24/11/2012

Aos 49 do Primeiro Tempo

Estou almoçando num ""shopping center"" e noto um garoto de uns oito anos de idade parado próximo de minha mesa, olhando para mim. Dirijo meu olhar para ele com ar de “o que foi?” e o menino, envergonhado ou assustado, sai correndo.

Reflito no que o garoto poderia estar pensando ao fixar seu olhar sobre mim. Imagino-o fitando um sujeito gordo e grandalhão, de cabelos ostensivamente grisalhos, comendo feito um porco, com desajeitada voracidade. Ele decerto não sabe, mas tem diante de si um advogado bem sucedido na profissão, embora o saldo bancário insista em dizer o contrário. Um sujeito que arrasta atrás de si uma longa história de vida, exatos quarenta e nove anos completados naquele dia, talvez naquele momento.

Pondero, de mim para mim, como as aparências enganam. Quem me vê não imagina que, na verdade, sou eu um garoto de oito anos de idade. Não o menino desconhecido que me observava há pouco, mas o distante pirralho que fui um dia e que permaneci sendo até hoje e assim hei de permanecer até que me fechem num esquife – ao final não do segundo tempo, mas de longa prorrogação.

Concluo, de inopino, que os adultos, as pessoas maduras, os velhos, não passam de crianças crescidas. Passamos a vida acumulando conhecimento, experimentando emoções, lidando com alegrias e frustrações, aprimorando ideias, mas mantemos a mesma puerilidade com que percebíamos a vida à nossa volta na infância. As primeiras percepções são as que ficam. Os mesmos pudores, as mesmas chateações, as mesmas birras. Magoamos e nos magoamos com a mesma facilidade com que perturbávamos e éramos perturbados pelos amiguinhos e coleguinhas dos primeiros anos de existência – e estávamos a décadas de conhecer a palavra ""bullying"" ou o conceito de assédio moral.

Quem me vê deve me imaginar um sujeito cheio das certezas, aferrado às próprias convicções, o dono da verdade, dela mesma, da Verdade verdadeira. Não adianta sorrir, expressar simpatia, ter a humildade para ouvir e aprender, há sempre quem me veja como homem feito, seguro como um edifício construído sobre firme alicerce.

Qual nada. Ainda trago no espírito os mesmos temores e as mesmas inseguranças que tinha aos oito anos de idade. Ainda nutro um medo danado de cair na rua e desabar num choro doido e doído, daqueles em que tudo o que se quer é o socorro e os cuidados da mãe – que, no meu caso, já nem mais está entre nós.

Dia desses, ao entrar num restaurante, tropecei no tapete da entrada e mergulhei sobre a primeira mesa que encontrei pela frente. Não desandei a chorar, como temia, só senti dor no tornozelo, mas os dois sujeitos que me acudiram tiveram o zelo de despertar em mim, pelo menos, o sentimento da vergonha. “Fique tranquilo, não ligue porque as pessoas estão olhando”, aconselhou-me um deles. Foi só então que enrubesci envergonhado e segui meu caminho sem conseguir olhar para as demais pessoas que estavam ali, embora tenha sido possível perceber que nenhum outro freguês notara o ocorrido. Apesar disso, ainda não tive coragem de retornar ao restaurante.

Agora estou aqui, no ""shopping"", pensando nos meus quarenta e nove anos completados agora há pouco, comendo, que é para não perder o costume. Termino, dou uma passada no banheiro e me deparo com minha enorme figura refletida nos grandes espelhos do lugar. Como diria Roberto, “o tempo parou para eu olhar para aquela barriga...” De novo, senti vergonha. Saí dali correndo, como criança fugindo de algum fantasma.

Onde raios está aquele menino de oito anos de idade?

09/06/2012

O Incêndio

Cá com os meus botões, fico a pensar se quando Hitler insuflou o povo alemão contra os judeus ele, de fato, instigou o ódio ou apenas aproveitou-se de um sentimento generalizado que já permeava seu povo. Viviam-se tempos de desemprego e recessão e a sensação era de que os judeus tomavam empregos e se apropriavam de riquezas dos alemães.

Em tempos de vacas magras, e diante da incapacidade governamental de dar conta das demandas - mormente de ordem econômica -, apela-se para o sentimento de patriotismo. Afinal, o culpado é sempre o outro, o diferente. Quando os nativos começam a se preocupar com os estrangeiros, com os de outra raça ou região, por medo de que estes lhes tirem os empregos e dividam suas riquezas, é sinal evidente de que está se formando, ou já está formado, um caldo de cultura propício ao surgimento de um líder político que possa vir a fazer uso dessa matéria-prima para arroubos nazi-fascistas.

O Brasil vive momentos de pleno respeito às instituições democráticas, a despeito de vãs tentativas maldosas de alguns de mostrar o contrário. Depois que os membros do Congresso, regiamente remunerados pelo governante de plantão - falo de tempos idos, passagem desbotada da memória -, garantiram a este um novo mandato, por meio da emenda constitucional que lhe proporcionou a possibilidade da reeleição, não se teve notícia séria de outro rompimento institucional grave.

Logo depois desse triste episódio, falou-se tanto do risco, só existente na mente dos que foram apeados do poder e de seus seguidores, de que Lula, alçado à presidência da República, instalaria o caos no Brasil. Muitos não resistiram à tentação de associá-lo a figuras históricas nefastas, como Hitler e Mussolini. Quebraram a cara, mas ainda hoje não dão o braço a torcer. Onda vai, onda vem, lá vêm eles com a lengalenga. O ex-presidente, porém, foi o que mais respeito dedicou às instituições.

Respeitou o Ministério Público Federal quando aceitou a indicação feita pelos procuradores da República, e manteve a nomeação de Antonio Fernando de Souza, reconduzindo-o ao cargo de Procurador-Geral. E olha que ele havia sido o autor da denúncia do tal "mensalão"! Depois, repetiu a conduta em relação a outro nome surgido por indicação do conjunto de procuradores, Roberto Gurgel. E em relação a este, o tempo incumbiu-se de mostrar-lhe a verdadeira cara. Só para comparar, o governador Geraldo Alckmin, por exemplo, não teve coragem de seguir o exemplo de Lula e nomeou para Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo quem bem quis, ignorando o preferido de promotores e procuradores, escolhido em democrático processo eletivo interno.

Muito se disse, também, acerca de um desejo oculto de Lula calar a imprensa. Veja, Folha, Estadão, TV Globo e outros da chamada mídia velha - a que denomino "carcomídia" - não perderam um dia sequer a oportunidade de atacar o governo petista, a própria figura do presidente, por razões às vezes justas, injustas na maioria. E o que fez o ex-presidente? Nos momentos mais críticos, fez discursos, apenas. Quantos processos moveu contra os órgãos de imprensa? Nenhum! E olha que não lhe faltou material. Quantas vezes deu ordens às estatais para que cortassem a destinação de verba publicitária para esses veículos? Nenhuma!

Também a título de comparação, Gilmar Mendes, valendo-se do prestígio de ministro do STF, não perdeu tempo ao ver-se criticado por blogues independentes. Foi ao presidente da Caixa Econômica Federal e "solicitou" a ele que parasse de - como disse - "financiar esses blogues que atacam as instituições". Por "instituição", leia-se ele próprio, Gilmar Mendes, já experimentado em fazer pressões do gênero, como a que fez sobre o mesmo ex-presidente Lula para que este demitisse o delegado que comandava a Polícia Federal e a ABIN, Paulo Lacerda.

No plano interno, à parte ter sucumbido à pressão do então presidente do STF, Lula proporcionou melhores condições à Polícia Federal, que desencadeou centenas de ações que levaram à prisão "gente graúda" - governadores, desembargadores, juízes, prefeitos, empresários - e fez a Controladoria Geral da União funcionar. Criticou, é verdade, o Tribunal de Contas da União, e com razão, já que este enveredou por um ativismo político inaceitável. Mas respeitou plenamente suas decisões.

Lula também não se deixou encantar pelo canto de sereia dos que lhe anteviam a possibilidade de um terceiro mandato. O ex-presidente tinha tudo para isso, aceitação popular e maioria no Congresso, mas manteve-se firme no respeito às regras vigentes.

Enfim, não foi Lula o "novo anticristo" que muitos alardearam. Mas é fato que, ao menos por estas bandas paulistas, há um preconceito permeando os nativos, que se verifica na preocupação que muitos nutrem em relação aos nordestinos, por exemplo. O caso Maiara Petruso, condenada recentemente por ter promovido uma sórdida campanha pelo Twitter logo depois das eleições presidenciais, é significativo. Em mensagens claras, sem meias palavras, ela pregava a "morte aos nordestinos", associando-os a "vagabundos", usurpadores das "nossas riquezas".

Esse sentimento em relação aos nordestinos continua presente nas redes sociais, na forma de piadas de péssimo gosto, que muitos ingênua ou maldosamente repetem, passam adiante, curtem e festejam. Aos ingênuos e aos maldosos falta respeito, amor ao próximo, tolerância às diferenças.

É verdade que vivemos um momento econômico excelente, comparado ao resto do mundo, graças sobretudo às medidas certeiras adotadas pelo próprio Lula e por sua sucessora, em meio a uma forte crise internacional. Mas é certo que o caldo de cultura está pronto, disseminado, espalhado feito combustível, à espera de um líder destrambelhado que queira riscar o fósforo.

(Em Americana, SP, aos 9 de junho de 2012)

O "Analfabeto" e seu "Poste"

Caro Gabriel,

Muito prazer em conhecê-lo! Alegra-me ver que minha colega de “ginásio” Viviane *** gerou um garoto inteligente, como você.

Sabe, Gabriel. Quando eu tinha 24 anos de idade fui eleito vereador em Capivari. Era o mais novo de todos os eleitos. O mais idoso era o saudoso Miguel Simão Neto, 75. O prefeito era José Carlos Colnaghi, hoje secretário de Obras, cuja idade devia girar em torno dos cinquenta, próximo dos quais me encontro hoje. Numa visita dele, prefeito, à Câmara, fiz-lhe questionamentos que, por alguma razão, tiraram-no do sério. Em dado momento, ele, irritado comigo, dirigiu-se a mim e disse algo como “meu jovem, você é muito novo ainda, não entende...” – e o complemento já nem me lembro. Mas me recordo exatamente da resposta que dei a ele: “meu caro prefeito, os meus 25, os seus cinquenta ou os 75 do Miguel Simão são nada diante da infinitude do tempo!”

Pois é. Do alto dos meus 48, hoje tenho a oportunidade de dialogar com alguém ainda mais novo do que eu era, àquele tempo, e dizer-lhe que acolho com absoluto respeito sua opinião.

Devo-lhe dizer mais, que não me irrita nem um pouco você referir-se à minha opinião como “postura ingênua” e “extremamente simplificada”. Ao contrário, orgulho-me de poder dizer que me mantenho fiel a valores que afloraram e se consolidaram em meu espírito ainda na juventude. Deve ser por isso que costumo dizer que não estou ficando velho, mas “acumulando tempo de juventude”.

Quanto à “divinização” do ex-presidente Lula, devo debitar a impressão que o amigo teve a alguma “inconsistência técnica” na construção do meu texto. Embora eu venha há anos tentando aprimorar-me na arte de escrever – trazendo ainda lições dos bancos escolares, de professores como José Benedito e Stellamaris; Viviane saberá dizer-lhe quem foram –, a verdade é que ainda não passo de um amador e, como tal, sujeito a incompreensões.

Não me lembro, porém – e me ajude a refrescar minha memória – de nenhuma passagem de algum texto que eu tenha escrito em que eu tenha atribuído ao ex-presidente algum poder divino. Lula não é deus, por óbvio; é fruto mais que humano do seu meio, das suas origens, das suas obras. Lula criou o Partido dos Trabalhadores, mas não o fez crescer sozinho. Eu mesmo estava lá, nas origens, nos meus sempre presentes dezesseis anos de idade. E o governo que levou adiante, não o levou sozinho, tampouco. Não foi por um lampejo milagroso vindo dos céus que ele adotou as políticas públicas certeiras. Não, nada disso. Elas foram sendo construídas ao longo dos anos, nos estudos desenvolvidos por intelectuais do partido – que você diz estarem deixando a sigla, mas o que se vê, na realidade, é o abandono da candidatura de José Serra por intelectuais tucanos que já manifestaram adesão à de Fernando Haddad (isso é apenas uma lembrança pontual, de algo bem atual).

O PT sempre foi um partido orgânico, mesmo quando ainda era minúsculo e assombrava as pessoas. Você ainda era um bebê quando o partido já tinha dez anos e as pessoas, inclusive as mais simples, temiam que Lula, chegando ao poder, fosse dividir as casas e queimar bíblias. Essa era a ingenuidade reinante, que parece ainda permear alguns espíritos que até hoje resistem ao amadurecimento.

As políticas públicas petistas foram engendradas nas universidades e, em particular, na Fundação Perseu Abramo. O próprio Lula, a quem chamam de “analfabeto”, foi instruído por cientistas políticos, economistas, filósofos e outros intelectuais. Maria da Conceição Tavares vinha semanalmente do Rio a São Paulo para participar de reuniões na FPA, com presença de Lula. Com ela, Luciano Coutinho, Aloísio Mercadante, Emir Sader, Guido Mantega. Procure localizar e veja a entrevista da economista luso-brasileira à CBN, em especial quando ela frisa que Lula, “com sua inteligência fantástica”, apreendia com facilidade os ensinamentos. É ela dizendo!

Os estudos desenvolvidos pela Fundação foram, a pouco e pouco, sendo experimentados em prefeituras, à medida em que o partido as conquistava; depois, em governos estaduais; até que chegaram amadurecidas ao governo federal. E os resultados aí estão! Algumas, como o Programa Saúde da Família e esboços do que hoje é o Bolsa-Família, foram iniciadas durante o governo do próprio presidente Fernando Henrique Cardoso (que implantou o bolsa-escola, o vale-gás, e outros programas ainda tímidos de transferência de renda).

O que legitima o governo Lula e chancela os avanços por ele conquistados não é simplesmente seu caráter carismático, mas o fato de ter sido um governo democraticamente eleito e reeleito, seguido da eleição do “poste” que lhe sucedeu, como se referiam à hoje presidenta Dilma, na vã tentativa de desqualificá-la. Não há, nisso, “dominação burocrático-legal”, mas efetiva manifestação da vontade popular, essência da democracia.

O governo Lula deu certo, meu caro, por sua habilidade em liderar e negociar.

No meu texto, tentei dizer – e acho que não o disse com a competência devida – que a “xenofobia” manifestada por boa parcela dos paulistas (parece que, de fato, cometi o pecado costumeiro da generalização) é combustível que pode vir a ser utilizado por um líder fanfarrão eventualmente içado ao poder, um destrambelhado qualquer, diante da incapacidade de contornar uma crise econômica, por exemplo.

Não vejo esse risco nos dias de hoje, até porque a economia brasileira vai muito bem, obrigado. Só quis acentuar que queimaram a língua os que apostavam que Lula seria essa figura e que, para não terem que dar o braço a torcer, insistem em apontar para esse risco. Esse suposto risco, ele sim, inconsistente, primário, fruto da ingenuidade ou do simplismo de quem assim pensa.

Quanto às referências ao “discursos imperativos do marxismo-leninismo”, dirigidos “de cima para baixo”, devo relevá-las, por conta do desconhecimento, seu, de quem seja eu e de como seja o Partido dos Trabalhadores por dentro. O amigo apenas reproduz leituras preconceituosas feitas por apressados que jamais se animaram a aprofundar-se nas pesquisas, limitando-se a tratar como seres desprovidos da capacidade de pensar os mais de 1,5 milhão de filiados ao partido.

De todo modo, agradeço-lhe por dedicar precioso tempo à análise do meu texto. Suas observações servem muito ao meu enriquecimento intelectual. Espero ter contribuído em alguma medida, também.

PS.: por que o amigo me trata por “colega”? Sou advogado, assessor parlamentar. Se o impressionou a citação, no meu perfil, de ter cursado ciência política no ILP, em convênio com a Unesp, esqueça. Foi apenas um curso (muito bom, por sinal) de um ano e meio que sequer cheguei a concluir (não entreguei o trabalho final).

Grande abraço!

(Em Capivari, SP, aos 9 de junho de 2012)