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22/06/2025

Petricor

IMPORTANTE: Prezada leitora, prezado leitor. Preciso muito saber da sua opinião sobre este conto, sobretudo quanto à temática e à forma como é tratada. Se puder me dar retorno, desde já lhe sou grato. Se não for possível deixar seu comentário ao final desta publicação, na página “Casa Literária“, por qualquer restrição da plataforma Substack, peço-lhe que o envie pelo e-mail laalbiero@yahoo.com.br ou comente na postagem replicada no meu Facebook ou blogue.

Houve tempo em que o caminho da roça era um verdadeiro banho de poeira vermelha. Agora, com o asfalto, só há pó no curto trecho entre o carreador e a estrada, suficiente, ainda assim, para sujar tanto quanto antes. A terra impregna na roupa de um modo que não tem como tirar.

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Os cortadores de cana-de-açúcar aglutinam-se sobre a carroceria do caminhão, em que se adaptaram algumas tábuas para servir de bancos cobertos de lona.

A viagem da volta após o término da extenuante jornada de trabalho é uma aventura terrível de odores nada agradáveis. Homens, mulheres e crianças amontoados como animais, suados e exauridos por quase dez horas ininterruptas sob a desavergonhada nudez do sol. Ninguém, porém, se incomoda com o mau cheiro. Estão acostumados a respirar a catinga uns dos outros.

O caminhão parece que vem tropeçando, não só por causa dos buracos do asfalto. Está muito velho. Frequenta oficinas mecânicas como um idoso doente a um hospital. Tantas vezes lhe diagnosticaram a morte, à qual resiste, teimoso como a gente que carrega em seu dorso. É uma sorte que não quebre no meio do percurso.

Foto: Roberto Faria, via David Arioch - Jornalismo Cultural

O melhor da jornada de trabalho é o fim, o caminho da volta, diz Ana de Chico, que se arrisca a cantarolar. Os demais vaiam e riem. Uns contam piadas, outros tratam de banalidades domésticas. Os problemas de cada um não contam nessa hora. A maioria troca impressões sobre o trabalho. O vozerio forma um mosaico de sotaques variados.

Durval, nordestino, discute com o velho Ticão, paranaense de carapinha branca, quem teria cortado maior quantidade de cana-de-açúcar no dia. O baiano não concorda com Ticão, que proclama que o campeão teria sido Isaías.

— Na medição, roubaram ele — afirma o velho.

Durval olha para Isaías com inveja. Caboclo forte, o mineiro vem calado, não percebe que falam a seu respeito. Vem observando o sol que desaparece aos poucos, encantado com o vermelho alaranjado que ornamenta o encontro do céu com a terra. É lua cheia e ela já surge no horizonte oposto, iluminada, redondinha, no rastro do caminhão.

As margens da pista são ambas inteiramente plantadas de cana-de-açúcar. Isaías sente o cheiro de terra, molhada pelo breve chuvisco que caiu há pouco; agrada-lhe a fragrância adocicada. Ele joga o toco do cigarro que vinha fumando, que guardara do breve descanso pós-almoço, e aspira com força intensa o cheiro que vem do chão, como se brotasse da cana, que se mistura ao de suor dos trabalhadores.

Olha para Olinda, sua companheira, parda de quase trinta. Ela usa um chapéu de aba larga, como todas as outras mulheres do grupo. Também como as demais, traz um lenço debaixo do chapéu que lhe esconde os cabelos rijos de não lavar, ou de só os lavar uma vez por semana. Isaías não a cobra por isso, porque com ele ocorre o mesmo. Com todos ali.

Nas casinholas onde moram, não há água encanada, nem luz. Ajeitam-se com velas e lamparinas. Água, buscam em baldes a que lhes serve dona Luzia, mãe do turmeiro Gumercindo, o dono do caminhão e daquilo a que chamam de casa, pela qual pagam aluguel que vem descontado do ordenado, da paga pelo labor, tão repleta de despesas do que lhes fornece o patrão que quase nada lhes sobra em espécie.

O itinerário do caminhão pela cidade repete-se todo dia. No retorno, os trabalhadores são deixados perto de onde moram, nos mesmos lugares em que são apanhados na madrugada. A maioria desce no ponto final, defronte um boteco de esquina, vizinho à casa do patrão, onde alguns dos homens adentram. Isaías é um deles.

Olinda pede para que não demore, que traga pão e salaminho para a mistura do jantar. Leva consigo os apetrechos do marido, como o podão, a garrafa de água, a de café e a marmita de alumínio vazia, acondicionados num grande saco de lona. Ela e Ana dão-se os braços e vão com as outras mulheres. As casas, precárias e contíguas, formam uma pequena vila particular num grande descampado, nos fundos da casa de dona Luzia, onde o filho estaciona o caminhão.

No bar, risos e gargalhadas, fumaça, tosse, mortadela e azeitona regadas a farta doses de cachaça. Os homens conversam em voz alta sobre futebol, mulheres, música. Durval insiste que é o melhor no corte de cana, olhando de esguelha para Isaías. Ticão persiste em defender o amigo mineiro, por quem demonstra profunda afeição.

— Quanto foi que ‘cê fez hoje, Zaía? — provoca Durval, com voz já um tanto pastosa.

— Ah, isso não interessa, o que importa é trabalhar — esquiva-se o mineiro, sem muita convicção.

— O trabalho dignifica o homem — arremata Ticão, há muitos anos na cidade.

— Danifica — observa Jeremias, negro da terra que expõe a branquitude de seus dentes imensos, o único do grupo a ostentar arcada dentária completa. Os outros riem, cada qual com seu sorriso falho, esburacado.

O boteco é pequeno, mal comporta o grupelho de trabalhadores. A luz é insuficiente. Do rádio a válvula, exposto numa das prateleiras ao lado dos maços de cigarro, ouve-se o noticiário d’A Voz do Brasil.

— Seu Gumercindo é que leva a vida. Tem o caminhão, uma casa boa, com televisão e geladeira. Faça as contas. Só com o salário da gente, quanto é que ele deve gastar? Tudo pago pela usina. Dessa quantia, garanto que o lucro dele é mais que o dobro, só pra ele.

Todos assentem com a cabeça à observação de Durval. Gumercindo é o responsável pela turma de trabalhadores, contratado pela usina e dono dos casebres em que aloja seus empregados, a maioria vinda de outros estados.

— Podre de rico e ainda chora que não tem dinheiro — observa Jeremias, caprichando nos “r” retroflexos, característicos dos nativos da cidade.

— É, mas veja que seu Varte é mais rico ainda — replica Isaías.

— Bem mais — reforça Chico de Ana, um magricela recém-chegado de Pernambuco, que veio com a família toda, para ficar.

— Claro. Ele é dono da usina, oxente! ‘Cê queria o quê? Ele é dono de tudo — devolve o baiano.

— Mas não é dono de nói — retruca Jeremias.

— E daí, que é dono de tudo? Não é gente igual a gente? Por que é que nós tem que trabalhar de sol a sol para chegar em casa e não ter o que comer, não ter água, nem luz, com mulher e três filhos para tratar, enquanto ele tem lá três ou quatro carrão, um baita de um casarão? Dizem que até avião o home tem.

Novamente seguem-se acenos de cabeça às ponderações de Isaías.

— É verdade, Zaía.

— Tanta terra que ele tem sem plantar, tanta terra parada. O governo é que devia dar um jeito nisso — completa o mineiro, ingerindo mais uma dose.

Quase dez da noite, já são quatro as garrafas de cachaça vazias sobre o balcão. A porção de mortadela e azeitonas há muito deixara de existir. Durval sua, fala engasgado, os olhos baixos, mortos. Com um velho e enferrujado canivete, estica o braço e o aponta para Isaías, como se ameaçasse feri-lo. O mineiro encara o desafeto, mas não lhe responde. O dono do estabelecimento intervém, expulsa Durval, que se vai trôpego.

Também pendendo de bêbado, Isaías tem o rosto moreno brilhando de suor. Diz coisas desconcertadas. Volta-se para Ticão, aponta-lhe o dedo como quem empunha uma arma. Solta palavrões, balbucia o nome de Olinda e coisas que ninguém compreende, nem se esforça para entender.

Principia a chorar e pede repetidas desculpas a Ticão. Tem a impressão de que o bar todo gira. Uma teia de aranha no alto da prateleira, tomada por garrafas empoeiradas, torna-se imensa. Os finos tentáculos da aranha engrossam. Ela parece querer feri-lo, dá voltas em torno de Isaías, gigantesca.

— Alguém pare essa merda!

E ele tomba.

Ticão, que mal se segura em pé, tenta levantá-lo. A muito custo, ele, Chico e Jeremias conseguem levá-lo até sua casa.

‘Cês são tudo uns puto, isso é que vocês são — repete Isaías pelo caminho.

Olinda o recebe aos palavrões e gritos, esquecendo-se de que as crianças dormem.

— E o salaminho, seu bosta? Os meninos foram dormir com fome, só comeram as sobras de arroz, foi pouco. Ah, você ainda me paga, filho de uma vaca!

Isaías não revida. Cambaleante, ruma à cama, que fica bem perto da porta. Desaba e começa a roncar. As crianças não chegam a acordar, acostumadas com gritos e a dormir famintas.

Na manhã seguinte, domingo, os meninos já longe de casa, Isaías e Olinda conversam ainda no leito.

— Dei muito trabalho onte, veia?

— Não, que isso, bem — responde a mulher, com meiguice e sinceridade.

Isaías abre um sorriso e começa a beijar-lhe o rosto, voraz feito lobo sobre a carniça. Morde-lhe a orelha, puxa-lhe os cabelos que se assemelham a esponja de alumínio. O mau cheiro de um não incomoda o outro. Ainda assim, Isaías procura identificar um aroma terroso, mas não encontra em Olinda o frescor do orvalho da manhã.

As mãos grossas de Isaías envolvem, firmes, os peitos já não tão rijos de Olinda, que responde com beijos no rosto do amante. Ela evita a região da imensa cicatriz da face direita do parceiro, resultado de antiga briga de bar.

As pernas magras de Olinda não impedem que delas Isaías se delicie, que lhe corra a língua desde o tornozelo. Ele morde as panturrilhas, as coxas, as nádegas. Gemem um e outro. Ameaça beijar o sexo da mulher, mas o repele um forte odor desagradável. Volta os lábios para os seios e segue beijando.

Ambos ofegam. Olinda escorrega os dedos grossos do trabalho duro sobre a carcaça do parceiro. Desce as mãos às coxas, toca-lhe o sexo.

— Merda! Desse jeito não vai dar! — grita e se desgruda do corpo do homem.

— A culpa é sua, sua desdentada! Porca! Égua!

Isaías levanta-se sorrateiramente, tomado pela vergonha, pelo brio ferido. Enquanto se veste, não poupa ofensas à mulher.

— Onde é que eu estava com a cabeça quando inventei de juntar os trapos com uma mulher porca, que fede a urina e alho, com esse bafo de jiboia!? Não tem homem que consiga.

Soluçando, Olinda procura defender-se.

— Vagabundo! Até três meis atrás, ‘tava tudo bem. Agora a culpa é minha? Seu bêbado, sem vergonha. Seu frouxo!

Isaías dá-lhe um pontapé no rosto que lhe põe abaixo mais um dente. Do quintal, vem um cheiro de estrume. Uma galinha passeia com a ninhada pela casa, sobe na mesa.

— Merda de vida! — lamenta Isaías.

Olinda, ensanguentada, não tem forças para revidar. Debruça-se sobre o travesseiro, tinge-o de sangue, encharca-o de lágrimas. Seu homem sai sem destino.

— Aquela bunda seca! Não tem quem sinta tesão.

Entra num pequeno campo de futebol de várzea. O jogo, no entanto, não o atrai. Vê uns amigos, faz que não conhece. Sai e continua seu caminho sem rumo.

Chega nos fundos de um clube grã-fino sem perceber, nem ser percebido. Escala o muro e se senta sobre ele, e de cima contempla a beleza do lugar e sua gente chique. Gente bonita, alegre, pensa Isaías, tão distante de sua realidade e de seus companheiros boias-frias. Gente sustentada pelos frutos do seu trabalho.

Três meses… Olinda até que foi generosa. Na verdade, desde o início da safra não conseguia completar o ato sexual.

— Mulher desdentada. Gente rica é que leva a vida.

Fixa os olhos na piscina do clube. Detém-se a observar as meninas, suas nádegas perfeitas, redondinhas, as coxas volumosas, os peitos rijos querendo saltar dos biquínis. Procura esquecer Olinda, feia, tão nova e já envelhecida, sem qualquer graça.

Um rapaz conversa à beira da piscina com uma bela morena, de biquíni tão pequeno que parece nua. Lembra sua Olinda, bem mais nova. Sentada na cadeira, de pernas abertas, óculos de sol, ela expõe o ventre na direção dos olhos de Isaías, que imagina ver-lhe os pelos da púbis e já não enxerga as peças do maiô. Excitado, ele deseja as coxas bronzeadas que vê, tão oferecidas.

A moça levanta-se a convite das amigas. Vão jogar voleibol. À medida em que pula, seus seios balançam graciosamente e se acentuam todas as suas delicadas formas. Isaías pensa em Olinda, dez anos atrás, como era linda, como eram apaixonados.

Num lance exagerado, a bola, caprichosa, cai próximo ao muro onde Isaías está. A garota que o encantara vem buscá-la. A bola acomoda-se atrás dos vestiários, de forma que nem da piscina, nem da quadra de vôlei se pode ver.

Do gramado, regado pouco antes, provém um gostoso cheiro de terra molhada. A garota abaixa-se para pegar a bola e não vê nem percebe Isaías aproximar-se por trás. Não tem tempo de gritar. Isaías tapa-lhe a boca com as suas mãos calosas, tira-lhe o quase nada que veste. Ela desmaia, não tem como resistir. Ele aprecia-lhe o corpo nu, inerte, indefeso.

Enlevado pelo frescor da menina, ele se abaixa para aspirar de perto os odores de sua intimidade. Isaías sente-se levitar com o perfume, doce como a cana, cheiro de terra molhada. Ele morde as orelhas com cuidadosa voracidade, depois o pescoço, as coxas. Toma-lhe as nádegas como se se apropriasse de um par de luas cheias. Vai aos seios com tal volúpia que lhe machuca os mamilos.

Como na véspera, tudo gira no entorno de Isaías, enquanto ele rola com ela, ainda inconsciente, sobre a relva da qual provém o olor inebriante e que se mescla com o que exala a garota. Nela, encontra o frescor que buscava em Olinda. Machucam-se ambos em meio às pedras, pedaços de pau, restos de construção.

A demora da moça preocupa as amigas. O grito doloroso e prolongado da primeira que vê a cena acompanha Isaías até atrás das grades.

Na manhã seguinte à noite mal-dormida, por conta do duro castigo aplicado pelos companheiros de cela, Isaías é levado à presença da autoridade policial. No corredor da delegacia, Olinda o aguarda, aflita. Não lhe permitem, porém, que fale com ele.

Ela se desfaz em prantos ao vê-lo passar cabisbaixo diante de si, o andar claudicante, escoltado por dois policiais fardados que o apressam com empurrões nas costas, as algemas prendendo-lhe os punhos, sem coragem de olhar para a mulher.

Da cela, Isaías traz o fétido odor de cimento mijado. _______________________________________________

NOTA: eventuais alterações podem ser feitas a qualquer momento pelo autor na publicação original, aqui.







25/05/2025

O Inabalável Jota

 Jota não estava em seu gabinete quando o telefone tocou. A secretária atendeu e a notícia era grave: a mãe do poderoso chefão havia falecido. 

Sem pestanejar, Marta ligou para o celular do chefe. A ligação foi atendida por um dos seguranças. “Ele está no mar, andando de jet-ski”, respondeu Merci, um policial destacado para a atividade.

“É urgente”, insistiu Marta, passando os dedos por entre seus longos cabelos amendoados que lhe escorriam pelos ombros. Transmitiu a notícia em palavras atropeladas. “Vou ver o que posso fazer”, avisou o outro.

Merci pegou um jet-ski e foi ao encontro de Jota. Ao se aproximar, deu sinais para que parasse e o ouvisse, mas o chefe estava muito feliz com o passeio, nada poderia interrompê-lo. Merci gritava é urgente, sem que Jota o escutasse.

Demorou até que, enfim, Jota parou.

— Que foi, Paraíba? Que que ‘tá acontecendo? Morreu a mãe de alguém?

— Isso mesmo, senhor.

— Vai me dizer que morreu a mãe do Trump. 

— Não exatamente…

— Menos mal. Eu ficaria muito sentido se fosse a mãe do Trump. Qualquer outra, eu não teria o mesmo sentimento — disse, lançando uma risada engasgada, expondo os dentes cerrados, a meia boca esticada em direção às orelhas.

— Gosto muito do cara, ‘cê sabe — completou Jota.

Ambos retornaram com os jet-skis até se reunirem em chão firme.

— E então, morreu a mãe de quem? Do português da piada? Hahaha! Conhece a piada do português que veio para o Brasil? Não conhece? Vou contar, então. Ele deixou em Portugal um gato para ser cuidado pelo amigo Manoel. Hahaha. 

— Senhor… — tentou interromper Merci, sisudo.

— Calma, rapaz! Por que a pressa? Por acaso foi sua mãe que morreu? Se foi, pode ir embora, está liberado por hoje — disse, escarcalhando novamente. 

— Não, não foi...

Jota o interrompeu e prosseguiu:

— Então. O português veio pro Rio de Janeiro, ‘tava lá de boa curtindo uma praia, tomando uma caipirinha, mulherada em volta… Hahaha! De repente, toca o celular. Era Manoel. Joaquim! Teu gato morreu! Hahaha.

Jota enrijeceu a musculatura facial, travou o riso e alçou as sobrancelhas, à espera de uma reação do segurança, que não veio. Continuou: 

— O português desmaiou, foi levado pro hospital. Quando se recuperou, ligou pro compadre e deu-lhe uma bronca. Quase me matas, ó Menuele! 

Jota fez um movimento com o corpo como se mudasse de personagem, a mão à orelha, em concha. 

— Mas como eu deveria ter dado a notícia?, perguntou Manoel. Hahaha! 

Fez outro movimento com o corpo e mudou a mão de orelha:

— Ora, devias ter me preparado para a má notícia. Primeiro, tu me dizias, Joaquim, teu gato subiu no telhado. Um tempo depois, me avisavas que o gato caiu do telhado. Por fim, eu já com o espírito preparado, aí sim tu me contavas a fatalidade!

Jota olhou fixamente para Merci, esperando arrancar-lhe uma risada, uma expressão de surpresa, que de novo não se apresentou. Sem perder o ânimo, retomou a contação:

— Manoel então disse que havia compreendido e, tudo bem, aquilo não aconteceria mais, e Joaquim voltou à praia. ‘Tava lá tomando uma cervejinha, comendo um camarãozinho e coisa e tal, quando, de repente, toca o celular. De novo, era Manoel. Hahaha! 

Jota levou a mão mais uma vez ao ouvido:

— Ó, Joaquim! Tua mãe subiu no telhado! — e desabou em nova gargalhada.

Merci permaneceu impassível, confrangido. 

— Ô, Paraíba! Não achou graça? Ria, rapaz! Ô sujeito mal-humorado.

O segurança mal foi capaz de esboçar um sorriso contido. Já não sabia como dar a notícia. Sentiu-se tomado por um desejo mórbido de dizer senhor, quem subiu no telhado foi a sua mãe, mas o só pensar nessa possibilidade lhe causou o desconforto de um profundo remorso.

— Desembucha, rapaz! Fala aí, a mãe de quem morreu? Vai dizer que, por coincidência, foi a mãe do Joaquim? — e gargalhou com mais intensidade.

— Quase isso — deixou escapar Merci e se arrependeu imediatamente.

— Como assim, quase isso, oxente? — repetiu Jota, imitando-lhe o sotaque e debochando do auxiliar.

— Sua mãe, senhor. Sua mãe, infelizmente, ela… faleceu. Marta acabou de telefonar. Meus sentimentos.

O semblante de Jota alterou-se com vagar, do meio sorriso de dentes cerrados para uma fisionomia fechada, quase de surpresa. Lançou um olhar severo para Merci, desvencilhou-se da boia que ainda envolvia seu corpo e perguntou:

— Por que não me disse logo?

Merci preferiu não responder.

— Quando foi?

— Hoje. Talvez ontem, Marta não soube dizer. Ligaram há pouco do asilo.

Jota voltou para o hotel. Foi de helicóptero para a pequena cidade onde a mãe passara toda a vida. A aeronave pousou num descampado próximo do cemitério em que o corpo era velado. Tomaram o automóvel que já os esperava e rumaram para o velório.

— Vamos lá, Paraíba — disse Jota ao descer do veículo, ajeitando seus óculos escuros e alisando os cabelos. Merci fez o mesmo com os próprios óculos, deu batidas no terno, puxou-o para baixo a esticá-lo, ajeitou a gravata de listras verdes e pretas e seguiu o chefe.

O modesto edifício compunha-se de um amplo salão de entrada, uma pequena cozinha, dois banheiros, e se dividia em três câmaras desprovidas de janelas. Duas delas estavam vazias. Misturavam-se no ar aromas de café e chá de capim-limão. Jota caminhou até onde era velado o corpo da mãe. 

Merci e os outros dois seguranças mantiveram-se em seu entorno, o que despertava curiosidades e burburinhos entre os presentes. Poucas eram as pessoas no local. A falecida era bem avançada em anos, beirava o centenário; havia décadas que residia num asilo, onde o filho a visitara duas ou três vezes.

Perpedina, irmã caçula da defunta, observou o sobrinho caminhar com dificuldade, as pernas abertas como um montador de animais, o abdômen imenso, a cara amarrada que há vários anos acostumara-se a só ver pelo noticiário da TV e redes sociais. Acompanhou-o com o olhar desde que ele cruzou o portal de entrada até se posicionar ao lado do esquife, próximo da cabeça da genitora. Jota não chorou. A tia reparou quando ele, decerto em gesto de reverência, como se tirasse um chapéu da cabeça, retirou os óculos de sol e os segurou às costas. Notou quando ele fixou seus olhos no cadáver da mãe, sem que o tocasse. Nenhuma lágrima deixou escapar, nenhum fio de sangue avermelhou sua esclera. O cheiro das velas a queimar havia sobreposto os de café e capim-limão da entrada. 

Assim permaneceu Jota por cerca de meia hora, até que um homem alto, de meia idade, esguio e vesgo, metido num surrado terno preto de microfibra, a camisa branca amarelecida sobre a qual jazia uma gravata vermelha descorada pelo uso, pediu licença para colocar a tampa sobre o caixão. 

A irmã solicitou que antes pudesse fazer uma oração e assim lhe foi permitido. Ainda incomodada com a ausência de reação do sobrinho, Perpedina puxou três ave-marias e um pai-nosso. Notou que Jota não acompanhou a reza e não moveu um único músculo da face. 

— E levai as almas todas para o céu. Em nome do Pai, do Filho… — rezou Perpedina, acompanhada por quase ninguém. 

Terminada a encomendação do corpo feita de improviso, que mal durou dez minutos, o homem vesgo da funerária reaproximou-se e girou com firmeza um a um os parafusos dourados da urna mortuária. Certificou-se de que o serviço fora executado com perfeição, de modo a garantir a segurança necessária, recolheu as coroas de flores, uma delas ofertada pela própria agência funerária, a outra providenciada pela diligente Marta. Caminhou em direção à saída do prédio, diante do qual estava parado o veículo fúnebre. Abriu-lhe a porta traseira e deu sinal aos presentes de que já poderiam carregar o ataúde até ali. 

Embora fossem necessários seis carregadores, apenas cinco homens se apresentaram. Três eram Merci e seus colegas da segurança; os demais, um sobrinho mais velho do que Jota, com ar cansado, a quem o primo cumprimentara a distância, apenas por troca de olhares, e Pérez, um estrangeiro bastante idoso que residia no mesmo asilo da falecida. Viera a pé, sozinho, pois o asilo ficava a menos de dez quadras dali. Costumava dizer que o albergue onde vivia era um passo anterior ao cemitério. Não poderia faltar ao adeus derradeiro à amiga. 

Todos a postos, faltava um sexto braço forte e os olhares se voltaram para Jota, que se manteve impassível. Não havia outro homem no interior da câmara-ardente. Só quando tia Perpedina, expondo as dificuldades da idade avançada, se apresentou para carregar o caixão foi que ele, num ato semelhante ao de generosidade, sussurrou-lhe:

— Pode deixar, tia. Eu levo.

Caminharam uns poucos metros até o veículo, dentro do qual depositaram o caixão. O agente funerário fechou a porta traseira e conduziu lentamente o automóvel, acompanhado pelos presentes, que o seguiam a pé. 

O portão de entrada do cemitério ficava a uns cem metros do espaço destinado ao velório. Ao longo do trajeto, Jota perguntou ao segurança:

— Paraíba, que dia é hoje?

— Sexta-feira — respondeu Merci. 

— ‘Tô perguntando número, Paraíba. Que é sexta-feira eu sei. Sextou! — disse, contendo um riso inoportuno.

Merci respondeu que era 22.

— Olhe a placa do carro. Termina com 22. É um sinal.

O segurança não entendeu, tampouco perguntou a que sinal o chefe se referia. 

O veículo adentrou o cemitério, seguindo o tempo todo em velocidade que pudesse ser acompanhado pelos poucos que o seguiam, e parou a dez metros da sepultura.

O caixão foi baixado pelos funcionários do cemitério. Retiradas as cordas, eles cobriram a cova com placas de concreto, que vedaram com argamassa já preparada. Ninguém lançou flores sobre o ataúde. Em seguida, passaram a assentar alguns tijolos até vedar completamente o sepulcro. 

O agente funerário depositou as duas coroas sobre o jazigo. Seu olho direito insistia em olhar para o chão. Cumprimentou os que ali permaneciam e partiu. 

Só Perpedina chorava, com discrição. Jota ficou até que o último tijolo fosse assentado, sem dizer palavra. A tia o convidou para tomar um café em casa, mas ele recusou. Alegou falta de tempo, compromissos inadiáveis, sem contar que o café lhe provocava azia, do que resultava terrivel dor no estômago. Não se lembrou de perguntar à tia como tem passado. Ela o abraçou e se despediram.

Jota e os seguranças iniciaram o caminho de regresso. Os rapazes se distraíam lendo os epitáfios, maravilhados com a antiguidade de muitos dos jazigos. Algumas lápides registravam a chegada de imigrantes alemães e italianos à cidade no final do século XIX. Outras exibiam homenagens de filhos aos pais, de esposas aos maridos. Estátuas de anjo sobrepunham-se a sepulturas de caprichada construção em que se liam as datas de nascimento e morte de crianças, a maioria em tenra idade, ao lado dos nomes. Pérez vinha atrás, solitário em seu difícil caminhar.

— Você viu o número da sepultura, Paraíba? — indagou Jota, referindo-se ao sepulcro da mãe.

— Não, senhor.

— 22. Mais um sinal. 

Merci, de novo, nada disse. Não conhecera a mãe de Jota, mas trazia os olhos vermelhos e uma lágrima triste escorria-lhe pelas faces suadas, coradas pelo sol que se exibia pleno. Pensava na velha, na gelidez de seu rosto inerte, extinto; olhava para Pérez, cada vez mais distante, desaparecendo no declive, e refletia sobre o custo de uma amizade.

O automóvel os esperava à porta do cemitério. Jota sentou-se no banco ao lado do motorista e ordenou:

— Toca para uma casa lotérica.

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06/11/2024

Cainã, o Telecobrador

 


Faltavam segundos para as sete da noite quando Cainã viu surgir na tela do computador mais uma ligação a ser feita. Seria a última do dia, pois seu turno chegava ao fim. Estava ansioso por ir embora e odiou a inserção desse novo número de telefone que lhe fez a pessoa sem rosto que lhe supervisiona o trabalho, passa-lhe ordens e lhe dá as broncas por metas não atingidas. 

Enquanto tocava e ele, dedos cruzados, torcia para que o destinatário não o atendesse, pôs-se a reparar nos colegas. Todos expunham na fisionomia, nos gestos, na pressa, o cansaço de mais um dia de dissabores insólitos.

Odiou mais quando do outro lado alguém o atendeu.

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