19/07/2018

Foi Há Meio Século

Você se lembra de onde estava e o que fazia cinquenta anos atrás? Não, certamente não. O mais provável é que nem fosse nascido. Pois é. Eu me lembro. Sim, eu tinha quatro anos e sete meses cravados e me recordo exatamente do que fazia e onde me encontrava em 19 de julho de 1968.

Trago na memória poucas lembranças de meu pai. Chamava-se Ildefonso, era conhecido como Nego, apelido carinhoso que já revela a estima que os outros tinham por ele desde menino.

Uma das lembranças mais significativas é do dia em que minha mãe, Cida, nos deu “remédio quente”, a mim e à minha irmã Eliana. Não sei que raio de remédio era aquele, mas era “quente”. E saímos a passear pela pequena Rafard eu, minha irmã e meu pai. Estávamos na esquina da rua Marechal Deodoro com a Maurício Allain, diante de uma venda. Meu pai nos comprou sorvetes. Voltamos para casa e à noite passamos mal, com bronquite. Minha mãe acreditou a vida inteira que eu e minha irmã passamos a sofrer com bronquite por causa daquele picolé. Onde já se viu dar gelado a quem tomou “remédio quente”!

Outras lembranças são mais agradáveis. Eu me lembro de quando escrevi meu próprio nome num prendedor de roupas, de madeira. Até então eu jamais havia ido a uma escola. Estávamos sentados no quintal de casa. Minha mãe pendurava roupas no varal e eu – a lembrança não alcança detalhes, mas imagino – copiei meu nome de uma folha de papel em que meu pai devia tê-lo escrito. A família fez festa pelo meu modesto feito. Foi a primeira vez na vida que me senti orgulhoso por algo que escrevi.

Num dia abri um berreiro na hora em que meu pai saía para o trabalho e me dizia que não poderia ficar. Noutro, íamos à missa, minha irmã no colo de minha mãe, ele trajando terno, carregando um guarda-chuva.

A mais marcante das lembranças é a do Natal de 1967. Havíamos ido à casa de meus nonos, Tone e Nina, que ficava na mesma rua em que morávamos, a umas três ou quatro quadras de distância. Meu nono não havia ainda comprado nossos presentes de Natal. Ele disse a mim e à minha irmã “peguem esses brinquedos. Comprei para o Joãozinho e para a Oliete (filhos de tia Vitória, hoje também já falecida), mas depois eu compro outros para eles”. Foi meu primeiro presente de Natal, um caminhãozinho tipo guincho. Tinha até uma roldana e uma cordinha na carroceria, com um gancho na ponta.

No meio do caminho da casa do nono à nossa há a igreja de Nossa Senhora de Lourdes, padroeira da cidade. Meu pai nos levou até à porta e nos mostrou o presépio. “É por ali que vem Papai Noel”, disse-nos.

Outra recordação é de meu pai varrendo a rua. Ele, filho de agricultores, deixou o campo e, com um irmão, meu tio Nico, também já falecido, montou uma transportadora. Tinham apenas uma carreta. O motorista era um negro risonho que me carregava no colo, não me vem à mente o nome dele. Não deu certo a sociedade. Com o dinheiro da venda do caminhão, ele e minha mãe compraram a casinha. Ficou descapitalizado e desempregado. Minha mãe foi à luta. Conseguiu um emprego para ele na prefeitura. Ela contava que foi difícil. Genaro Vigorito, primeiro prefeito da cidade recém-emancipada, disse a ela que ele não precisava, “os Albiero são gente rica”. Quando asfaltaram as ruas da vizinhança de casa, meu pai integrava a turma. Ele fazia a varrição após a aplicação do asfalto. Do portão de casa eu o vi trabalhando.

Não me lembro de nenhuma vez em que eu o tenha chamado de pai. Poucos diálogos com ele me restam na memória. Certa feita, sentados eu, ele, Eliana e a prima Célia na minha cama, meu pai nos mostrou um relógio de pulso e disse que havia sido presente do nono.

Noutra ocasião, eu o acompanhei ao médico. Tomamos o ônibus em Rafard e descemos na rua 15 de Novembro, em Capivari, defronte onde hoje é a loja Paz Vídeos. Desci do ônibus com as passagens. Meu pai me disse para devolvê-las ao motorista – era Tito ou Sílvio Braggion, não me lembro ao certo, ambos primos dele (em Rafard, éramos praticamente todos parentes). Eu, já metido a fazer graça, rasguei os tíquetes. Rimos todos, despedimo-nos do primo e rumamos os dois ao consultório do Doutor Máximo Guidetti, logo ali adiante.

Não me recordo de nenhuma lição que ele tenha me dado. Nenhuma bronca, nenhum conselho, nenhuma palavra sobre como eu devesse me comportar, e isso é o que mais me entristece. Tudo o que sei do caráter de meu pai, por testemunho de quem o conheceu, é que ele era um homem bom. Esse foi e é o único exemplo que ele me deixou. Um homem bom e trabalhador, que não se envergonhava de exercer um ofício modesto. É esse modelo que eu me esforço para seguir.

Em 19 de julho de 1968 eu estava na casa dos meus nonos. O lugar estava cheio e havia um corpo no meio da sala, descansando num esquife. A certa altura, minha irmã chegou. Havíamos ficado uns dias na casa de tia Luzia, enquanto meu pai esteve internado. Naquele dia, porém, nos separamos. Eu cheguei primeiro, com minha mãe. Eliana chegou depois, com tia Luzia e calçando chinelos novos. Briguei com ela por causa dos chinelos de dedo. Em dado momento, chegou tia Vitória. Ela se aproximou do caixão e, ao ver o corpo do irmão, deu um grito longo e dolorido que ecoa em minha alma até hoje. Creio que só então eu me dei conta de que não era uma festa.

O féretro saiu da casa dos nonos para a igreja, na mesma quadra. Minha última lembrança é do cortejo. Chovia fino. Homens de ternos e guarda-chuvas pretos carregavam o ataúde, caminhando rumo ao cemitério de Rafard. Fiquei na casa dos nonos e da esquina eu via a procissão, uma quadra acima.

Ele tinha apenas quarenta anos de idade, completados um mês antes. Eu não sabia, mas naquela tarde chuvosa de 1968 eu me despedia de meu pai. Que era um homem bom e trabalhador.

(Publicado originalmente em 19 de julho de 2018 no meu Facebook - Luís Antônio Albiero)

15/07/2018

O Melhor da Cidade

Um conterrâneo e velho conhecido fez uma sugestão ao grupo "Capivari Melhor", do qual ambos éramos integrantes, que me ensejou a seguinte resposta.

Isso foi em 2018:

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Meu caro Carlinhos G***, que decepção tive ao ler esse seu infeliz comentário, logo vindo de você, a quem reputo uma pessoa inteligente, sensata, cordial.

A ideia de que nós, petistas - que antes de sermos petistas somos capivarianos iguais a você -, deixemos o grupo para nos confinarmos num agrupamento de que participem apenas os que pensam igual a nós emparelha com ideias que, no passado, levaram um certo governante alemão a confinar judeus em fazendas cercadas por alambrados e soldados. Daí a querer nossa extinção em câmaras de gás será um pulinho...

Meu caro, faço um apelo à sua inteligência e ao bom senso que ainda creio que habite em seu ser.

Você nos chama de "fanáticos". Eu pergunto: o que é o "fanatismo"?

E eu mesmo respondo. Fanatismo é o que exibem pessoas que seguem uma ideia levados apenas pela emoção, por um sentimento, por uma necessidade de adesão tão forte que dispensa o uso da razão, do bom senso, do raciocínio lógico e inteligente.

Fanático é, por exemplo, o sujeito que crê mais na cura por oração do que na medicina que muitas vezes ele próprio pratica. Fanático é o sujeito que se deixa levar por pré-concepções, por ideias preconcebidas, ou seja, por preconceito, do qual se origina o ódio, que cega e que mata.

Pois preste atenção nas nossas postagens e compare-as às dos outros, dos que se opõem a nós.

Nós acreditamos no debate civilizado de ideias. Por isso trazemos ao grupo argumentos, razões, fatos históricos, dados estatísticos, que embasam os ideais que defendemos.

Defendemos Lula pelo que fez pelo Brasil, em favor da economia, das empresas, pela criação de empregos e valorização dos salários, mas principalmente pelo que fez pelos mais pobres, a quem salvou da morte pela fome ou da exclusão social (foram mais de trinta milhões de brasileiros retirados da miséria), a quem levou esperança e oportunidades, a quem fez ingressar no mercado de consumo, nos shoppings centers, nos aeroportos e nas universidades independentemente da cor, do sexo, da origem, da classe social.

Lula fez o que fez e não se locupletou - tanto que foi necessário fazer um verdadeiro contorcionismo jurídico para condená-lo por um "apertamento" de quinta categoria que nunca foi dele, no qual ele jamais pernoitou uma única noite sequer, cujas chaves nem ao menos lhe foram entregues. Enfim, essa história estamos cansados de saber, e as máscaras começam a cair, a verdade aos poucos tem vindo à tona.

Do outro lado, dos que se opõem ao nosso pensamento, o que vemos? Pessoas que vão votar num troglodita defensor de métodos violentos, homofóbico e preconceituoso, e que nem sabem por que nele pretendem votar. Dizem que vão votar porque vão e ponto final. Não conseguem expor uma razão, até porque se se guiassem pela razão escolheriam qualquer outro candidato, menos esse.

Mas é a nós, que fornecemos razões, fatos, argumentos, que você chama de "fanáticos"!

Devemos ser, portanto, mais de trinta milhões de fanáticos. Aliás, devemos ser um país de fanáticos, pois Lula deixou a presidência com quase 90% de aprovação ao seu governo, sendo que a aprovação à sua pessoa superava esse limite.

Seu legado foi tão forte, tão portentoso que ele elegeu e reelegeu sua sucessora e agora, mesmo preso, mesmo sendo calado, massacrado pela mídia dia após dia, noite após noite, ele segue liderando todas - TODAS! - as pesquisas de intenção de votos. E tem o dobro das intenções do ogro que aparece em segundo lugar!

Se somos fanáticos, estamos bem acompanhados, meu caro, por gente do nível de um Chico Buarque, de um Paulo Betti, Marieta Severo. De Leonardo Boff, frei Betto, dom Angélico. De Jessé de Souza, Raduan Nassar, como fanático devia, segundo sua ótica enviesada, o saudoso Ariano Suassuna. Estamos ao lado de Perez Esquivel, Noam Chomsky, Jorge Mario Bergoglio (mais conhecido como Franciscus), Leonardo Padura. De incontáveis líderes e chefes de Estado de todo o mundo que querem Lula livre, candidato e eleito presidente.

Quanto à finalidade deste grupo, eu faço minhas as palavras do amigo Ovídio Panserini. Para que serve? A que será que se destina?

Levando em conta o nome, "Capivari Melhor", devo dizer que certamente não foi criado para reunir "o melhor" da cidade, a "nata" da sociedade, pois se fosse esse o objetivo eu me recusaria a participar. Não me agrada a soberba, a arrogância dos que se acham melhores do que os outros.

Quero crer que tenha sido criado com o objetivo de debatermos o que é possível fazer para que tenhamos uma "Capivari melhor", o que necessariamente passa pela discussão sobre como tornarmos este estado de São Paulo melhor, assim como nosso Brasil melhor - sobretudo neste momento de eleições estaduais e nacionais. Afinal, não somos uma ilha e o desenvolvimento de qualquer cidade depende do desenvolvimento do país, do estado, da região a que pertence.

Por isso, meu caro, nestes tempos de intolerância aguda, de certezas fulminantes, de ânimos acirrados, pessoas como você devem exercitar a tolerância, a compreensão, o respeito ao pensamento divergente.

Se quer continuar gozando do meu respeito (se bem que você o terá sempre, em qualquer circunstância), da minha admiração - se é que você julga isso importante -, eu lhe peço, por gentileza, não nos chame de fanáticos. Não nos confunda com os fanáticos, muitos dos quais estão por aqui, e talvez isso seja a causa da confusão.

E não deseje mais que nós nos confinemos e permaneçamos num grupo distante aguardando como cordeirinhos nossa eliminação numa câmara de gás, ainda que virtual.

De resto, façamos deste espaço um local de efetivo debate de ideias, em que cada um respeite as razões do outro e que todos saibamos expor nossos pontos de vista com a inteligência, com a serenidade, com a civilidade com que Luciana expõe. Eu tenho muito orgulho de tê-la como esposa, uma pessoa inteligente, com pensamentos próprios, como poucas pessoas aqui têm, e que os expõe com invejável capacidade. Aproveitem, ao invés de gastarem energia e pobreza de argumentos tentando desqualificá-la.

É do debate que nasce a luz.

Só assim, num ambiente verdadeiramente democrático, é que poderemos fazer da nossa Capivari uma cidade de fato melhor, em que todos nós possamos viver e conviver em paz, sem exclusão de ninguém.