14/06/2025

Um nome para minha IA (#34)

Minha “IA” (sigla utilizada para designar inteligência artificial) ainda nem foi concebida, mas já tem nome.

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Dar nome é algo importante. Está na Bíblia, logo no Gênesis, versículos 19 e 20. Contam as sagradas escrituras que Deus concluiu a criação de todo animal do campo e de toda ave dos céus e os levou a Adão, “para este ver como lhes chamaria”; e tudo o que Adão chamou, a toda a alma vivente, “isso foi o seu nome”.

Ainda não havia pessoas a batizar, por evidente, pela singela razão de que as duas únicas existentes vieram já com os nomes de fábrica, mas coube ao macho do casal recém-criado dar nome às coisas, aos animais, aos fenômenos da natureza e a toda Criação que o cercava, incluindo Caim, Abel e toda a prole (frutos de flagrante e inevitável incesto, mas viremos essa página). Era o que, milênios depois, viria a ser chamado de poder de “dar nomes aos bois”, como lembra o escrivão, personagem de um dos meus contos, do que dá nome ao livro “O Onomaturgo e Outras Histórias”, com lançamento agendado para 19 de julho próximo.

Num outro conto, que ainda nem publiquei e que ficará para o próximo livro, narro um episódio na vida de um primeiro casal humano, o meu “Gênesis” particular (essa minha mania e de todo escritor de brincar de Deus!), o nascimento do seu primeiro rebento, uma menina. Eles não falam, como é de se supor da primeira leva de hominídeos da História, os homo sapiens de que descendemos; apenas emitem grunhidos, a par de outros meios naturais e intuitivos de comunicação. Nessa narrativa, faço uma ilação sobre quais devem ter sido e como teriam surgido as primeiras palavras pronunciadas, que, parece-me evidente, hão de ter servido para designar cada membro da família primígena.

Não haveria de ser diferente com os idealizadores das primeiras invenções a que denominaram “inteligência artificial”, gênios que desde logo pensaram nos respectivos nomes próprios. E como o objetivo de tais inventos é, e sempre foi, substituir os humanos, nada mais natural que as ditas fossem dotadas de nomes humanos.

Assim é que no filme “Her” o escritor protagonista vivido por Joaquin Phoenix, por exemplo, apaixona-se por Samantha, um computador com quem conversa como se fosse gente. No célebre “Inteligência Artificial”, a própria é um androide infantil chamado David. No clássico “Blade Runner”, o principal androide tem por nome Roy Batty.

Theodore (Joaquin Phoenix) dialoga com Samantha, em cena do filme Her

A ideia inspirou empresas do mundo real, como a Amazon, cujo robô virtual recebeu na pia batismal do deus capitalismo o nome feminino Alexa. Outras lhe sucederam, inclusive em terras brasileiras, como as assistentes digitais de lojas como Magazine Luiza (a Lu) a bancos, como o Bradesco (a Bia). Até nosso glorioso Supremo Tribunal Federal entrou na roda e criou sua Maria.

A Apple inventou uma certa ou certo Siri (ainda não fomos apresentados, não faço ideia de que apito toca), que não é exatamente um nome humano, tampouco parece feminino, mas passa como apelido, como Lula, a exemplo do nosso estimado presidente; talvez seja uma forma sincopada de Siriguejo, nome do caranguejo ganancioso dos desenhos animados, patrão do eterno funcionário do mês Bob Esponja — se bem que o nome original, em inglês, é Krabs, o que destrói a possibilidade de que minha tese seja procedente.

Nessa linha onomatúrgica, pensei num nome para a “IA” que resolvi criar. Para quê? A ideia da finalidade só me surgiu agora, exatamente neste momento em que escrevo este parágrafo: para atender de modo virtual os interessados em adquirir minhas futuras obras impressas. Por sinal, deixo registrado que estas, as minhas obras, minha criação literária, jamais serão fruto dessa tal inteligência artificial. Sou apegado à minha burrice natural e dela não abro mão.

Será, assim, uma espécie moderna de “secretária eletrônica”, a atendente virtual falecida tão jovem, em tempos nem tão remotos, embora suficientes para denunciar a longa jornada de vida de quem, como eu, conheceu e ainda se lembra da pranteada extinta.

Pensei no nome que considero ideal para minha IA: “Iaiá”. Isso mesmo, como Iaiá Garcia, personagem de Machado de Assis que dá nome ao célebre romance do mestre maior da literatura brasileira.

Sei que não é exatamente um nome, no sentido próprio, apenas um designativo, uma forma carinhosa de chamar alguém. Iaiá era como os africanos escravizados chamavam as moças e as meninas de então. Suponho seja corruptela de sinhá, que virou nhanhá, que se transformou em iaiá.

De todo modo, representa uma personagem, uma versão ficcional de alguém real. Olha que pertinente! E, de quebra, remete ao maior escritor que este país já produziu, o que pode ser sinal de descarada pretensão, tão elevada quão descabida, deste pobre plumitivo.

Então, é isso. Quase como o próprio Deus, aliás, mais ousado do que Ele, dou por boa minha obra, mesmo ainda não realizada, apenas idealizada. Agora só me falta desenvolvê-la. Vem logo, Iaiá!

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NOTA: eventuais alterações podem ser feitas a qualquer momento pelo autor na publicação original, aqui.


13/06/2025

É tudo líquido

Carlos Rios, bancário, sente-se satisfeito aos cinquenta e nove anos de idade com seu salário bruto de quase sessenta mil reais por ano, dono de um Verona que comprou zero quilômetro em 1996 e quitou em trinta e seis prestações, renegociadas por mais doze, seguidas de outras doze.

Imagem: PinterestImagem: Pinterest

Ao tempo da aquisição, conheceu Aleteia que, com ares de recatada, costumava atendê-lo na única videolocadora da cidade. Era bela e o cativara por sua timidez, que Carlos interpretara como demonstração de confiabilidade.

No início, era constrangedor. Carlos entrava na loja, percorria em silêncio as gôndolas, escondendo-se para não ser visto; examinava as caixinhas, lia algumas sinopses dos filmes, mas não escapava às orientações da atendente. Aproveitava a promoção de fim de semana e alugava três videocassetes de filmes clássicos, ditos cult, que Aleteia lhe indicava, para no meio deles meter dois pornográficos, que eram os a que de fato ele assistiria. Acostumada com expedientes tais, nada dizia a doce menina, dez anos mais jovem do que o elegante funcionário do banco ao lado. Era letrada, romântica, devoradora de romances de alta vendagem, em geral sem muita densidade literária, e conhecia toda a filmografia disponível no estabelecimento.

A reiteração da conduta dissimulada para escolher os vídeos com a discrição a que Carlos se impunha, que sempre concluía com a cumplicidade de Aleteia, levou-os à confiança mútua que lhes abriu portas para a intimidade. Meses depois viram-se casados, iniciando esperançosos a vida a dois, que o destino anunciava a sete trombetas que tinha tudo para dar certo.

De fato, a vida os colheu no primeiro quarto do novo século ainda casados, crendo-se felizes cada qual a seu modo. Carlos se diz um marido feliz porque tem um bom emprego, que lhe garante o status de bem-sucedido perante os seus, dono de uma casinha financiada pelo mesmo banco que o emprega, que paga mediante descontos em seu salário a juros subsidiados pelo governo que ele vive a maldizer, e o Verona verde, sua paixão, comprado no último ano de fabricação do modelo, que sobrevive à custa de constantes visitas e internações em oficinas mecânicas. Aleteia, porque busca em outros braços, em leitos estranhos, a felicidade que cansou de não encontrar no próprio lar.

Tudo parece bem e Carlos está a assim pensar na fila do supermercado em que se encontra. Tão bem se sente que se permite, em palestra aos circunstantes, espicaçar o governo por querer taxar os que ganham acima de um milhão de reais por mês só para compensar, vejam só se pode uma coisa dessa!, a isenção no imposto de renda que pretende conceder aos que recebem salário de até cinco mil mensais. Não que seja contra a concessão em favor dos mais pobres, mas que não custe o preço de lesar os que são a mola propulsora do nosso progresso, vocifera como se pertencesse à casta superior.

Repete em voz alta a conhecidos e estranhos da fila do caixa, como faz no banco para os clientes, os números e a retórica que ouve de especialistas em reportagens a que assiste no telejornal, sob insuspeito patrocínio da instituição financeira que o emprega. Carlos Rios empresta a tais comentaristas sua assinatura em garantia fiduciária cravando que é bancário há mais de trinta anos e sabe do que está falando.

Está prestes a completar sessenta anos de idade, aposentar-se, e só lamenta não ter ainda atingido a idade oficial dos idosos porque, apesar das cãs que lhe cobrem a cabeça como a neve à velha montanha, não pode ainda fazer uso das vagas preferenciais de estacionamento, nem gozar da prioridade nas filas de espera, mas jura que não faz questão.

Súbito, Carlos se dá conta de que ao lado, na fila preferencial, há uma mulher que carrega um bebê de colo. Repara que é uma senhora cuja idade lhe parece inverossímil a uma mãe puérpera, e muito moça para ser avó. Senhor de suas certezas, não tem dúvida de que se trata de um boneco de silicone, inerte nos braços da falsa mãe, usado apenas como artimanha para garantir preferência no atendimento. E ele atrasado, parado, aguardando sua vez numa fila interminável, contando os minutos que faltam para bater o ponto no trabalho.

Decide impor sua convicção e o que julga seu direito e vai às falas com a mulher, que retruca, faz juras de que não é um bebê reborn, que não faz ideia do que o estranho está falando, que seu filho é sim uma criança de verdade. Tomado por incontível ira em face de tamanha ignomínia, Carlos desfere um tapa no bebê com tal violência que a criança cai dos braços da mãe, vai ao chão e abre um choro doloroso regado ao sangue que esvai de um corte na nuca. É prontamente socorrida e o bancário, detido pelos seguranças, é levado preso em flagrante.

Ao delegado, pede mil desculpas, explica que se enganou, que tem visto na internet tantos casos de mulheres que para obter preferência de atendimento munem-se de bonecos de silicone como se fossem bebês de carne e osso, argumenta que a senhora já não tem idade para ser mãe recente, tampouco para ser avó e que ele é já um idoso, embora ainda não nos estritos termos da oficialidade.

O delegado lavra o flagrante e, compreensivo, cede ao espírito cristão recém adquirido no mercadinho da fé mais próximo de sua casa e se lhe firma a convicção de que de fato não houve dolo, de que Carlos não teve a intenção de matar, que foi induzido ao erro pelas circunstâncias. Ademais e afinal de contas, por sorte a criança sobreviveu. Já não corre risco de morrer, sofreu apenas fraturas e escoriações. O doutor libera-o mediante a paga de módica fiança e à conta do perdão que lhe foi ensinado nas aulas dominicais da igreja que passou a frequentar.

O caso explode na mídia com sensacionalismo, imagens obtidas pela câmera do supermercado viralizam na internet e Carlos perde o emprego, menos por conta da repercussão do que por sua profissão encontrar-se em vias de extinção.

Desgraça é visita que nunca vem desacompanhada e chega sempre nas horas impróprias. Não bastasse estar desempregado e sem outra qualificação, descobre por acaso a verdade sobre Aleteia, que há tempos vem traindo-o com seu antigo chefe, o gerente do banco, logo ele, um de seus melhores amigos desde os tempos de colégio.

Sem recursos para continuar pagando o financiamento da casa comprada no longínquo extremo leste da cidade, perde-a para o banco, o mesmo que até semanas antes o empregava e em nome do qual dedicava-se a convencer os clientes a fazerem negócios financeiros dos quais eles não necessitavam, a taxas de juros escorchantes.

Só, sem emprego e salário, condenado pela sociedade e pela justiça, vê-se numa tarde nublada de inverno sentado na calçada defronte sua antiga casa, com os móveis depositados num velho caminhão de aluguel, sem saber para onde levar o quase nada que lhe sobrou.

Agachado na sarjeta, cabisbaixo, cotovelos sobre os joelhos, as mãos segurando a cabeça, lembra-se dos bons tempos da videolocadora e das fitas que já não mais existem, pensa na antiga profissão que aos poucos se extingue, que por mais de três décadas lhe consumiu as forças, os sonhos e as oportunidades; lamenta a ausência de outra qualificação, ressente-se da felicidade conjugal jamais alcançada em plenitude, da fidelidade não correspondida, e pragueja contra a falsidade de Aleteia.

Pensa nos bebês de plástico, nos negócios lesivos que firmou em nome de seu ex-empregador com promessas de ganhos extraordinários, no bom salário que para tão pouco dava e que se foi, na casinha que se foi sem jamais ter-lhe vindo às inteiras, no Verona que não se fabrica mais desde que o comprou e que Aleteia levou consigo na divisão dos bens por ocasião do divórcio.

Conjectura que a realidade em que vive, líquida e voraz, é como um rio cuja correnteza, cortando um mundo povoado por bonecos de madeira regidos por um invisível Gepeto universal, a tudo e a todos arrasta rumo à concretude das rochas que o aguardam no fundo da queda d’água.

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NOTA: eventuais alterações podem ser feitas a qualquer momento pelo autor na publicação original, aqui.