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17/11/2018

Guardinhas Empoderados

Por ocasião da assinatura do trágico Ato Institucional n° 5 (AI-5), o então vice-presidente da República Pedro Aleixo teria comentado que o que preocupa numa ditadura não é o governo central, mas o guardinha da esquina. Ele se referia ao cidadão comum que se sente empoderado para agir segundo suas próprias convicções, acreditando atuar como um braço, um "longa manus" do governante, em cujo nome comete atrocidades com aura de dever cívico, uma missão a ser cumprida.

Nos anos Sarney e sua atabalhoada política de controle de preços - vã tentativa de barrar uma inflação que chegava a quase cem por cento ao mês -, tornaram-se célebres os autodenominados "fiscais do Sarney", gente do povo que denunciava à polícia comerciantes e estabelecimentos que descumpriam o tabelamento de preços imposto pelo governo federal. Isso em pleno período de retomada da Democracia.

Hoje vivenciamos algo parecido que reafirma e confirma a preocupação de Golbery. Incentivados pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, o Messias, pessoas filmam e denunciam professores que, a seu ver, estariam tentando "doutrinar" seus filhos. São os "Fiscais do Bolsonaro". Sentem-se imbuídos de uma missão cívica e, mais grave, empoderados pela exortação de própria voz do presidente apenas eleito, que ainda sequer tomou posse, embora já tenha feito muitos estragos por conta de sua verborragia impensada e movida a preconceito ideológico.

Casos assim se multiplicam todos os dias e, quando os destaco a amigos que exerceram o direito de votar num candidato a ditador - o que respeito profundamente, embora não compreenda tamanho desperdício de oportunidade -, professores me acusam de "torcer contra" o Brasil. Explicar a essa gente que fazer oposição não é torcer, é lutar, e não contra, mas a favor do país, é tentativa vã e inglória. Não há o que os faça compreender. Déficit de democracia, talvez. Ou de cognição, diria Marilena Chauí.

E o futuro governo não está nem fazendo a "volta de apresentação", ainda. Imagine quando de fato e de direito for dada a largada.

Nuvens negras se formam no horizonte próximo, prenunciando dias sombrios, de raios, trovões e muitas pancadas fortes.

(Luís Antônio Albiero, em Capivari, SP, aos 17 de novembro de 2018)

11/11/2018

Um Canalha a Menos

Estava contando há pouco ao meu filho, que tem 21 anos de idade, sobre minha infância e juventude.

Dizia eu a ele do xodó que eu tinha por um radinho a pilha, vermelho, que eu retirei ao final do pagamento feito "religiosamente em dia" de um carnê do Baú da Felicidade, do Sílvio Santos. Pagávamos o carnê na esperança de ganhar um automóvel ou a chance de participar do programa dominical que ele apresentava, então na Rede Globo.

Ao final do pagamento do carnê - em geral feito em doze ou 24 parcelas mensais -, quem não era sorteado a nada tinha direito a retirar um brinde. Dona Edith Domingues era a representante do Baú em Capivari. Eu me lembro de minha mãe ter retirado um conjunto de pratos, outro de café; eu, certa feita, retirei uma bola de basquete. Mas em dada ocasião fomos a Piracicaba, onde havia uma espécie de loja do Baú com mais opções do que dona Edith armazenava em sua casa. Foi lá que escolhi o radinho.

Eu dormia com o rádio. Adorava ouvir a música suave que tocava na Jovem Pan, nas madrugadas. Acordava ouvindo o Jornal da Manhã. "Sete e trinta e cinco. Repita. Sete e trinta e cinco", diziam, alternadamente, os dois locutores. Não era o jornalismo de extrema-direita que a velha Pan hoje pratica, mas já havia um claro viés à direita, que se tornou mais visível quando a emissora contratou como comentarista, uma espécie de âncora, o insosso João Melão Neto, que posteriormente viria a se tornar deputado com forte atuação em favor do empresariado. Havia Randal Juliano, Wilson Fittipaldi, o "Barão", pai dos pilotos Emerson e Wilsinho, avô de Christian, e Joseval Peixoto, que, salvo engano, ainda hoje apresenta um jornal no SBT ao lado da extremista Rachel Sheherazade.

Iniciava minha jornada diária no Bar do Tota, meu tio, ouvindo, num rádio bem antigo, ainda a válvula, o programa do radialista Gil Gomes. Eram crônicas diárias sobre fatos policiais. Gil era severo com a criminalidade, mas jamais esquecerei de um dia em que ele fez uma pregação contra a pena de morte, um raro momento de lucidez naquele ambiente criminal.

Ao final do programa, com sua voz e entonação peculiares, Gil fazia uma exortação aos ouvintes para que agissem corretamente e encerrava o programa dizendo: "você pode não consertar o mundo, mas tenha certeza de uma coisa: na terra haverá um canalha a menos!" E concluía com o célebre bordão "Gil Gomes lhes diz bom dia!"

Tempos depois, meu tio trocou Gil Gomes por um programa similar, na rádio Record, apresentado por Afanásio Jazadji. Pense num Datena piorado, radicalizado. Era o próprio!

Esse meu tio, quando queria me ofender - o que ocorria quase sempre -, me chamava de "baiano". "Baianada" era sinônimo de coisa errada, de qualquer "burrada" que eu cometesse.

Tudo isso para dizer que minha infância e juventude foram cercadas por conceitos de direita. Meus professores passaram longe de ser os doutrinadores de esquerda de que hoje toda a classe é acusada.

Apesar da atmosfera de direita, conservadora, preconceituosa, retrógrada, em que eu vivia mergulhado, fui construindo meu caráter à esquerda. Escapei, mas muitos não foram capazes. Amigos de infância, colegas de classe dos primeiros anos escolares, muitos a quem sempre admirei por sua inteligência acima da média, quase todos hoje profissionais bem sucedidos, não se envergonham de estarem aliados ao que há de mais atrasado no cenário político.

Na dia de hoje, uma dessas colegas de classe, por quem cheguei a nutrir mais do que simples admiração, me chamou de esquerdopata e riu ao saber que contribuí financeiramente com a campanha de Fernando Haddad. Ela jamais saberá, apesar de toda inteligência cartesiana de que é dotada e tanto se orgulha, o que é lutar efetivamente para construir uma sociedade justa e igualitária. Jamais compreenderá a importância de um partido político. Dificilmente terá clareza do que sejam sentimentos como fraternidade e solidariedade.

Hoje vejo que Bolsonaro, na verdade, é fruto dessa doutrinação de direita iniciada durante os governos militares, que foi se impondo lentamente ao longo dos anos e não se limitou à sala de aula. E que agora mira contra uma "doutrinação de esquerda" que jamais existiu.

(Luís Antônio Albiero, Capivari, SP)