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22/06/2025

Petricor

IMPORTANTE: Prezada leitora, prezado leitor. Preciso muito saber da sua opinião sobre este conto, sobretudo quanto à temática e à forma como é tratada. Se puder me dar retorno, desde já lhe sou grato. Se não for possível deixar seu comentário ao final desta publicação, na página “Casa Literária“, por qualquer restrição da plataforma Substack, peço-lhe que o envie pelo e-mail laalbiero@yahoo.com.br ou comente na postagem replicada no meu Facebook ou blogue.


Houve tempo em que o caminho da roça era um verdadeiro banho de poeira vermelha. Agora, com o asfalto, o pó incomoda apenas no curto trecho entre o carreador e a estrada, suficiente, ainda assim, para sujar tanto quanto antes. A terra impregna na roupa dos trabalhadores de um modo que não tem como tirar. Os cortadores de cana-de-açúcar se aglutinam sobre a carroceria do caminhão, em que se adaptaram algumas tábuas para servir de bancos, cobertos de lona.

A viagem da volta após o término da extenuante jornada de trabalho é marcada por odores de homens, mulheres e umas poucas crianças, amontoados como animais, suados e exauridos por quase dez horas ininterruptas sob a nudez do sol. Ninguém, porém, se incomoda com o mau cheiro, acostumados que estão a respirar a catinga uns dos outros.

O caminhão parece que vem tropeçando de tão velho. Frequenta oficinas mecânicas como um idoso doente a um hospital – tantas vezes lhe diagnosticaram a morte, à qual resiste, teimoso como a gente que carrega em seu dorso. 

O melhor da jornada de trabalho é o caminho da volta, diz Ana de Chico, que se arrisca a cantarolar. Os demais vaiam e riem. Uns contam piadas, outros tratam de banalidades domésticas. Os problemas de cada um contam pouco nessa hora. A maioria troca impressões sobre o trabalho. 

O vozerio forma um mosaico oral de sotaques variados. Durval, baiano, discute com o velho Ticão, paranaense de carapinha branca, quem teria cortado maior quantidade de cana-de-açúcar no dia. O nordestino não concorda com Ticão, que proclama que o campeão teria sido o mineiro Isaías. Jeremias, negro da terra, diz que concorda, caprichando no “r” retroflexo característico do interior paulista.

As margens da pista são ambas inteiramente plantadas de cana-de-açúcar. Isaías sente o cheiro de terra, molhada pelo breve chuvisco que caíra há pouco; agrada-lhe a fragrância adocicada. Ele joga o toco do cigarro que guardara do breve descanso pós-almoço e aspira com força o cheiro que, de tão doce, parece emanar dos pés de cana, como se houvesse um deus das matas de cujas veias escorresse uma seiva que banhasse o solo, espargindo o perfume que se sobrepõe ao de suor dos trabalhadores.

Olha para Olinda, sua companheira, parda de quase trinta. Ela usa um chapéu de aba larga, como todas as outras mulheres do grupo. Também como as demais, traz um lenço debaixo do chapéu que lhe esconde os cabelos rijos de não lavar, ou de só os lavar uma vez por semana.

Nas casinholas onde moram não há água encanada, nem energia elétrica. Ajeitam-se com velas e lamparinas e buscam em baldes a água que lhes fornece dona Luzia, mãe do turmeiro Gumercindo, o dono do caminhão e daquilo a que chamam de casa, pela qual pagam aluguel que vem descontado do ordenado. A paga pelo labor vem tão repleta de despesas pelo pouco que lhes abastece o patrão que quase nada lhes sobra em espécie.

No retorno, os trabalhadores são deixados perto de onde moram. A maioria desce no ponto final, defronte um boteco vizinho à casa do patrão, onde alguns dos homens adentram. Isaías é um deles.

Olinda pede para que não demore, que traga um quilo de feijão, pão e salaminho para o jantar. Leva consigo os apetrechos do marido, o podão, a garrafa de água, a de café e a marmita de alumínio vazia, acondicionados num grande saco de lona. 

O boteco é pequeno, mal comporta o grupelho de trabalhadores. A luz é insuficiente. Do rádio a válvula, exposto numa das prateleiras ao lado dos maços de cigarro, ouve-se o noticiário d’A Voz do Brasil.

Quase dez da noite, já são quatro as garrafas de cachaça vazias sobre o balcão. A porção de mortadela e azeitonas há muito deixara de existir. Pendendo de bêbado, Isaías tem o rosto moreno brilhando de suor. Diz coisas desconcertadas. Volta-se para Ticão, aponta-lhe o dedo como se empunhasse uma arma. Solta palavrões, balbucia o nome de Olinda e coisas que ninguém compreende, nem se esforça para entender. E tomba.

Ticão, que mal se segura em pé, tenta levantá-lo. A muito custo, ele e Chico conseguem levá-lo até a casa. Olinda o recebe aos gritos e palavrões, esquecendo-se de que as crianças dormem. Isaías não revida. Cambaleante, ruma à cama, que fica bem perto da porta. Desaba e ronca. As crianças não chegam a acordar, acostumadas com gritos e a dormir famintas.

Na manhã seguinte, domingo, os meninos já longe de casa, Isaías e Olinda conversam ainda no leito. Do quintal, vem um cheiro de estrume. Uma galinha passeia com a ninhada pela casa, sobe na mesa..

Foto: Roberto Faria, via David Arioch - Jornalismo Cultural

 

Isaías olha para a mulher, abre um sorriso e começa a beijar-lhe o rosto, voraz feito lobo sobre a carniça. Morde-lhe as orelhas, puxa-lhe os cabelos duros como esponja de alumínio. Isaías procura, mas não encontra em Olinda o aroma terroso, a fresca sensação do orvalho matinal.

As mãos grossas de Isaías envolvem, firmes, os peitos já não tão rijos de Olinda, que responde com beijos no rosto do amante. Ela evita a região da imensa cicatriz da face direita do parceiro, resultado de antiga briga de bar.

As pernas magras de Olinda não impedem que delas Isaías se delicie, que lhe corra a língua desde o tornozelo. Ele morde as panturrilhas, as coxas, as nádegas. Gemem um e outro. Ameaça beijar o sexo da mulher, mas o forte odor o repele. Volta os lábios para os seios e segue beijando.

Ambos ofegam. Olinda escorrega os dedos grossos do trabalho duro sobre a carcaça do parceiro. Desce as mãos às coxas, toca-lhe o sexo.

— Merda! Desse jeito não vai dar! — grita e se desgruda do corpo do homem.

— A culpa é sua, sua fedorenta! Porca, filha de uma égua!

Isaías levanta-se ligeiro, envergonhado, o brio ferido. A galinha e os pintinhos correm, em pânico. Enquanto se veste, ele não poupa ofensas à mulher:

— Onde é que eu ‘tava com a cabeça quando inventei de juntar os trapos com uma mulher que fede a urina e alho, e com esse bafo de jiboia!? Não tem homem que consiga.

Soluçando, Olinda procura defender-se:

— Até treis meis atrás, ‘tava tudo bem. Agora a culpa é minha? Seu bêbado, sem vergonha. Seu frouxo!

Isaías dá um pontapé no rosto de Olinda que a faz sangrar. Sem forças para revidar, ela se debruça sobre o travesseiro, tinge-o de sangue, encharca-o de lágrimas. Seu homem sai sem destino. 

Ele chega nos fundos de um clube de grã-finos. Sem ser percebido, escala o muro e se senta sobre ele. De cima, contempla a beleza do lugar e sua gente chique. Gente bonita, alegre, tão distante de sua realidade de boia-fria. Gente sustentada pelo meu trabalho, pensa.

Fixa os olhos na piscina do clube. Detém-se a observar as meninas, suas nádegas perfeitas, as coxas volumosas, os peitos firmes querendo saltar dos biquínis. Procura esquecer Olinda, feia, tão nova e já envelhecida, sem qualquer graça.

Um rapaz conversa à beira da piscina com uma bela morena, de biquíni tão pequeno que parece nua. Lembra sua Olinda, bem mais nova. Sentada na cadeira, as pernas abertas, óculos de sol, ela expõe o ventre na direção dos olhos de Isaías, que imagina ver-lhe os pelos do púbis e já não enxerga as peças do maiô. Ele deseja as coxas bronzeadas que vê.

A moça levanta-se a convite das amigas. Vão jogar voleibol. À medida em que pula, seus seios balançam com graça e todas as suas delicadas formas serpenteiam e se acentuam. Isaías pensa em Olinda, dez anos atrás, como era linda, como eram apaixonados.

Num lance exagerado, a bola, caprichosa, ricocheteia numa pedra e se acomoda próximo ao muro onde Isaías está, atrás dos vestiários, de forma que nem da piscina, nem da quadra de vôlei se pode ver. A garota que o encantara vem buscá-la.

Da grama há pouco regada provém o cheiro de terra molhada. A garota abaixa-se para pegar a bola e não vê nem percebe Isaías aproximar-se por trás. Não tem tempo de gritar. Isaías a agarra, tapa-lhe a boca com as suas mãos enormes e calosas, tira-lhe o quase nada que veste. Ela desmaia, não tem como resistir. Ele aprecia seu corpo nu, inerte, indefeso, uma deusa em seus braços.

Enlevado pelo frescor da menina, ele se abaixa para aspirar de perto e melhor os odores de sua intimidade. Isaías sente-se levitar com o cheiro, doce como a cana, que se confunde com o da água caída sobre o solo gramado e com o da seiva vertida do ventre da deusa, a escorrer pelas pedras e plantas, da deusa domada, toda nua, toda sua, dormente em seus braços. Ele morde as orelhas com cuidadosa voracidade, depois o pescoço, as coxas, as nádegas, belas como um par de luas cheias.

Tudo gira no entorno de Isaías, que rola com a garota, ainda inconsciente, sobre a relva da qual provém o olor que se mescla com o cheiro de ventre de menina, perfume de mulher em desabrocho que o inebria, de Olinda rejuvenescida, o orvalho da manhã que há pouco buscava na companheira.

Isaías deita-a sobre o gramado para tirar sua própria camisa. Olha desapressado para a bela mulher que tem diante de si e nela reconhece a sacralidade de uma deusa. Adivinha-lhe a virgindade menina e a traz de novo junto ao próprio peito, agora nu. Isaías a abraça com intensidade, com força tal que, súbito, ele decide converter em brutal ternura, como se agora a quisesse proteger, como se defendesse uma filha do monstro que a ataca, como se lutasse para salvá-la de si mesmo.

A demora da moça preocupa as amigas, que saem a buscá-la. O grito doloroso e prolongado da primeira que vê a cena acompanha Isaías até atrás das grades.

Na manhã seguinte à noite maldormida, por conta do duro castigo que lhe impuseram os companheiros de cela, Isaías é levado à presença da autoridade judicial. No corredor do fórum, Olinda o aguarda, aflita. Não lhe permitem, porém, que fale com ele.

Ela se desfaz em prantos ao vê-lo passar cabisbaixo diante de si, escoltado por dois policiais fardados que o apressam com empurrões nas costas, a caminho da sala de audiência, as algemas prendendo-lhe os punhos, o andar claudicante, sem coragem de olhar para a mulher.

Da cela, Isaías traz o cheiro de cimento mijado, a fetidez da miséria humana impregnada em sua roupa. 

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NOTA: eventuais alterações podem ser feitas a qualquer momento pelo autor na publicação original, aqui.

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25/05/2025

O Inabalável Jota

 Jota não estava em seu gabinete quando o telefone tocou. A secretária atendeu e a notícia era grave: a mãe do poderoso chefão havia falecido. 

Sem pestanejar, Marta ligou para o celular do chefe. A ligação foi atendida por um dos seguranças. “Ele está no mar, andando de jet-ski”, respondeu Merci, um policial destacado para a atividade.

“É urgente”, insistiu Marta, passando os dedos por entre seus longos cabelos amendoados que lhe escorriam pelos ombros. Transmitiu a notícia em palavras atropeladas. “Vou ver o que posso fazer”, avisou o outro.

Merci pegou um jet-ski e foi ao encontro de Jota. Ao se aproximar, deu sinais para que parasse e o ouvisse, mas o chefe estava muito feliz com o passeio, nada poderia interrompê-lo. Merci gritava é urgente, sem que Jota o escutasse.

Demorou até que, enfim, Jota parou.

— Que foi, Paraíba? Que que ‘tá acontecendo? Morreu a mãe de alguém?

— Isso mesmo, senhor.

— Vai me dizer que morreu a mãe do Trump. 

— Não exatamente…

— Menos mal. Eu ficaria muito sentido se fosse a mãe do Trump. Qualquer outra, eu não teria o mesmo sentimento — disse, lançando uma risada engasgada, expondo os dentes cerrados, a meia boca esticada em direção às orelhas.

— Gosto muito do cara, ‘cê sabe — completou Jota.

Ambos retornaram com os jet-skis até se reunirem em chão firme.

— E então, morreu a mãe de quem? Do português da piada? Hahaha! Conhece a piada do português que veio para o Brasil? Não conhece? Vou contar, então. Ele deixou em Portugal um gato para ser cuidado pelo amigo Manoel. Hahaha. 

— Senhor… — tentou interromper Merci, sisudo.

— Calma, rapaz! Por que a pressa? Por acaso foi sua mãe que morreu? Se foi, pode ir embora, está liberado por hoje — disse, escarcalhando novamente. 

— Não, não foi...

Jota o interrompeu e prosseguiu:

— Então. O português veio pro Rio de Janeiro, ‘tava lá de boa curtindo uma praia, tomando uma caipirinha, mulherada em volta… Hahaha! De repente, toca o celular. Era Manoel. Joaquim! Teu gato morreu! Hahaha.

Jota enrijeceu a musculatura facial, travou o riso e alçou as sobrancelhas, à espera de uma reação do segurança, que não veio. Continuou: 

— O português desmaiou, foi levado pro hospital. Quando se recuperou, ligou pro compadre e deu-lhe uma bronca. Quase me matas, ó Menuele! 

Jota fez um movimento com o corpo como se mudasse de personagem, a mão à orelha, em concha. 

— Mas como eu deveria ter dado a notícia?, perguntou Manoel. Hahaha! 

Fez outro movimento com o corpo e mudou a mão de orelha:

— Ora, devias ter me preparado para a má notícia. Primeiro, tu me dizias, Joaquim, teu gato subiu no telhado. Um tempo depois, me avisavas que o gato caiu do telhado. Por fim, eu já com o espírito preparado, aí sim tu me contavas a fatalidade!

Jota olhou fixamente para Merci, esperando arrancar-lhe uma risada, uma expressão de surpresa, que de novo não se apresentou. Sem perder o ânimo, retomou a contação:

— Manoel então disse que havia compreendido e, tudo bem, aquilo não aconteceria mais, e Joaquim voltou à praia. ‘Tava lá tomando uma cervejinha, comendo um camarãozinho e coisa e tal, quando, de repente, toca o celular. De novo, era Manoel. Hahaha! 

Jota levou a mão mais uma vez ao ouvido:

— Ó, Joaquim! Tua mãe subiu no telhado! — e desabou em nova gargalhada.

Merci permaneceu impassível, confrangido. 

— Ô, Paraíba! Não achou graça? Ria, rapaz! Ô sujeito mal-humorado.

O segurança mal foi capaz de esboçar um sorriso contido. Já não sabia como dar a notícia. Sentiu-se tomado por um desejo mórbido de dizer senhor, quem subiu no telhado foi a sua mãe, mas o só pensar nessa possibilidade lhe causou o desconforto de um profundo remorso.

— Desembucha, rapaz! Fala aí, a mãe de quem morreu? Vai dizer que, por coincidência, foi a mãe do Joaquim? — e gargalhou com mais intensidade.

— Quase isso — deixou escapar Merci e se arrependeu imediatamente.

— Como assim, quase isso, oxente? — repetiu Jota, imitando-lhe o sotaque e debochando do auxiliar.

— Sua mãe, senhor. Sua mãe, infelizmente, ela… faleceu. Marta acabou de telefonar. Meus sentimentos.

O semblante de Jota alterou-se com vagar, do meio sorriso de dentes cerrados para uma fisionomia fechada, quase de surpresa. Lançou um olhar severo para Merci, desvencilhou-se da boia que ainda envolvia seu corpo e perguntou:

— Por que não me disse logo?

Merci preferiu não responder.

— Quando foi?

— Hoje. Talvez ontem, Marta não soube dizer. Ligaram há pouco do asilo.

Jota voltou para o hotel. Foi de helicóptero para a pequena cidade onde a mãe passara toda a vida. A aeronave pousou num descampado próximo do cemitério em que o corpo era velado. Tomaram o automóvel que já os esperava e rumaram para o velório.

— Vamos lá, Paraíba — disse Jota ao descer do veículo, ajeitando seus óculos escuros e alisando os cabelos. Merci fez o mesmo com os próprios óculos, deu batidas no terno, puxou-o para baixo a esticá-lo, ajeitou a gravata de listras verdes e pretas e seguiu o chefe.

O modesto edifício compunha-se de um amplo salão de entrada, uma pequena cozinha, dois banheiros, e se dividia em três câmaras desprovidas de janelas. Duas delas estavam vazias. Misturavam-se no ar aromas de café e chá de capim-limão. Jota caminhou até onde era velado o corpo da mãe. 

Merci e os outros dois seguranças mantiveram-se em seu entorno, o que despertava curiosidades e burburinhos entre os presentes. Poucas eram as pessoas no local. A falecida era bem avançada em anos, beirava o centenário; havia décadas que residia num asilo, onde o filho a visitara duas ou três vezes.

Perpedina, irmã caçula da defunta, observou o sobrinho caminhar com dificuldade, as pernas abertas como um montador de animais, o abdômen imenso, a cara amarrada que há vários anos acostumara-se a só ver pelo noticiário da TV e redes sociais. Acompanhou-o com o olhar desde que ele cruzou o portal de entrada até se posicionar ao lado do esquife, próximo da cabeça da genitora. Jota não chorou. A tia reparou quando ele, decerto em gesto de reverência, como se tirasse um chapéu da cabeça, retirou os óculos de sol e os segurou às costas. Notou quando ele fixou seus olhos no cadáver da mãe, sem que o tocasse. Nenhuma lágrima deixou escapar, nenhum fio de sangue avermelhou sua esclera. O cheiro das velas a queimar havia sobreposto os de café e capim-limão da entrada. 

Assim permaneceu Jota por cerca de meia hora, até que um homem alto, de meia idade, esguio e vesgo, metido num surrado terno preto de microfibra, a camisa branca amarelecida sobre a qual jazia uma gravata vermelha descorada pelo uso, pediu licença para colocar a tampa sobre o caixão. 

A irmã solicitou que antes pudesse fazer uma oração e assim lhe foi permitido. Ainda incomodada com a ausência de reação do sobrinho, Perpedina puxou três ave-marias e um pai-nosso. Notou que Jota não acompanhou a reza e não moveu um único músculo da face. 

— E levai as almas todas para o céu. Em nome do Pai, do Filho… — rezou Perpedina, acompanhada por quase ninguém. 

Terminada a encomendação do corpo feita de improviso, que mal durou dez minutos, o homem vesgo da funerária reaproximou-se e girou com firmeza um a um os parafusos dourados da urna mortuária. Certificou-se de que o serviço fora executado com perfeição, de modo a garantir a segurança necessária, recolheu as coroas de flores, uma delas ofertada pela própria agência funerária, a outra providenciada pela diligente Marta. Caminhou em direção à saída do prédio, diante do qual estava parado o veículo fúnebre. Abriu-lhe a porta traseira e deu sinal aos presentes de que já poderiam carregar o ataúde até ali. 

Embora fossem necessários seis carregadores, apenas cinco homens se apresentaram. Três eram Merci e seus colegas da segurança; os demais, um sobrinho mais velho do que Jota, com ar cansado, a quem o primo cumprimentara a distância, apenas por troca de olhares, e Pérez, um estrangeiro bastante idoso que residia no mesmo asilo da falecida. Viera a pé, sozinho, pois o asilo ficava a menos de dez quadras dali. Costumava dizer que o albergue onde vivia era um passo anterior ao cemitério. Não poderia faltar ao adeus derradeiro à amiga. 

Todos a postos, faltava um sexto braço forte e os olhares se voltaram para Jota, que se manteve impassível. Não havia outro homem no interior da câmara-ardente. Só quando tia Perpedina, expondo as dificuldades da idade avançada, se apresentou para carregar o caixão foi que ele, num ato semelhante ao de generosidade, sussurrou-lhe:

— Pode deixar, tia. Eu levo.

Caminharam uns poucos metros até o veículo, dentro do qual depositaram o caixão. O agente funerário fechou a porta traseira e conduziu lentamente o automóvel, acompanhado pelos presentes, que o seguiam a pé. 

O portão de entrada do cemitério ficava a uns cem metros do espaço destinado ao velório. Ao longo do trajeto, Jota perguntou ao segurança:

— Paraíba, que dia é hoje?

— Sexta-feira — respondeu Merci. 

— ‘Tô perguntando número, Paraíba. Que é sexta-feira eu sei. Sextou! — disse, contendo um riso inoportuno.

Merci respondeu que era 22.

— Olhe a placa do carro. Termina com 22. É um sinal.

O segurança não entendeu, tampouco perguntou a que sinal o chefe se referia. 

O veículo adentrou o cemitério, seguindo o tempo todo em velocidade que pudesse ser acompanhado pelos poucos que o seguiam, e parou a dez metros da sepultura.

O caixão foi baixado pelos funcionários do cemitério. Retiradas as cordas, eles cobriram a cova com placas de concreto, que vedaram com argamassa já preparada. Ninguém lançou flores sobre o ataúde. Em seguida, passaram a assentar alguns tijolos até vedar completamente o sepulcro. 

O agente funerário depositou as duas coroas sobre o jazigo. Seu olho direito insistia em olhar para o chão. Cumprimentou os que ali permaneciam e partiu. 

Só Perpedina chorava, com discrição. Jota ficou até que o último tijolo fosse assentado, sem dizer palavra. A tia o convidou para tomar um café em casa, mas ele recusou. Alegou falta de tempo, compromissos inadiáveis, sem contar que o café lhe provocava azia, do que resultava terrivel dor no estômago. Não se lembrou de perguntar à tia como tem passado. Ela o abraçou e se despediram.

Jota e os seguranças iniciaram o caminho de regresso. Os rapazes se distraíam lendo os epitáfios, maravilhados com a antiguidade de muitos dos jazigos. Algumas lápides registravam a chegada de imigrantes alemães e italianos à cidade no final do século XIX. Outras exibiam homenagens de filhos aos pais, de esposas aos maridos. Estátuas de anjo sobrepunham-se a sepulturas de caprichada construção em que se liam as datas de nascimento e morte de crianças, a maioria em tenra idade, ao lado dos nomes. Pérez vinha atrás, solitário em seu difícil caminhar.

— Você viu o número da sepultura, Paraíba? — indagou Jota, referindo-se ao sepulcro da mãe.

— Não, senhor.

— 22. Mais um sinal. 

Merci, de novo, nada disse. Não conhecera a mãe de Jota, mas trazia os olhos vermelhos e uma lágrima triste escorria-lhe pelas faces suadas, coradas pelo sol que se exibia pleno. Pensava na velha, na gelidez de seu rosto inerte, extinto; olhava para Pérez, cada vez mais distante, desaparecendo no declive, e refletia sobre o custo de uma amizade.

O automóvel os esperava à porta do cemitério. Jota sentou-se no banco ao lado do motorista e ordenou:

— Toca para uma casa lotérica.

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06/11/2024

Cainã, o Telecobrador

 


Da Biblioteca da Casa Literária de Luís Antônio Albiero

Faltavam segundos para as sete da noite quando Cainã viu surgir na tela do computador mais uma ligação a ser feita. Seria a última do dia, pois seu turno chegava ao fim. Estava ansioso por ir embora e odiou a inserção desse novo número de telefone que lhe fez a pessoa sem rosto que lhe supervisiona o trabalho, passa-lhe ordens e lhe dá as broncas por metas não atingidas. Enquanto tocava e ele, dedos cruzados, torcia para que o destinatário não o atendesse, pôs-se a reparar nos colegas. Todos expunham na fisionomia, nos gestos, na pressa, o cansaço de mais um dia de dissabores insólitos. Odiou mais quando do outro lado alguém o atendeu. — Senhor José Fanzine? — indagou Cainã, com voz honestamente simpática.
Uma voz de homem respondeu, serena: — Boa tarde. Pode falar. — Ótima tarde, senhor… Cainã mal iniciou o discurso treinado e foi interrompido pelo interlocutor: — Qual o seu nome, por gentileza? — Cainã, senhor. Falo em nome da… — Cainã! Bonito nome. Indígena, presumo. Exala o frescor da natureza. Que bom que você ligou, Cainã. Estava mesmo me sentindo solitário, precisando de alguém para conversar. — Que bom, senhor José. Eu falo em nome… — Eu sei, eu sei. Você fala pela empresa Concentro, em nome do banco Santo André. Você já deve ser o décimo quinto que me liga hoje. — Eu preciso que o senhor me confirme o número de seu… — CPF. Vamos pular essa parte. Como eu lhe disse… — O senhor é mesmo José Fanzine? — De que adiantará lhe dizer que não? Só hoje, foram quinze ligações. Quinze! Veja que eu neguei cinco vezes mais do que Pedro a Cristo, mas não adiantou. Cá está você! Vocês insistem em me ligar. Há pouco, ligou-me um Alfonso. Cainã olhou em volta, os colegas retiravam fones de ouvido e fios da cabeça, alguns já perfilavam diante do computador que serve de relógio de ponto eletrônico. O sujeito do outro lado da linha prosseguia, indiferente: — Até semana passada, era outra empresa, uma certa Alma Viva, ou Vivalma. Convenhamos, o nome era mais simpático, mais interessante do que Concentro. Muito prosaico, este. Alma Viva, ou Vivalma, tinha ao menos um quê de poesia. Era mais “versaico”, se me permite um neologismo; mais cheio de vida. — Senhor, eu vou estar precisando checar seus dados. — Compreendo, Cainã. Mas foi você quem me ligou, e você tem todos os meus dados. Aliás, tem os dados desse José Fanzine, Pazini, Magazine… enfim, desse pobre coitado em quem vocês me transformaram. — Senhor, vou estar anotando aqui que… — Não vai adiantar, meu caro Cainã. Agradeço sua boa vontade, mas eu já solicitei umas quatrocentas e trinta e sete vezes que riscassem meu número do seu caderno, e não adianta! — disse, com voz calma, arriscando-se a cantarolar Risque, de Ary Barroso. — Você vai registrar, e eu não duvido disso; vai desligar e, dez minutos depois, outro me telefonará com igual discurso pronto. “Ótimo dia, senhor”, ele me dirá. A propósito, interessante essa transformação. Até uns tempos atrás, vocês eram treinados para desejar “bom dia”, “boa tarde”, como manda e sempre mandou a boa educação. De repente, as empresas de teleatendimento deram um salto de qualidade, um “apigreide”, como se diz em línguas estrangeiras, e atualizaram essa expressão de desejo. Passaram a nos dizer “ótimo dia”. Ainda hoje me ligou uma moça, sua colega dessa mesma empresa, simpática como você, a Ismália. “Tenha um ótimo dia, senhor!”, ela me disse, depois de me fazer a mesma cobrança. Como eu quis conversar, como faço agora com você, ela bateu o telefone e me deixou falando sozinho. Que ótimo! O treinamento tem funcionado, sem dúvida, mas o resultado é horrível. Soa falso, é irritante. — Senhor, eu… grouuouo… gruoouou… — Cainã, querido. A ligação ficou péssima, de repente. Quer ter a bondade de repetir o que disse, por gentileza? — Perdão, senhor. Um minutinho, vou ajustar… Agora, sim. Eu estava lhe dizendo que entendo o senhor e que vou estar fazendo uma anotação, mas sugiro que o senhor entre em contato com o banco… — Cainã, simpático Cainã! Bondade sua, e agradeço pela sugestão, mas vou lhe dizer, vou dizer a vocês, pela quadricentésima trigésima oitava vez — e seguiu falando com a calma inverossímil das pessoas dotadas de paciência inesgotável. — Eu não sou José Fanzine! Eu não faço ideia de quem seja esse pobre-diabo que, sem querer, anda me pondo em crise de identidade. E não vou perder meu tempo e meu humor para ligar para um banco para dizer que eu sou eu e que não sou outra pessoa! Até porque, com certeza, com pessoa é que não vou conseguir falar. Você sabe disso melhor do que eu. Uma voz de robô me atenderá e me recitará um rosário de números, “disque um para isto, disque dois para aquilo”, depois “digite seu CPF”, e nesse diapasão jamais chegarei a ser atendido por um ser humano, como você. É incrível que, na hora de cobrar, os bancos optem por seres humanos. O jovem de vinte e dois anos, cabelos longos, olhos esverdeados e compreensíveis dificuldades com a língua pátria era generoso e educado e não quis fazer desfeita ao homem que o atendera de modo tão inesperado e, de certa forma, não lhe faltara com a gentileza. — Senhor, vou precisar estar encerrando… — Cainã, estimado e compreensivo Cainã. Sabe, eu trabalho em teleofício, em romiófis, como se diz em línguas estrangeiras, em minha própria casa. Passo os dias solitário, sem ter um único colega com quem eu pudesse definir, entre um cafezinho e outro, as soluções para os grandes problemas da humanidade. Confesso que até gosto dessas ligações, dessas cobranças que vocês insistem em me fazer, por mais perturbadoras que sejam. É a chance que tenho de dialogar com alguém, entende? A propósito, você assistiu ao jogo de ontem, do Palmeiras…? O telecobrador riu e explicou que não curte futebol. — Ah, que pena. Achei que poderíamos entabular uma rodada de debates sobre o jogo de ontem, a roubalheira que foi... — Lamento, senhor. Olha, eu poderia… — Sei, sei. Você tem outras ligações a fazer e eu estou apenas tomando seu precioso tempo. Mas vou lhe fazer mais esta confissão: é proposital. É a lei de Talião, já ouviu falar? Quem com ferro fere, olho por olho será ferido. É o meu troco, dente por dente. Vocês acham que eu tenho tempo para ficar recebendo ligações, cobranças por alguém que não sou e nem conheço. Minha arma é tomar o seu tempo! Pela natureza da sua atividade, suponho que o seu tempo valha mais dinheiro do que o meu. Afinal, sabemos de antemão que comigo você não terá êxito, pois, como venho lhe dizendo, não faço ideia de quem seja esse tal José Fanzine. Já se você estivesse cobrando de outro, quem sabe... O sujeito não queria deixar Cainã respirar, pois a um vacilo, o cobrador desfaria a ligação. — Sabe que seus colegas já me ligaram até oito horas da manhã de sábado? Várias vezes. Eu, querendo dormir até mais tarde… Sábado! Dia do Senhor, e não dia de sim-senhor-não-senhor. Essa empresa para a qual você trabalha, assim como a anterior e as demais, são todas impiedosas! Onde já se viu acordar alguém às oito horas da madrugada, num fim de semana? Onde já se viu obrigar um trabalhador honesto e dedicado como você a cobrar outro em plena madrugada de um sábado? — Perdoe-me, senhor, mas vou desli… Cainã interrompeu a ligação antes de completar a própria frase. Com destreza, retirou fios e fone das orelhas e, num salto, estava batendo o ponto. Dos colegas de turno, já não havia mais ninguém. Na rua escura, um vento gelado cortava-lhe os ossos. Correu em vão para pegar o ônibus, que saía do ponto lotado. O motorista não atendeu ao seu sinal. O próximo só viria uma hora depois e ele decidiu caminhar. Enquanto andava, seu celular tocou. Era um telecobrador, de uma empresa concorrente, que lhe cobrava um valor qualquer. Cainã desligou. Ao atravessar a ponte, parou para contemplar o reflexo do luar sobre as águas calmas do rio. Olhou para o céu e se encantou com a lua cheia. Cainã desejou alcançar a lua do céu e calculou que, para tanto, a lua do rio haveria de servir-lhe de caminho.

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