Não é um ministério de grande visibilidade, embora de vital importância, e por essas circunstâncias prefiro não divulgar. Quem me conhece sabe o quanto sou discreto e avesso a holofotes.
O fato é que, comandando uma pasta ministerial, fui convocado a depor perante uma comissão conjunta do Congresso Nacional. Convocado, não: convidado. Afinal, sou ministro. Optei por aceitar, pela compreensão que tenho de que todo ocupante de um cargo público tem obrigação de prestar contas de seus atos à nação.
Bem, seja como for, o certo é que na data aprazada lá estava eu, a enfrentar os leões desdentados da extrema-direita. Espero que ninguém tenha visto esse fastidioso episódio da vida nacional.
Fiz minha apresentação de modo sucinto, “sou advogado de profissão, procurador municipal, ex-vereador de Capivari, São Paulo. Palpiteiro de Facebook e Twitter, aliás, ex-Twitter, ou simplesmente “ex” (pronunciei “équis”; grafa-se “X”). Escritor frustrado, presidente e único membro do MESL, Movimento dos Escritores Sem Livro”.
Assim que concluí a leitura, senti um arrepio de arrependimento. Ser ativista de movimento, qualquer que seja, não é de bom tom naquele ambiente. Temi sair preso dali, por conta da sanha criminalizadora de vários membros do Parlamento aos movimentos sociais. Enfim, assim saiu, por sorte sem a repercussão temida.
Encerrei aí minha apresentação inicial, embora tivesse bem mais tempo à minha disposição. Percebi certo desconforto entre os parlamentares, mas é de minha índole, como disse, essa minha discrição.
Não vinha me inteirando muito a respeito do universo paralelo em que vive parte do congresso, de modo que não conheço bem os deputados e os senadores da atual legislatura. Até porque, desde o primeiro dia estou às voltas com as inesgotáveis tarefas da pasta. E todos sabem como Lula é exigente com seus auxiliares, sobretudo os mais próximos, como é o meu caso.
O primeiro a me fazer perguntas eu jurava que era um menino. Decerto seria filho de parlamentar, pensei a princípio, que, na ausência do pai ou da mãe, fazia-lhe as vezes.
Depois supus que fosse um daqueles “deputados-mirins” dos programas de incentivo a que as crianças tomem contato com a Política, comum nas câmaras de vereadores e assembleias legislativas, mas não entendi a razão de aquele rapazote participar de um ato oficial.
Ele fez um longo discurso atacando a mim e ao governo Lula, chamou-me de “ministro da justiça” (debito a confusão a este meu corpo roliço, embora em nada eu seja parecido com o amigo Flávio Dino) e, por fim, a gritos histéricos, me indagou por que na guerra desencadeada recentemente o governo teria tomado posição favorável aos palestinos e contrária aos israelenses.
Minha resposta, que dei com toda a serenidade que marca meu caráter, foi exatamente esta:
“O governo que aqui represento não tem posição a favor de um país e contra outro. A posição do governo brasileiro é histórica, vem desde 1947, e sempre foi pela paz, pela solução pacífica dos conflitos. O governo se guia pela Constituição, cujo artigo quarto prevê”.
Dei uma pausa e li:
“Artigo quarto. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios”.
Continuei dizendo que os pouparia do enfado de ler o artigo todo e que iria ao que interessa, como de fato fui:
“Inciso sétimo. Solução pacífica dos conflitos”.
E dei por respondida a pergunta.
Em réplica, ele vociferou contra uma tal “ideologia de gênero”, que estaria sendo praticada pelo governo, da qual jamais eu ouvira falar em reunião ministerial alguma. A partir daí, fez duras críticas ao fato de o governo ter enviado a Israel um avião da FAB, dentro do qual, disse ele, haveria um certo “banheiro unissex”.
Eu não tinha a menor ideia do que o menino falava (“a imaginação infantil é mesmo fértil”, pensei) e nada respondi. Não tenho vocação para professor de jardim de infância.
Parêntese: numa reunião ministerial posterior à audiência, meu amigo e colega ministro Silvio me repreendeu, com a elegância que lhe é peculiar, dizendo que o rapaz era de fato um deputado e que deveria ser tratado como homem, não como moleque. Estranhei, mas se Silvinho está dizendo, eu acredito.
Depois dele foi a vez de uma senadora que, pelas feições, julguei que fosse uma ex-ministra do governo anterior, aquela que havia tido um exótico encontro com Jesus num galho de goiabeira.
“Por que o governo Lula...”, e fez a mesma pergunta do rapaz. Eu respondi, pausadamente:
“Artigo quarto, a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios”. E completei: “inciso sétimo, solução pacífica dos conflitos”.
Em seguida, foi a vez de outro que, pela aparência física e trejeitos engraçados, era o próprio Curly, irmão de Moe e Larry, de uma série famosa de TV da minha infância chamada “Os Três Patetas”.
Ele fez um discurso totalmente desconexo, que, confesso, não compreendi, e emendou a mesma pergunta. Dei-lhe a mesma resposta.
Assim se sucederam os parlamentares, um a um, uma a uma, dos quais só reconheci o mundialmente famoso “juiz ladrão”, ex-juiz, eterno ladrão.
Ao fim e ao cabo de quase dez horas em que a mesma pergunta me foi feita por todos os que me arguiram, à qual dei a mesmíssima resposta, sempre lendo o artigo quarto e o inciso sétimo, eu me despedi dizendo de minha alegria de poder servir à nação – sem outras palavras, senão essas e apenas essas mesmas.
Nesse instante, adentrou ao recinto um sujeito trôpego, apoiando-se nos ombros e cadeiras dos colegas, que reconheci como um senador capixaba cujo nome me escapa (só me vinha à mente “malte, malte”). Com a voz pastosa, arrastada, disse que meu comportamento, respondendo às perguntas com a mesma leitura do artigo quarto, inciso sétimo, da Constituição era um “deboche” - acusação que me fizeram todos os demais parlamentares, após cada resposta dada -, e que, por essa razão, iria propor meu impeachment. Enroscou na palavra, engasgou duas ou três vezes, até que conseguiu pronunciá-la às inteiras.
Meu microfone já havia sido desligado, mas nem fiz questão. Debater com pessoa naquele estado é algo que fiz muito com um tio alcoólatra, na minha infância, e sei da inutilidade.
Peguei meu paletó que descansava sobre a cadeira, vesti-o e saí em silêncio, com meus assessores, da mesma forma como cheguei. E um só pensamento passava por minha cabeça: “que futuro terá um país cujos representantes no poder legislativo acham que ler e seguir a Constituição é um deboche?”
(Luís Antônio Albiero, de Capivari, SP, em Jacareí, SP, aos 11 de outubro de 2023).
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Luís Antônio Albiero
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