomoda-se atrás dos vestiários, de forma que nem da piscina, nem da quadra de vôlei se pode ver.
Do gramado, regado pouco antes, provém um gostoso cheiro de terra molhada. A garota abaixa-se para pegar a bola e não vê nem percebe Isaías aproximar-se por trás. Não tem tempo de gritar. Isaías tapa-lhe a boca com as suas mãos calosas, tira-lhe o quase nada que veste. Ela desmaia, não tem como resistir. Ele aprecia-lhe o corpo nu, inerte, indefeso.
Enlevado pelo frescor da menina, ele se abaixa para aspirar de perto os odores de sua intimidade. Isaías sente-se levitar com o perfume, doce como a cana, cheiro de terra molhada. Ele morde as orelhas com cuidadosa voracidade, depois o pescoço, as coxas. Toma-lhe as nádegas como se se apropriasse de um par de luas cheias. Vai aos seios com tal volúpia que lhe machuca os mamilos.
Como na véspera, tudo gira no entorno de Isaías, enquanto ele rola com ela, ainda inconsciente, sobre a relva da qual provém o olor inebriante e que se mescla com o que exala a garota. Nela, encontra o frescor que buscava em Olinda. Machucam-se ambos em meio às pedras, pedaços de pau, restos de construção.
A demora da moça preocupa as amigas. O grito doloroso e prolongado da primeira que vê a cena acompanha Isaías até atrás das grades.
Na manhã seguinte à noite mal-dormida, por conta do duro castigo aplicado pelos companheiros de cela, Isaías é levado à presença da autoridade policial. No corredor da delegacia, Olinda o aguarda, aflita. Não lhe permitem, porém, que fale com ele.
Ela se desfaz em prantos ao vê-lo passar cabisbaixo diante de si, o andar claudicante, escoltado por dois policiais fardados que o apressam com empurrões nas costas, as algemas prendendo-lhe os punhos, sem coragem de olhar para a mulher.
Da cela, Isaías traz o fétido odor de cimento mijado. _______________________________________________