17/12/2025

Raiou um santo dia

Crônica
Luís Antônio Albiero
dez 17, 2025

Os dias raiam em sequência infinita, desde sempre e para todo o sempre.

Num desses, eis que veio à luz mais um ser humano. Nasceu sem nome e, como esperado, a mania histórica das pessoas que se pretendem civilizadas pôs em polvorosa os pais, que até o momento de nascer não haviam dispensado um único segundo para pensar e decidir como o chamariam.

Objetará, com razão, o astuto leitor que se trata de preocupação precedente à civilização humana. Não tenho como aderir à teoria, mas admitamo-la, para fluxo ordinário da narrativa.

O pai olhou para o menino, viu nele algo inexplicável e sugeriu, não sem um certo entusiasmo:

— Óchito!

— Muito chique — objetou a mãe, sem pestanejar. — Nóis é pobre — lembrou, a título de dar uma explicação.

O pai pensou mais um segundo, endereçou novo olhar ao rebento e fez uma segunda proposta:

— Raiam.

A mãe fez uma cara assim assim, torceu o nariz, mordiscou os próprios lábios, coçou o interior da orelha direita.

— Gostei — concluiu.

— Vi num filme americano — revelou o pai, sorrindo de satisfação.

— Não importa. É chique também, mas lembra raio de sol, que é de todo mundo. Meu menino é iluminado.

Ilustração gerada pelo Substack
Ilustração gerada pelo Substack

— Raiam Dias, então — pensou alto o pai.

— Não esqueceu nada não?

— Esqueci do quê?

— De mim. Que o menino tem mãe…

— Uai, claro que não esqueci. Por que ‘cê ‘tá me dizendo isso?

— Santos, hômi! Meu sobrenome, ara essa. Quero que o menino tenha meu sobrenome também. Não é justo?

— Tá bom — consentiu o marido. — Então vai ser Raiam Santos Dias.

E desde então os dias, uns santos, outros nem tanto, continuaram raiando em sua sequência sem fim.

14/12/2025

Crime de Dosimetria

CONTO

Luís Antônio Albiero
dez 14, 2025

A barulheira provocada pelo abrir e bater de portas da viatura que acabara de estacionar diante do fórum assustou um casal de maritacas que dormitava debaixo do beiral do prédio. Elas saíram em revoada, grasnando forte, como se reclamassem. Fazia um dia bonito, de muito sol.

Blindado, um jovem entroncado de pouco mais de trinta anos, entrou na sala de audiências escoltado por um policial militar e uma agente carcerária. 

Puseram-no sentado no banco destinado aos réus, defronte a escrivaninha ocupada pela bela escrevente, loura de olhos verdes, e seu computador; retiraram-lhe as algemas e se afastaram, mantendo-se ambos em pé, próximos da porta de entrada.

O advogado já estava em seu posto, sentado à mesa baixa, e palestrava amistosamente com o juiz, cuja mesa, disposta em perpendicular à outra, ficava sobre um tablado, de modo que o colocava em posição de superioridade em relação aos demais. Sobre ele, na parede, havia uma cruz.

O promotor, um homem esguio e muito lhano, de meia idade e bigodinho à mexicana, foi o último a chegar, quando a escrevente já havia registrado os dados pessoais do acusado.

A primeira pergunta do juiz deveria ter sido se Blindado sabia do que estava sendo acusado e se já havia sido preso ou processado anteriormente, mas o doutor Alessandro Karanão Rodrigues, de voz anasalada, o que lhe conferia certa infantilidade, pele muito alva e traços duros, não resistiu e quis logo saber a razão do curioso apelido.

O réu respondeu que havia recebido o codinome na ocasião em que fora preso pela primeira vez, anos atrás, quando teve – adiantou-se a dizer – participação mínima num assalto a banco.

– Participação mínima… – repetiu o juiz, em tom de deboche.

O acusado seguiu explicando que apenas ficara do lado de fora do banco, vigiando eventual chegada da polícia, e que, no cárcere, orientava os demais parceiros de cela sobre as penas de cada crime: roubo, furto, homicídio; qualificadoras, agravantes, atenuantes, progressão de pena. 

Ilustração: Freepik e Substack

— O senhor sabe qual a menor pena prevista no código penal? — perguntou Blindado ao presidente da audiência, que preferiu ficar em silêncio e apenas ouvir o que o réu tinha a lhe dizer.

— O senhor deve saber que é o crime de rixa, detenção de quinze dias a dois meses. E os de maior pena são os de morte, o homicídio qualificado, o feminicídio, tão em moda atualmente, que preveem reclusão de 20 a 30 anos. Digo sempre que matar nunca é bom, porque leva a penas mais pesadas. Quer roubar? Roube, mas não mate. Estupra, mas não mata — lembra dessa frase?

— Quem não se lembra?— comentou o juiz.

– Eu me especializei nas penas do Código Penal. Costumo fazer combinações para cometer o crime que custem o menor tempo de cadeia para o meu cliente, doutor.

O juiz juntou as mãos, apoiou os cotovelos sobre a mesa e ficou a fitar Blindado, a ponto de o constranger. E, de fato, ele se remexeu no banco dos réus.

– Tá todo mundo se blindando, doutor. Eu me viro como posso.

– Pois é. E o senhor estava em liberdade condicional e não se preocupou, cometeu logo outro crime. Acho que o senhor falhou nessa tarefa de contabilizar as penas, ponderar as circunstâncias.

– Mas eu não sabia que as armas estavam no chão do banco de trás do carro, doutor! — justificou-se Blindado, já entrando no mérito da prisão em flagrante ocorrida no dia anterior.

– Ah, não sabia… Sei… Decerto as armas nem são suas…

– Não são mesmo, excelência. São do meu pai. Ele usa para espantar raposas e lagartos.

– Espantar lagartos… Estou sabendo…

– Verdade, doutor. As raposas devoram o galinheiro. Os lagartos acabam com a plantação de meu pai. Eu vim passear, visitar meus pais, que moram na roça. Eu fui criado na roça. Viemos eu e minha namorada, que trabalha no Ministério Público. Resolvemos dar uma volta no centro da cidade, com o carrinho do velho. Fui parado pelos policiais e… estou aqui.

–Ah, ‘tá. Sua namorada deve ser promotora de justiça, imagino.

O promotor se ajeitou na cadeira, esticando o corpo, redobrando a atenção.

– Não, doutor. É auxiliar, assistente. Acho que é analista.

– E ela com certeza o auxilia na hora de combinar as penas do próximo crime.

– Ah, não! Eu não misturo trabalho com assuntos do coração, excelência!

O magistrado deixou escapar uma risada. Todos o acompanharam, com discrição.

– O problema, doutor, é acompanhar a evolução dos tempos. Toda hora tem deputado que, para aparecer, para lacrar, gosta de alterar a lei para elevar as penas. Basta haver um caso retumbante, toma projeto de lei para agravar a pena, para tornar o crime hediondo, para diminuir os benefícios. Isso atrapalha meu negócio e, claro, acaba valorizando meus… honorários.

– Pelo menos reduz a criminalidade – interveio o promotor.

– Doutor! Doutor… O senhor acha mesmo que bandido, antes de cometer um crime, consulta o código penal, as leis, examina quais as penas menores, quais os crimes que mais valem a pena? Até onde sei, sou o único que faz isso, e presto consultoria para meia dúzia de amigos, apenas isso.

– Mas se a moda pega… Vou acionar a cúpula do Ministério Público para fazer lóbi junto ao Congresso Nacional para criar um novo tipo penal, um novo crime.

– Qual?!? – perguntaram em uníssono o réu e o magistrado.

– Crime de dosimetria. Onde já se viu ficar calculando previamente a dosagem da pena para decidir qual crime cometer!? Isso é um crime! Quero dizer, deve passar a ser crime.

— Doutor, precisa mesmo criar. Chegamos a um tempo em que os deputados agora resolveram fazer o contrário do que sempre fizeram e vão perguntar ao criminoso, na cadeia, o que ele acha, se para ele estará bom reduzir a pena dos crimes que ele cometeu, e pelos quais já foi condenado, para tais e tais penas! Eu, que sou do ramo, acho um absurdo!

– Nisso, concordamos todos. O senhor já pensou em se candidatar a algum cargo público? — indagou o magistrado ao réu.

– Sim, doutor – respondeu Blindado. – Deputado federal, talvez até senador. No Congresso é que está a nata da blindagem. Assim que cumprir minha pena, quem sabe, né?

Encerrado o interrogatório, o promotor se retirou. Os agentes que aguardavam na porta aproximaram-se do acusado para repor-lhe as algemas e levá-lo de volta ao cárcere. O réu, ao assinar o termo, notou que o sobrenome do juiz era Rodrigues.

– Doutor, o senhor sabe que tem muitos Rodrigues na cadeia?

O juiz, que assinava a ata da audiência, elevou o olhar, cravando-o nos olhos do abusado, e comentou:

– É, mas nenhum é parente meu!

— Com certeza, excelência.

Ao se aproximar da porta, o juiz o chamou. Blindado girou o corpo e olhou para o magistrado, que lhe recomendou:

– Não use mais as armas para espantar lagartos, está bem? Da próxima vez, use-as para espantar maus pensamentos.

— Como assim? — quis saber o preso.

O juiz Karanäo juntou as mãos, dobrou os cotovelos e os manteve suspensos no ar. Esticou o enorme dedo indicador da mão direita e abriu o polegar, como se formasse uma arma. Encostou o dedo ereto, pressionando-o com firmeza contra o próprio pescoço, acima do pomo, e disparou um som com a boca:

– Pou!

As maritacas, que haviam retornado ao beiral durante a audiência, saíram em revoada novamente.

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