17/11/2025

As ferramentas

Conto

O fazendeiro Salvador andava nervoso, agitado, preocupado com os rumos do movimento abolicionista que crescia em todo o país. Os líderes do Partido Republicano haviam realizado uma retumbante convenção em Itu, em que uma das maiores bancadas era justamente a da sua própria cidade, formada por amigos seus, outros fazendeiros, e por comerciantes, estudantes, médicos e advogados, todos antimonarquistas. Coronel Salvador os conhecia e não os perdoava; a todos chamava de traidores da pátria.

Retumbante também havia sido a recente fuga liderada pelo preto Pio, escravo de sua fazenda, que partiu de Capivari e foi arregimentando negros de fazendas de municípios vizinhos, Porto Feliz, Tietê, Itu, Sorocaba. Deu-lhe um imenso prejuízo, ainda não precisamente contabilizado.

Antes de tão ousada ignomínia, Pio vinha fazendo seguidas afrontas inadmissíveis, como pedir ao fazendeiro que tratasse os seus irmãos de cor preta com dignidade, como se fossem mesmo dignos de algo além do que já lhes era dado, moradia, comida, diversão e instrumentos para o trabalho. Foi submetido aos castigos impostos pelo fazendeiro, que, todavia, não o impediram de levar adiante o audacioso projeto.

Pio, negro franzino, muito inteligente, iniciado nas letras por iniciativa da falecida esposa do fazendeiro, foi abatido pelas forças do exército imperial em Cubatão, em outubro de 1887, já quando chegava ao quilombo do Jabaquara, em Santos. O episódio, a que José do Patrocínio chamou de “Êxodo de Capivari”, levou a força imperial a informar o imperador, por ofício, que dali por diante não mais se prestaria a caçar negros fugitivos. E o pior, pensava o coronel, é que o imperador pareceu não se importar com tal gesto de insubordinação. “É o rabo abanando o cachorro”, resmungava.

Esses fatos tiravam o sono ao fazendeiro Salvador, um homem já perto dos setenta anos, de faces avermelhadas, lábios finos, pele prejudicada. Era-lhe forte o pressentimento de que o movimento pela abolição dos escravos ganhava corpo no interior da própria Corte. Temia que qualquer dia daqueles o país amanhecesse com a notícia de uma lei que pusesse fim à escravatura, projeto que já vinha sendo discutido não apenas no parlamento, mas pelos jornais, nos bares e nos salões de barbeiro e até entre os proprietários, que debatiam entre si a melhor forma de serem indenizados pelo erário.

O sol iluminava o verde sem fim da fazenda Brasil, que ele contemplava do alpendre de seu portentoso casarão, metido em roupas grossas, chapelão, botas, um cinto vistoso e um chicote sempre à mão. Toda manhã, como cumprisse um ritual, olhava para o sol e agradecia aos céus pela graça divina de ser filho do coronel Salvador Messias, homem valente de quem houvera herdado o caráter e as dezenas de propriedades.

– Quem sai aos seus não degenera – repetia de si para si, como uma oração e um preito de saudade.


“Fazenda com sete porquinhos”, de Tarsila do Amaral (1943), Imagem: internet

A fazenda Brasil era a maior de suas propriedades e a que lhe trazia melhores resultados. Cultivava café e cana-de-açúcar, produzia álcool e cachaça. Havia mais de uma década que, ano após ano, suas fazendas vinham batendo recordes seguidos de produção e lucratividade. Temia que tudo se perdesse por conta da aventura republicana que via desenhar-se no horizonte.

O país vivia um momento de prosperidade, sob a batuta de um imperador de inegável competência, a quem se reconheciam cultura e generosidade; pena que – ressentia-se o coronel – se deixasse levar por sentimentalismos. Achava-o um idealista e cordial demais. Aventureiros se aproveitavam do que lhe parecia falta de firmeza do governante e ameaçavam pôr tudo a perder.

Coronel Salvador convocou Tarciso, o feitor de sua principal fazenda. Determinou-lhe que reunisse todos os escravos e lhes dissesse que a sobrevivência deles dependia de continuarem sob o jugo de seu senhor. Que lhes contasse da morte do preto Pio e que esse seria o fim de quem ousasse repetir-lhe as cantilenas e atitudes.

Tarciso compreendeu a missão e partiu para bem desempenhar o importante papel confiado pelo patrão. Reuniu todos os negros do lugar e começou a sua prédica dizendo:

– A gente está dando pra vocês uma coisa que é fundamental: ferramenta!

O feitor então ergueu uma a uma as ferramentas de trabalho usadas pelos escravos, previamente dispostas ao seu lado para facilitar-lhe a pregação: um podão, uma enxada, um machado, uma pá e um saco, instrumentos que aqueles homens e mulheres bem conheciam.

– Este machado, para que serve? – indagou o feitor, erguendo o instrumento o mais alto que pôde, girando o corpo para que todos o vissem.

Os negros permaneceram em silêncio.

– Vocês sabem, são vocês que usam, mas vou lembrar. Serve para derrubar, desmatar, desbastar, para preparar o solo para um novo plantio. É com ele que vocês cortam as árvores e desbravam a mata virgem.

Os negros permaneciam inertes e silentes, sem compreender a razão do sermão.

– Com a enxada, vocês carpem, vocês abrem as covas para plantar as mudas e as sementes.

Trocou a enxada pela pá.

– Esta também serve para movimentar a terra, construir terraços para o plantio do café. Enfim, vocês sabem tanto quanto eu.

Baixou a pá e ergueu uma foice, às vezes chamada de podão, outras vezes, foião.

– O foião serve para limpar o terreno e para o corte da cana-de-açúcar, para desfolhar e dividir em partes o pé de cana e facilitar a recolha.

Por fim, tomou em suas mãos o saco, um grande cesto de tecido.

– Este cesto serve para recolher o café, para quem trabalha no cafezal, e as partes da cana, para o pessoal do canavial.

Prosseguiu, solene, duro:

– Vocês não precisam de mais nada. Têm um teto, têm comida e diversão. Não precisam saber ler, nem escrever, nem somar ou dividir. A maioria de vocês nem sabe o que é isso ou para que serve. Esqueçam as ideias de jerico que andaram metendo na cabeça de vocês. Vejam o que aconteceu com Pio, o fugitivo.

Contou-lhes então sobre o assassinato do preto Pio, abatido em fuga após sete dias e sete noites sem nada comer quando chegava ao destino. Disse-lhes que morreram muitos escravos fugidos e os capturados, assim que fossem trazidos de volta, seriam duramente castigados. A notícia provocou comoção entre o gentio, murmúrios e choro. Tarciso repetiu, para que de uma vez por todas o compreendessem:

– A gente está dando pra vocês uma coisa que é fundamental: ferramenta.

Disse-o olhando nos olhos marejados de lágrima e dor de quantos negros os seus puderam alcançar e sentenciou:

– É o que lhes basta. Agora, vão trabalhar.

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Publicado originalmente em minha Casa Literária, na plataforma Substack