CONTO
Para Ana Rita Ribeiro di Mattei, neologista a quem devemos a criação da palavra "onfalocracia"
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“Quem, antes de todos, se lembrou de dizer ‘se a farinha é pouca, meu pirão primeiro’, e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da onfalocracia”
O desembargador Filáucius Benjamin Acaciano de Meira e Silva era dono de um nariz gigantesco, que ocupava cinquenta por cento de seu território facial, de modo que, na linha horizontal, sobravam-lhe insuficientes um quarto à esquerda e outro tanto à direita, o que praticamente condenava as bochechas ao sumiço. Na vertical, as sobras acomodavam, comprimidos, os olhos miúdos e as sobrancelhas, acima, e a boca, abaixo. Os lábios, fino o de cima e grosso o inferior, distribuíam-se ao centro-sul do rosto usurpando dois terços desse já diminuto espaço, sublinhado pelo queixo retraído. Cabelinhos ralos, levemente ondulados, amarelecidos pelos idos, a tudo encimavam.
Completavam-lhe a fisionomia as orelhas simétricas que, por essa singela razão, não chamavam as atenções e a testa que, a despeito do aperto, pronunciava-se larga. Não se lhe negue, porém, que as feições tinham seu charme, algum laivo de formosidade, graças às poucas rugas evidenciadas, apesar da carga existencial que já computava setenta e três anos.
Mais do que o nariz, grande mesmo era o espaço ocupado pelo umbigo. Mal conseguia olhar-se ao espelho. Era-lhe insuportável encarar o buraco negro que lhe ornamentava o centro avançado da enorme protuberância abdominal. Incomodava-o a sensação de estar prestes a ingressar num túnel lúgubre, sem qualquer expectativa de luz no negror de seu sem fundo. De fato, era mesmo um imenso vazio, um apêndice teratológico que se projetava para dentro, na direção de suas íntimas profundezas.
Vestiu com pressa a camisa e o terno, não porque pressa tivesse, mas para livrar-se de visão tão perturbadora, e com calma ajustou a gravata ao pescoço.
Andropoulos o esperava ao pé do condomínio vertical em que residia, com o carro oficial posicionado conforme lhe exigia o chefe, metade sobre a calçada, metade sobre o asfalto. Justificava que era para não atrapalhar o trânsito, mas era mesmo para facilitar-lhe o acesso. Ansioso, o motorista olhava para o relógio como fosse o patrão advertindo o empregado displicente.
– Bom dia, Andropoulos. Bora, que estou atrasado.
O servidor nada respondeu. Seu gesto, seu silêncio e sua cara amarrada, porém, não encontraram ressonância nos brios do desembargador.
Filáucius chegou com o regular atraso de meia hora de todos os dias, regularidade que houvera feito a câmara alterar o horário das sessões. Mudou-se o início dos trabalhos para trinta minutos mais tarde, mas não demorou para Filáucius adaptar o velho hábito ao novo horário.
A sessão de julgamento ia, portanto, em curso avançado. Qualquer outro chegaria com discrição e se sentaria em obsequioso silêncio, quando muito cumprimentaria os colegas com o olhar. Não o desembargador Filáucius Benjamin Acaciano, jamais. Ele, que já atraía os olhares por ser espaçoso, entrou no recinto pisando firme, rangendo os sapatos de cromo alemão e arrastando ruidoso a pesada cadeira sobre o assoalho de madeira. Disse bom dia com a vibração de um torcedor que da arquibancada honrasse a distinta progenitora do árbitro num estádio de futebol. Não olhou para os colegas, tampouco para o auditório. Baixou os olhos para o papel impresso sobre a mesa, que continha a ordem do dia, abriu seu notibuque e nele se concentrou.
No pequeno auditório, viam-se uns poucos advogados, estagiários e pessoas com algum interesse nas causas em julgamento. Servidores em pé, no entorno e atrás dos cinco juízes, completavam a cena.
Lancelot dos Reis MacPin presidia a sessão de julgamento. Eduardo Franco de Orleans e Alcântara, o relator do caso, já avançara na leitura da suma de seu longo voto. Apesar disso, ninguém se opôs a que o desembargador Filáucius participasse da votação do caso em andamento.
Debatiam um pedido de habeas corpus em favor de um jovem que assassinara um morador de rua. O caso havia repercutido na imprensa nacional como crime de ódio. Houve quem rotulasse de aporocídio. Imagens obtidas por câmeras de estabelecimentos da redondeza revelavam um assassinato a sangue frio. O jovem parou seu Porsche diante da marquise da agência bancária sob a qual dormia a vítima, envolta em folhas de jornal, desceu e atirou contra o desabrigado uma vez.
A vítima acordou e, mesmo ferida e assustada, teve oportunidade de pegar uma faca, que mantinha ao seu lado, ao alcance da mão. Com esforço, mas lépida, levantou-se e a lançou na direção do atirador, ferindo-o na altura do tórax, próximo do coração. Antes de a faca penetrar-lhe o peito, o rapaz já houvera dado mais um tiro. O andarilho morreu logo que lançou a arma de descascar laranja e recebeu a segunda bala. O outro desmaiou, foi socorrido e sobreviveu.
Recuperado, foi-lhe decretada a prisão preventiva, o que levou a banca de duzentos e trinta e dois advogados a impetrar o pedido de habeas corpus.
Os demais magistrados votaram e formaram maioria pela denegação da ordem. Filáucius foi o último a se pronunciar. Após infindáveis conjecturas, citações em latim, inglês e até alemão, comparações com o direito estrangeiro, incursões pelo iluminismo e peroração de sincero apreço ao humanismo, pediu vênias aos colegas para votar pela concessão. Assim resumiu os fundamentos de seu veredito:
— A má qualidade da vítima me convenceu de que a ordem deve ser conhecida e concedida. Era uma pessoa nefanda, perigosa, um risco constante à sociedade. De certo modo, muitos podem pensar que houve uma limpeza social. Sim, é verdade que foi de um jeito incorreto, até mesmo injurídico e inadequado, mas de uma forma que a consciência coletiva, com serenidade, acaba por aceitar.
Os demais se entreolharam, incrédulos; nenhum disse palavra. O presidente anunciou a denegação do habeas corpus por maioria e deu por concluído o julgamento, passando logo para o caso seguinte.
No intervalo para o café, reinou um silêncio inusitado, constrangedor, até que o próprio Filáucius o quebrou enquanto se servia de uma fatia de mamão e um copo de suco de caju:
— Viram que o Ildefonso se aposentou?
Transcorreram algumas dúzias de segundos sem que ninguém lhe respondesse. Ele insistiu:
— Bom sujeito o Ildefonso. Vai deixar saudades.
Lancelot animou-se a alfinetar:
— Grande magistrado, o Ildefonso. Um juiz muito justo, muito preocupado com as questões sociais.
— Ê miserê humano! Eita mundo cão — sentenciou Filáucius, a meio riso.
Nova pausa, até que ele resolveu comunicar aos demais:
— Vou aproveitar a vaga dele e pedir transferência de câmara.
Em verdade, estava cansado de ser voto vencido. Sentia-se desprestigiado, pensava que os colegas desdenhavam de seus votos. Parecia-lhe que o tratavam como um profissional despreparado, indigno do cargo, logo ele, filho, neto e bisneto de desembargadores, rodeado de tios e primos que, a seu juízo, muito honravam a magistratura e o ministério público. Tio Benjamin Flores era o presidente do tribunal.
Nada mais, porém, lhes disse Filáucius. Nenhuma justificava deu para a decisão tomada ali, de inopino, nem lhe foram cobrados os motivos.
Os demais sentiram um alívio interior que Filáucius não percebeu, embora, por razões que não saberia explicar, tenha-lhe percorrido a espinha um arrepio que o levou a fazer um movimento brusco que resultou em derramamento de suco sobre seu terno.
— Eita, que p… — exclamou Filáucius, sem completar o palavrão.
Apropriou-se do enorme rolo de guardanapos de papel disposto à mesa e dele extraiu uma quantidade exagerada de folhas. Limpou o terno, abriu os botões inferiores da camisa e acabou expondo o umbigo.
Lancelot, vendo-o de frente, não perdeu a oportunidade de brincar com o colega:
— Uau! Que senhor umbigo você tem, hein, doutor Filáucius! Benzadeus. Isso explica muita coisa — e irrompeu uma gargalhada. — Um brinde à onfalocracia! — saudou, erguendo sua xícara de leite pingado com café.
Filáucius não entendeu se o colega lhe fazia búlin ou um elogio. Chegou a pensar que tivesse ouvido “falocracia” e o instinto o fez levar as mãos à braguilha, temendo que estivesse aberta. Na dúvida, fingiu que não era consigo.
Desfez-se das folhas de papel amontoadas e sujas e fez nova extração, com igual exagero. Amarfanhou os guardanapos todos que destacara, fez um novo monte de papel, passou-o sobre o terno reiteradas vezes e já não retirou tanta sujeira como da vez anterior. O paletó e a camisa, embora manchados, estavam secos. Juntou ambos os montes e deixou tudo sobre a mesa. Estava deveras irritado.
— Boa sorte! — desejou-lhe Lancelot MacPin, que, com cuidado, destacou um único guardanapo do rolo previamente picotado de fábrica, limpou a boca enquanto mastigava o derradeiro pedaço de um croassã recheado com queijo bris e mel, amassou a folha usada, dirigiu-se a um canto da sala e a lançou ao cesto de lixo.
Filáucius fez que não observou a atitude do colega, a quem, no íntimo, censurava os costumeiros chistes e alfinetadas, que tinha por desagradáveis. Folgou o nó da gravata, balançou a cabeça e comentou:
— Que calor da p…! — sem completar, de novo, a palavra de baixo calão.
Terminada a sessão, o doutor Filáucius dirigiu-se até o carro oficial, em que Andropoulos o esperava com uma mulher a seu lado.
— Bora!
— Doutor, esta é dona Eudóxia. Ela também reside em Eugeniópolis, vizinha de seu prédio; me reconheceu e me pediu uma carona. Ela vai descer onde o senhor desce. Não vou desviar da rota, nem prolongá-la.
Eudóxia era mulher bonita, de meia idade, cabelos compridos, pretos como os olhos, rosto alongado e magro que lhe anunciava a pele macia. Portava um colar sobre o elegante vestido e segurava uma bolsa. Trazia no rosto, além da beleza, uma indisfarçável expressão de desafio.
Filáucius fez cara de desagrado e advertiu o servidor:
— Você sabe que não posso dar carona em carro oficial. Posso sofrer represálias. Hoje em dia tem câmeras de vigilância por toda parte. E o que não falta é filho da p… — não completou — ansioso por nos pegar.
Acostumado a levar a esposa do desembargador a lojas, a filha ao salão de cabeleireiro, o neto à escolinha de futebol, o próprio chefe ao clube dos amigos, Andropoulos limitou-se a dizer-lhe, prolongando a sílaba final:
— Doutooor…
— Está bem. Só desta vez. Não se acostume. E sem desvio, nem prolongamento.
O motorista exibiu um breve sorriso e convidou a mulher a entrar no automóvel, a sentar-se ao seu lado. Andropoulos regozijou-se em silêncio com o perfume de refino com que dona Eudóxia contemplou o interior do veículo.
Filáucius, como de costume, foi no banco de trás e abriu o jornal, forma como se desconectava da vida real, que passava rápido pelos vidros fumês do automóvel, e mergulhava em seu mundo exclusivo.
Como se falasse com alguém invisível, passou todo o percurso comentando os índices da bolsa de valores, a valorização das ações, a distribuição das debêntures, os ganhos do CDB, LCA, LCM e dos fundos de investimento, lendo em voz alta o noticiário econômico. Não poupou impropérios ao governo federal por conta de decisões que prejudicavam os rentistas:
— Malditos comunistas! Querem fazer cortesia com o meu chapéu. Tiram dos ricos para dar aos pobres. Bando de “roubem hudes”, esses ladrões!
Andropoulos puxou prosa com a mulher, que parecia intranquila, remexendo os lábios cerrados como se quisesse falar, embora sem disposição ao diálogo.
— E como foi o julgamento? Condenaram o assassino do seu marido?
A pergunta despertou o interesse do doutor Filáucius, embora nada tenha dito e até tenha tentado demonstrar alheamento, seguindo na leitura do jornal em voz alta.
— Ih, está longe esse dia — disse Eudóxia, com evidente desânimo.
— Uai, e o que era o julgamento, então? — perguntou o motorista, pouco entrado nas coisas do direito.
— Era um pedido de habeas corpus, mas prefiro não comentar.
— Entendo. Seu marido então… ele era o assassino?
— Não, não. Como comecei a lhe dizer fora do carro, ele foi a vítima.
— Ah, acho que entendi. O assassino queria sair da cadeia…
— Isso.
— Que filho da mãe! Mata e ainda quer ficar impune — comentou Andropoulos.
Próximo de chegar no bairro, Eudóxia sentiu que era hora de contar o essencial:
— Meu marido era professor aposentado da USP, pesquisador, especialista em doenças do umbigo, a onfalite e o câncer.
Filáucius congelou e estático permaneceu até o fim do trajeto, segurando o jornal sem virar as folhas, a atenção concentrada na prosa, por vezes espiando os da frente por cima do jornal esticado diante de si. Não abriu a boca.
— Ele desapareceu de casa faz um mês. Vinha sofrendo de transtornos psiquiátricos. Procuramos por ele pela cidade toda, dia e noite, e não o encontramos. Pusemos foto nos jornais, na internet, a imagem dele apareceu até no noticiário da tarde da TV, mas nada. Só depois de morto…
A voz embargou. Eudóxia fez uma pausa e prosseguiu, expressando raiva:
— Só depois de morto foi que o reconhecemos pelas imagens divulgadas. A morte dele foi filmada, a cena apareceu em todos os telejornais.
Andropoulos parou o carro defronte o prédio onde morava o desembargador e ali mesmo Eudóxia desceu. Ela morava no prédio antigo, bem em frente, do outro lado da rua. A mulher só se despediu do motorista. O doutor Filáucius já havia saído pela porta oposta, com toda discrição e pressa.
No apartamento de cobertura, no vigésimo quinto andar, a esposa veio abrir-lhe a porta. Ele se apressou a lhe contar:
— Preciso tomar um banho urgente. Meu motorista resolveu dar carona a uma mulher, esposa de um morador de rua, vê se pode!
— Mas o que houve?
— Eu não sabia, juro, parecia até uma mulher distinta; me arrependi de ter aceitado. Só descobri no meio do caminho.
Retirou um lenço do bolso e o levou à boca.
— Senti nojo, um fedor horrível a viagem toda, eca! Vou vomitar.
O desembargador Filáucius Benjamin Acaciano de Meira e Silva correu em direção ao banheiro, desfazendo-se pelo caminho da gravata e do terno, abrindo a camisa e levando à frente seu descomunal umbigo.
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