25/12/2025

Os pés de chinelo

Conheci meu mundo pisando em chinelos. Eram o meu chão, meu porto seguro ambulante. Sobre eles, explorava a casa, o quintal, as ruas da vizinhança, até boa parte da cidade. Com eles, eu girava a enorme bola planetária enquanto me esforçava para subir a ladeira íngreme da rua Padre Haroldo, perto de casa.

Para mais longe, nem sempre eram suficientes. A ida ao centro da pequena Capivari já me exigia um calçado mais reforçado. Um par de calçados, deixe-se claro. Vivemos tempos em que é necessário lembrar que temos dois pés e que eu costumo usar os dois, desde sempre, o esquerdo e, pasmem!, também o direito.

Para ir ao centro ou mais longe, as havaianas eram substituídas pela conga, um tênis de tecido e solado de borracha branco. Minha conga era toda branca, mas logo surgiram variadas cores. A mais comum era a azul, a mesma da calça rancheira, precursora das atuais jeans e seu inconfundível indigo blue

Algo na minha memória me traz a imagem de um calçado em que a sola era de um material semelhante à corda, decerto sisal, mas a certeza não me é boa companheira. Talvez fosse alguma imitação, por ordinário mais barata que as originais. Talvez, ao contrário, os chinelos de meu uso já fossem uma evolução de calçados primitivos.

Chamávamo-las de pargatas, corruptela do nome do fabricante, Alpargatas, o mesmo das havaianas de hoje, palavra que é  uma variação do gênero alpercata, de origem árabe que, segundo o dicionário Priberam, significa calçado em que a sola, de corda ou de borracha, se ajusta ao pé por meio de tiras de couro ou de pano. Bingo! Parece que eu estava certo. 

Os chinelos havaianas e a conga eram produtos baratos, coisa de pobre. Vem dos primeiros a expressão pé de chinelo, que desde então passou a designar a pessoa desprovida de recursos, o pobretão, como o menino de 1970, este jovem senhor que ora vos escreve, e assim foi até se transformar no moço de 1980.

Bom, calço chinelos até hoje, e ainda da marca havaianas, que passaram a ter qualidade de exportação e a serem chamados de sandálias, razão, suponho, pela qual os preços explodiram. Já faz tempo que um pé de chinelo deixou de ser o pé-rapado dos anos de chumbo.

Os chinelos tinham utilidades que iam além de proteger os pés das pedras do caminho. Têm até hoje. As baratas que o digam. Também as crianças, vítimas de mães zelosas nem sempre bem humoradas. 

Uma superstição da infância era não deixar as havaianas com a sola voltada para o alto. Não me esqueço de Susso, um vizinho pouco mais novo, me advertir aos gritos, sinceramente preocupado: "não deixe o chinelo assim, senão vai encontrar sua mãe morta atrás da porta!" Ainda hoje, mesmo que minha saudosa mãezinha já não mais se encontre entre nós viventes, zelo para não deixar os chinelos de ponta-cabeça. Temo que no dia de seu último suspiro eu os tenha esquecido na posição fatídica e essa sensação de culpa me consome.

A propaganda, fiel à razão de sua existência, já então funcionava para induzir o consumidor a se desviar da pirataria. O humorista Chico Anysio, ícone da TV naqueles antanhos, vivenciava em diversas peças publicitárias o brasileiro comum, o trabalhador, o torcedor, o malandro, o desiludido com a política. O apelo era sempre para jogar fora as imitações e comprar as legítimas havaianas. Invariavelmente, o personagem por ele encarnado terminava dizendo que as legítimas "não deformam, não soltam as tiras e não têm cheiro"



Uma das peças terminava com a mensagem de que o produto agora era também fabricado no Nordeste — fico pensando nos sentimentos não bons que essa revelação hoje causaria numa certa gente preconceituosa que habita partes do Sul e do Sudeste do Brasil.

As havaianas acabam de lançar a mais genial das peças publicitárias de todos os tempos. Retoma, na verdade, a linha adotada em 2014, em que o Chico Anysio da vez era o boleiro Romário, que vivia a si mesmo adquirindo um par de sandálias e pedindo à vendedora que embrulhasse cada pé em uma embalagem própria. Terminava com ele em meio a torcedores, com as pernas esticadas, a esquerda sobreposta à direita, e um dos figurantes perguntando-lhe "cadê o pé esquerdo das suas havaianas?" "Está com quem merece", terminava dizendo o craque brasileiro, campeão mundial. A cena fechava com uma referência à Argentina e seu craque Diego Maradona.

Já havia sido uma grande sacada essa peça de 2014. A referência à política era indisfarçável. O Brasil vinha das jornadas de junho, do ano anterior, que determinaram uma queda acentuada, de um dia para o outro, nos índices de popularidade da presidenta Dilma Rousseff, do PT,  e remetia às eleições que viriam a acontecer naquele mesmo ano, em que a petista penaria para ser reeleita por uma diferença percentualmente ínfima e preocupante. No mesmo pleito, o Rio de Janeiro elegeria senador, para seu primeiro mandato, ninguém menos do que o próprio Romário. Dilma é de esquerda, as jornadas de junho foram apropriadas pela extrema-direita e Romário até hoje está no PL, de BolsoNero e de direita.

À época, ninguém bufou, ninguém falou em boicote ao produto, nem mesmo houve qualquer questionamento à evidente promoção do então pré-candidato Romário, de fato eleito no mesmo ano. Patrocinada por uma empresa privada em rede nacional como se se tratasse de uma publicidade ordinária, bem poderia ter sido caracterizada como propaganda política antecipada e abuso do poder econômico. No mínimo, caixa dois.

Os tempos são outros, a economia hoje bomba, vivemos ainda o alívio de nos termos livrado da extrema-direita em 2022 e seu necrogoverno de pendores nazifascistas. Nesse contexto, eis que surge a melhor das sacadas. No finzinho de 2025, o publicitário trocou Anysio, já falecido, e Romário, senador reeleito, por ninguém menos do que a atriz Fernanda Torres, identificada com causas da esquerda, que há pouco foi indicada para o Oscar de melhor atriz. A obra, de que participou como protagonista, conquistou a estatueta de melhor filme estrangeiro, o primeiro Oscar do Brasil. 

Em tom de evidente provocação, suavizada logo na sequência das falas, Fernanda começa dizendo: "desculpa, mas eu não quero que você comece 2026 com o pé direito"

De pronto e na sequência, a suavização, o afastamento da provocação politica — como se não bastasse  o prévio pedido de desculpas: "não é nada contra a sorte, mas vamos combinar… sorte não depende de você. Depende de sorte!"

A partir daí a propaganda, como a de 2014, que terminava com uma generosa referência à esquerda (Maradona sempre foi, como Fernandinha, identificado com o lado esquerdo do espectro político, amigo de Lula e de Fidel Castro), parte para uma mensagem de inclusão e acolhimento: "o que eu desejo é que você comece o ano novo com os dois pés!"

Nota bene: com os dois pés!

O que parecia um repúdio à direita, torna-se logo nas primeiras frases um apelo à união, à pacificação do país, tão desejada por todos (ou não?). São tempos de Natal, a mensagem diz do ano que está para começar, e Natal é reconciliação, e um novo ano sugere fraternidade. O dia 1° de janeiro, não por acaso, é o dia da confraternização universal ("frater", do latim, significa "irmão" e "confraternização" tem a mesma raiz de "fraternidade").

E por aí segue a atriz citando expressões do cotidiano brasileiro que apontam para atitudes e escolhas pessoais: "os dois pés na porta, os dois pés na estrada, os dois pés na jaca, os dois pés onde você quiser".

Observe a ênfase em os dois pés.

E termina: "vai com tudo, de corpo e alma, da cabeça… aos pés!"

Genial ou não?

Só que nem todo mundo gostou. 

Não tardou e os pés-rapados da cognição logo se insurgiram, dizendo que era uma propaganda comunista, que os chinelos havaianas eram um lixo, daí para o esgoto… 

Eu tomei conhecimento da peça não por ela mesma, vendo-a na TV, mas já pela repercussão nas hostes da extrema-direita. O primeiro vídeo que vi mostrava um sujeito jogando no lixo um par de havaianas. Depois dele, vi vários outros vídeos, estes de gente da esquerda reproduzindo essa estultice extremista, criticando, por óbvio, a atitude da subcelebridade protagonista. Vários! Até agora não vi o vídeo original, a propaganda propriamente dita, ela em si mesma e somente ela.

E depois desse primeiro indigente da inteligência vieram outros, sobretudo os políticos da quinta série do Congresso Nacional, tipos exóticos como Bia Kicis, Pazuelo, Nicole Guerreira, até o sapientíssimo Eduardo Bolsonaro, o sujeito que do nada, passando-se por autoexilado, provocou a própria exclusão do país e do parlamento ao partir para os Estados Unidos para cumprir o papel que o pai lhe havia reservado quando presidente, mas que não chegou a concretizar, graças à coragem que o caracteriza, de embaixador do Brasil junto ao maior país da América do Norte. 

O até então líder da bancada trumpista na Câmara Federal brasileira, hoje membro da bancada dos foragidos e cassados, realmente se empenhou com toda sua inteligência e aptidão para tal encargo, tanto que conseguiu obter do governo estadunidense as mais gravosas taxações a produtos exportados pelo Brasil, pôs em polvorosa os nossos produtores e o mercado dos Estados Unidos e, de quebra, conseguiu a aplicação da lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes e outros ministros do STF. 

Tanto poder concentrado nas mãos de um só sujeito, convenhamos, tem alto potencial explosivo. Sua competência foi tanta, e tão sólida se demonstrou sua influência junto a autoridades do governo dos EUA que hoje, mal passados seis meses dos primeiros anúncios das sanções, Lula dança valsa com Donald Trump com invejável desenvoltura, enquanto o próprio Bananaro corre risco de ser deportado para seu país de origem ou se tornar um apátrida.

Uma sequência histórica de trapalhadas só poderia mesmo culminar com mais esse comportamento ridículo dos extremistas de direita em relação a uma singela propaganda de TV que, sim, começa com provocação politica, mas parte logo para uma mensagem de inclusão e acolhimento. E disso, acolhimento e inclusão, a extrema-direita faz questão de não querer nem saber.

Minha amada mãezinha diria que faltaram chineladas nas nádegas desses meninos mimados transformados em adultos mal resolvidos. Sim, acompanho o voto da nobre relatora, de saudosa memória, e digo mais: essa gente estúpida não merece mesmo usar os chinelos havaianas. Não, ao menos, enquanto não calçarem as sandálias da humildade, enquanto não se reconhecerem como os pés-rapados da politica nacional que de fato são.

Que se lhes deem umas boas e merecidas havaianadas na bunda! Meramente corretivas, faz favor, porque na esquerda não curtimos violência.

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Falo sobre o livro nesta crônica: “Entrevista sobre o meu livro”.

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20/12/2025

As náuseas e uma flor


Crônica
Luís Antônio Albiero
dez 20, 2025

Adentrou a cela preso a umas poucas roupas. Chegou de uniforme laranja por um corredor acinzentado.

Na solidão da cela que lhe foi destinada, espreitam-no o ar condicionado, o frigobar, a cama confortável, a mesinha de cabeceira. Nada, porém, nenhuma dessas mercadorias, nem a excepcional privacidade, impede que a melancolia tome conta de seu espírito intranquilo.

Os enjoos de sempre se intensificam e ele sente falta de armas com as quais pudesse extravasar sua revolta. Lança os olhos sujos no relógio de pulso e se dá conta de quão longe está o tempo da justiça, quase trinta anos pela frente.

A porta aberta do pequeno banheiro conjugado, ao lado da mesinha de comer, o faz lembrar que o tempo ainda é de fezes, e da dificuldade que tem para as expelir.

As alucinações que a espera lhe causou anteciparam a prisão definitiva. O tempo pobre funde-se à ausência de poesia, falta da qual ele sequer se ressente.

Em vão, ele tenta se explicar, mas as paredes são surdas. As palavras escondem cifras e códigos. Pelo quadrado da janela, o sol consola-o das doenças, mas não o renova. Tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Súbito, o desejo de vomitar esse tédio sobre a cela, sobre a cidade, sobre todo o país. Setenta anos e todos os problemas mal resolvidos, agora projetados por incertos mais de vinte e sete por vir. Nenhuma carta escrita, nenhuma palavra trocada e, no entanto, seu silêncio pauta os jornais que soletram o mundo, embora saibam que ele o perde.

Crimes da terra, como perdoá-los? Tomou parte em vários, muitos nem se deu ao trabalho de esconder. Alguns, ao contrário, achou belos, fez questão de os tornar públicos. Crimes suaves, que o ajudavam a viver, ração diária de erro distribuída em casa, o pão com leite condensado do mal de cada dia.

Deseja pôr fogo em tudo, como Nero, inclusive em si mesmo. Ao rapaz de 1986 chamavam subversivo, explosivo, porém seu ódio é o melhor de si. Ainda é o que o salva, que lhe traz mínimas e incertas esperanças.

Uma flor que nascesse! Quanta falta faz uma flor, ainda que desbotada. Uma flor que iludisse o peso da vigilância, rompesse a concretude da cela, compensasse a paralisia dos negócios.



O preso se convence de que se uma flor brotasse ali, ainda que sua cor não se percebesse, suas pétalas não se abrissem, cujo nome não estivesse nos livros, mas que fosse realmente uma flor, teria ao menos companhia para conversar.

Ele se senta no chão da cela na capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passa a mão nessa forma insegura, imaginada. Do lado de fora, pela estreita janela, vê a ausência de montanhas ao longe, a planície a se espraiar, apenas as nuvens maciças que se avolumam, pequenos pontos brancos que se movem lentos e ganham contornos de galinhas em pânico.

O preso clama em silêncio, ao menos uma flor com quem possa conversar! Ainda que fosse feia, seria uma flor. Furaria o concreto, o tédio, o nojo e o ódio.

(Crônica inspirada nos poemas “A flor e a náusea”, do livro “A rosa do povo”, de Carlos Drummond de Andrade, e “Não tem nem uma flor para ele conversar”, de Flávio Bolsonaro)

17/12/2025

Raiou um santo dia

Crônica
Luís Antônio Albiero
dez 17, 2025

Os dias raiam em sequência infinita, desde sempre e para todo o sempre.

Num desses, eis que veio à luz mais um ser humano. Nasceu sem nome e, como esperado, a mania histórica das pessoas que se pretendem civilizadas pôs em polvorosa os pais, que até o momento de nascer não haviam dispensado um único segundo para pensar e decidir como o chamariam.

Objetará, com razão, o astuto leitor que se trata de preocupação precedente à civilização humana. Não tenho como aderir à teoria, mas admitamo-la, para fluxo ordinário da narrativa.

O pai olhou para o menino, viu nele algo inexplicável e sugeriu, não sem um certo entusiasmo:

— Óchito!

— Muito chique — objetou a mãe, sem pestanejar. — Nóis é pobre — lembrou, a título de dar uma explicação.

O pai pensou mais um segundo, endereçou novo olhar ao rebento e fez uma segunda proposta:

— Raiam.

A mãe fez uma cara assim assim, torceu o nariz, mordiscou os próprios lábios, coçou o interior da orelha direita.

— Gostei — concluiu.

— Vi num filme americano — revelou o pai, sorrindo de satisfação.

— Não importa. É chique também, mas lembra raio de sol, que é de todo mundo. Meu menino é iluminado.

Ilustração gerada pelo Substack
Ilustração gerada pelo Substack

— Raiam Dias, então — pensou alto o pai.

— Não esqueceu nada não?

— Esqueci do quê?

— De mim. Que o menino tem mãe…

— Uai, claro que não esqueci. Por que ‘cê ‘tá me dizendo isso?

— Santos, hômi! Meu sobrenome, ara essa. Quero que o menino tenha meu sobrenome também. Não é justo?

— Tá bom — consentiu o marido. — Então vai ser Raiam Santos Dias.

E desde então os dias, uns santos, outros nem tanto, continuaram raiando em sua sequência sem fim.

14/12/2025

Crime de Dosimetria

CONTO

Luís Antônio Albiero
dez 14, 2025

A barulheira provocada pelo abrir e bater de portas da viatura que acabara de estacionar diante do fórum assustou um casal de maritacas que dormitava debaixo do beiral do prédio. Elas saíram em revoada, grasnando forte, como se reclamassem. Fazia um dia bonito, de muito sol.

Blindado, um jovem entroncado de pouco mais de trinta anos, entrou na sala de audiências escoltado por um policial militar e uma agente carcerária. 

Puseram-no sentado no banco destinado aos réus, defronte a escrivaninha ocupada pela bela escrevente, loura de olhos verdes, e seu computador; retiraram-lhe as algemas e se afastaram, mantendo-se ambos em pé, próximos da porta de entrada.

O advogado já estava em seu posto, sentado à mesa baixa, e palestrava amistosamente com o juiz, cuja mesa, disposta em perpendicular à outra, ficava sobre um tablado, de modo que o colocava em posição de superioridade em relação aos demais. Sobre ele, na parede, havia uma cruz.

O promotor, um homem esguio e muito lhano, de meia idade e bigodinho à mexicana, foi o último a chegar, quando a escrevente já havia registrado os dados pessoais do acusado.

A primeira pergunta do juiz deveria ter sido se Blindado sabia do que estava sendo acusado e se já havia sido preso ou processado anteriormente, mas o doutor Alessandro Karanão Rodrigues, de voz anasalada, o que lhe conferia certa infantilidade, pele muito alva e traços duros, não resistiu e quis logo saber a razão do curioso apelido.

O réu respondeu que havia recebido o codinome na ocasião em que fora preso pela primeira vez, anos atrás, quando teve – adiantou-se a dizer – participação mínima num assalto a banco.

– Participação mínima… – repetiu o juiz, em tom de deboche.

O acusado seguiu explicando que apenas ficara do lado de fora do banco, vigiando eventual chegada da polícia, e que, no cárcere, orientava os demais parceiros de cela sobre as penas de cada crime: roubo, furto, homicídio; qualificadoras, agravantes, atenuantes, progressão de pena. 

Ilustração: Freepik e Substack

— O senhor sabe qual a menor pena prevista no código penal? — perguntou Blindado ao presidente da audiência, que preferiu ficar em silêncio e apenas ouvir o que o réu tinha a lhe dizer.

— O senhor deve saber que é o crime de rixa, detenção de quinze dias a dois meses. E os de maior pena são os de morte, o homicídio qualificado, o feminicídio, tão em moda atualmente, que preveem reclusão de 20 a 30 anos. Digo sempre que matar nunca é bom, porque leva a penas mais pesadas. Quer roubar? Roube, mas não mate. Estupra, mas não mata — lembra dessa frase?

— Quem não se lembra?— comentou o juiz.

– Eu me especializei nas penas do Código Penal. Costumo fazer combinações para cometer o crime que custem o menor tempo de cadeia para o meu cliente, doutor.

O juiz juntou as mãos, apoiou os cotovelos sobre a mesa e ficou a fitar Blindado, a ponto de o constranger. E, de fato, ele se remexeu no banco dos réus.

– Tá todo mundo se blindando, doutor. Eu me viro como posso.

– Pois é. E o senhor estava em liberdade condicional e não se preocupou, cometeu logo outro crime. Acho que o senhor falhou nessa tarefa de contabilizar as penas, ponderar as circunstâncias.

– Mas eu não sabia que as armas estavam no chão do banco de trás do carro, doutor! — justificou-se Blindado, já entrando no mérito da prisão em flagrante ocorrida no dia anterior.

– Ah, não sabia… Sei… Decerto as armas nem são suas…

– Não são mesmo, excelência. São do meu pai. Ele usa para espantar raposas e lagartos.

– Espantar lagartos… Estou sabendo…

– Verdade, doutor. As raposas devoram o galinheiro. Os lagartos acabam com a plantação de meu pai. Eu vim passear, visitar meus pais, que moram na roça. Eu fui criado na roça. Viemos eu e minha namorada, que trabalha no Ministério Público. Resolvemos dar uma volta no centro da cidade, com o carrinho do velho. Fui parado pelos policiais e… estou aqui.

–Ah, ‘tá. Sua namorada deve ser promotora de justiça, imagino.

O promotor se ajeitou na cadeira, esticando o corpo, redobrando a atenção.

– Não, doutor. É auxiliar, assistente. Acho que é analista.

– E ela com certeza o auxilia na hora de combinar as penas do próximo crime.

– Ah, não! Eu não misturo trabalho com assuntos do coração, excelência!

O magistrado deixou escapar uma risada. Todos o acompanharam, com discrição.

– O problema, doutor, é acompanhar a evolução dos tempos. Toda hora tem deputado que, para aparecer, para lacrar, gosta de alterar a lei para elevar as penas. Basta haver um caso retumbante, toma projeto de lei para agravar a pena, para tornar o crime hediondo, para diminuir os benefícios. Isso atrapalha meu negócio e, claro, acaba valorizando meus… honorários.

– Pelo menos reduz a criminalidade – interveio o promotor.

– Doutor! Doutor… O senhor acha mesmo que bandido, antes de cometer um crime, consulta o código penal, as leis, examina quais as penas menores, quais os crimes que mais valem a pena? Até onde sei, sou o único que faz isso, e presto consultoria para meia dúzia de amigos, apenas isso.

– Mas se a moda pega… Vou acionar a cúpula do Ministério Público para fazer lóbi junto ao Congresso Nacional para criar um novo tipo penal, um novo crime.

– Qual?!? – perguntaram em uníssono o réu e o magistrado.

– Crime de dosimetria. Onde já se viu ficar calculando previamente a dosagem da pena para decidir qual crime cometer!? Isso é um crime! Quero dizer, deve passar a ser crime.

— Doutor, precisa mesmo criar. Chegamos a um tempo em que os deputados agora resolveram fazer o contrário do que sempre fizeram e vão perguntar ao criminoso, na cadeia, o que ele acha, se para ele estará bom reduzir a pena dos crimes que ele cometeu, e pelos quais já foi condenado, para tais e tais penas! Eu, que sou do ramo, acho um absurdo!

– Nisso, concordamos todos. O senhor já pensou em se candidatar a algum cargo público? — indagou o magistrado ao réu.

– Sim, doutor – respondeu Blindado. – Deputado federal, talvez até senador. No Congresso é que está a nata da blindagem. Assim que cumprir minha pena, quem sabe, né?

Encerrado o interrogatório, o promotor se retirou. Os agentes que aguardavam na porta aproximaram-se do acusado para repor-lhe as algemas e levá-lo de volta ao cárcere. O réu, ao assinar o termo, notou que o sobrenome do juiz era Rodrigues.

– Doutor, o senhor sabe que tem muitos Rodrigues na cadeia?

O juiz, que assinava a ata da audiência, elevou o olhar, cravando-o nos olhos do abusado, e comentou:

– É, mas nenhum é parente meu!

— Com certeza, excelência.

Ao se aproximar da porta, o juiz o chamou. Blindado girou o corpo e olhou para o magistrado, que lhe recomendou:

– Não use mais as armas para espantar lagartos, está bem? Da próxima vez, use-as para espantar maus pensamentos.

— Como assim? — quis saber o preso.

O juiz Karanäo juntou as mãos, dobrou os cotovelos e os manteve suspensos no ar. Esticou o enorme dedo indicador da mão direita e abriu o polegar, como se formasse uma arma. Encostou o dedo ereto, pressionando-o com firmeza contra o próprio pescoço, acima do pomo, e disparou um som com a boca:

– Pou!

As maritacas, que haviam retornado ao beiral durante a audiência, saíram em revoada novamente.

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29/11/2025

Os meliantes

 
CRÔNICA

No pátio destinado ao banho de sol, dois presidiários se encontram, o experiente A11 e o recém-chegado B22.

Cumprimentam-se como se fossem velhos conhecidos. A11 lamenta o tanto de tempo que está encarcerado e o tanto que ainda falta para sair.

— 'Cê 'tá aqui por quê? — quer saber o novato, com voz esmaecida.

— Meti fogo na mulher — responde A11, falando firme, grosso, macho. — Não aguentava mais ouvir aquela voz...

Dá um trago no cigarro, divide-o com o amigo.

— E você, mano? Foi pego no tráfico dos bagulho?

— Não, não foi por isso não. Foi pela mesma bronca que a sua.

— Ô, mano! Vai dizer que meteu fogo naquela gostosa?!? Nu’acredito! Pô, que desperdício!

— Foi isso não — adianta-se B22.

— Que que foi então? Diz aí, mano. Desenrola!

Com a voz esquálida, B22 diz:

— Meti fogo na minha tornozeleira.

E esclarece:

— Não aguentava mais ouvir aquela voz.

Publicação original: Substack

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Olá, como vai? Estimo que bem.

Como você já sabe, meu leitor, minha leitora, lancei recentemente meu primeiro livro de contos, “O Onomaturgo e Outras Histórias”. Espero que você já o tenha comprado, lido e, sobretudo, gostado.

Se não comprou, ainda há tempo. Veja ao final desta niusléter onde e como adquirir seu exemplar. Se preferir, pode adquiri-lo diretamente de mim. Sai mais barato (R$68,55, já incluídas as despesas postais) e o livro vai autografado. Ó que chique!

A vida não para na primeira vez, claro. Por isso, já venho preparando meu segundo livro, que por ora conta com nove contos, oito já publicados nesta minha “Casa Literária”. O nono estou publicando hoje, “Percepções”. Outros ainda virão, ao menos mais quatro.

Convido você para ler cada um dos onze contos. Para isso, basta clicar sobre o título, no sumário abaixo, e você será encaminhado à íntegra do conto, na plataforma Substack.

Peço que você os leia e, na página respectiva de cada um, deixe suas impressões. Como ainda nenhum deles foi impresso, eis que o futuro livro por ora não passa de mero projeto pessoal, há tempo de sobra para que suas opiniões e observações sejam por mim examinadas e, eventualmente, acolhidas, pelo que muito e desde já agradeço.

Até a próxima semana! Ou antes, em edição extraordinária.

LUÍS ANTÔNIO ALBIERO


Os contos


Cainã, o Telecobrador


Anela


Ceia de Natal


Solidariedade cosmética


O inabalável Jota


É tudo líquido


Petricor


A reinvenção da roda


Percepções


O descomunal umbigo do desembargador Filáucius


As ferramentas


Compre meu livro

Meu primeiro livro impresso, “O Onomaturgo e Outras Histórias”, está à venda no portal da editora “Rua do Sabão”, nas livrarias Martins Fontes, Livraria da Travessa, Livraria da Vila, Amazon, Estante Virtual, Quatro Cinco Um, Magazine Luíza, Rama Livros, Mercado Livre e também, enquanto houver em estoque, diretamente comigo (envie mensagem para meu endereço laalbiero@yahoo.com.br ).

Falo sobre o livro nesta crônica: “Entrevista sobre o meu livro”.

Casa Literária é uma publicação de Luís Antônio Albiero. Para receber boletins periódicos com as novidades e prestigiar a publicação, torne-se assinante. Basta preencher o formulário abaixo:

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