Casa Literária de Luís Antônio AlbieroBibliotecaCONTOLuís Antônio Albieroago 17, 2025
A Coroa andava insatisfeita com o andar da carruagem. Queixavam-se os mais elevados membros da Corte dos constantes solavancos que experimentavam em seus percursos pelos pedregosos caminhos do reino.
A roda nos tempos das cavernas, segundo a imaginação dos criadores d’Os Flintstones, o clássico dos desenhos animados.
O desconforto de estar no interior de uma carruagem durante horas era mesmo insuportável. O próprio rei irritava-se com os banhos de poeira que costumava tomar a cada visita aos arrabaldes da capital e aos rincões do país. Abespinhavam-no sobretudo as derrapagens comuns nos trechos de terra molhada, em que as rodas pareciam deliberar por interromper a viagem.
A insuportabilidade chegou a tal ponto que Sua Alteza tomou uma decisão drástica, que vinha protelando desde priscas eras. Era chegada a hora de convocar uma assembleia nacional para decidir um novo formato para a roda.
Convocaram-se todos os ministros, subministros, governadores das províncias e seus deputados e desembargadores, alcaides, edis, juízes de paz e de fora das mais distantes aldeias. Foi uma convulsão nacional. Milhares de carruagens rodaram de todas as partes do país com destino à capital, algumas por dias e noites que pareciam intermináveis. Motejava-se que tanto pó descolado do chão faria tossir o sol e a lua.
Foram chamados também todos os integrantes da corte, dos condes aos barões, bem assim os plebeus que, por sua magnanimidade ou, quase sempre, por significativa demonstração de subserviência a Sua Majestade, foram honrados com títulos outorgados pela Coroa, os cavaleiros, os coronéis e os comendadores de todas as plagas.
De longe, era a convenção mais numerosa e, por consequência, de maior importância de toda a história do reino, quiçá de toda a humanidade.
Rodaram-se circulares em que se imprimiram as milhares de propostas, que foram distribuídas aos convencionais da roda, assim designados pelos historiadores e cientistas políticos patrícios. Todos eles, instalados em acomodações precárias, porque a capital, embora capital, era modesta em face de tão expressiva multidão, tiveram de ler e examinar cada novo formato proposto para a roda.
Encetaram-se as mais diversas teorias, da circularidade do quadrado à quadratura do círculo. E em círculos rodava a imaginação dos convencionais, que nada original conseguiam produzir. A roda continuava orbicular e achatada.
Testaram-se novos eixos, inventaram-se amortecedores, reforçaram-se as porcas e os parafusos, mas nada dava conta. Os solavancos continuavam, as estradas seguiam cheias de pedras e buracos, a chuva persistia em molhá-las e elas, com a bonança, insistiam em produzir poeira que o movimento das rodas elevava e o vento se incumbia de espalhar.
Gastaram-se milhões, depois bilhões, quase se chegou ao trilhão de dinheiros do erário real, que por muito pouco não foi à bancarrota, em gastos com a estadia dos convencionais, em projetos e testes, e os resultados foram nulos. A roda era persistente em sua circularidade e estreiteza e em produzir chacoalhões.
Nada do que era transportado pelas carruagens resistia aos trancos e barrancos, tudo que não estivesse perfeitamente acomodado tombava ao piso do veículo ou ao chão da estrada. Malas e objetos preciosos chegaram a cair de cima das diligências, o que só fora percebido ao final da viagem. Houve mesmo quem propusesse revogar a lei da gravidade, o que restou aprovado, certo que por apertada maioria simples, e ainda assim os resultados continuaram exatamente os mesmos.
Do mais longínquo rincão do reino viera o Barão de Rodávia, um homem simplório de seus setenta e tantos anos que passara a vida fabricando rodas para as carruagens de sua região, enriquecera e comprara o título de nobreza. Partiu dele a sugestão de refazê-las como se jamais houvessem existido. A ideia era removimentar a roda da História a partir do zero.
O barão era um exímio artesão das rodas, não apenas na arte do ofício como também no conhecimento da história do objeto que produzia. E foi por sua experiência que ele sugeriu que, antes de prosseguirem os trabalhos dos convencionais, fossem suspensos os estéreis discursos e se nomeasse um peticomitê (petit-comité, no original francês) que se encarregaria de produzir uma roda de madeira maciça, como assim fora feito havia quase seis mil anos em Ur, na Mesopotâmia.
Passada a primeira semana, a obra foi apresentada pelo peticomitê ao conjunto dos convencionais. Posta à prova, percebeu-se que a roda de madeira maciça pesava muito e o custo-benefício não a recomendava, em especial porque os balanços das carruagens persistiam.
Partiu-se então para o novo projeto, construir uma roda com raios, o que a tornaria mais leve do que a de madeira maciça. Assim houvera sido na Europa, Ásia Menor e China, simultaneamente, há dois mil anos, nos exatos tempos em que o filho de Deus caminhara, ele mesmo, com seus próprios pés, pelo plano terreno. Foi o que disse o Barão de Rodávia, para quem a contemporaneidade com figura histórica tão ilustre e dotada de especial santidade haveria de trazer resultados milagrosos à roda, mas assim não se deu. Os raios se rompiam com recorrência quando expostos à pedregosidade das estradas do reino.
O Barão de Rodávia lembrou-se então de que os celtas, na Europa Ocidental, mil anos depois, passaram a cobrir com uma capa de metal as rodas de suas carruagens, o que teria aumentado sua resistência e durabilidade.
De fato, os convencionais puderam constatar que assim se deu com as rodas de suas carruagens, mas, testadas nas estradas do reino, as sacudidas, o poeirão, o barreiro, as quedas dos objetos, tudo continuava exatamente como dantes.
Coronel Argemiro de Nigromante, que nos primórdios de sua vida útil fora carroceiro, contemplado com o coronelato por ter combatido as forças populares que se insurgiram contra a Coroa, chegou a vaticinar que dia haveria em que as rodas passariam a ser feitas com metal e recobertas com algum produto a um tempo firme e macio. Lamentou, entrementes, que as técnicas até então conhecidas e desenvolvidas em seu tempo ainda não permitiam tais regalias.
Foi então que Rodário Pedroso, o Marquês de Poeiral, apregoou que, por mais que se alterasse o formato das rodas e se aprimorasse a qualidade dos amortecedores, enquanto as estradas continuassem pedrentas e esburacadas e por todo o tempo em que prevalecesse a lei da gravidade, a chuva molhasse a terra, o sol insistisse em secá-la e o vento continuasse a cometer a maldade de espalhar a poeira, de nada adiantariam os avanços técnicos que as aperfeiçoassem.
Tampouco haveria modificação do estado de coisas enquanto as carruagens fossem puxadas por tração animal e conduzidas por força humana.
E prosseguiu profetizando o marquês, dizendo que quando a terra das estradas fosse, enfim, revestida por material que reduzisse o atrito, o animal que puxa a carruagem e o que a conduz seriam estimulados a imprimir-lhe velocidade cada vez maior, de sorte que os solavancos seguiriam ocorrentes, agravados por acidentes danosos, por vezes fatais.
Sentenciou o visionário que a insatisfação humana é infinita e, por mais que se aprimorem as rodas e se aplainem as estradas, nada mudará enquanto for o mesmo o caráter de quem conduz sua movimentação e de quem vai dentro da carruagem.
O Barão de Rodávia, decano dos convencionais, propôs então que se decretasse o fim da roda. Afinal, lembrou o artesão das rodas e experto em sua história, mesmo depois do advento da agricultura e da cerâmica a humanidade viveu três milênios sem conhecer o artefato.
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