Lá chegando, apresentei meu comprovante de endereço e um documento de identificação e o sujeito da recepção fez meu cadastro. Ditei meu CPF em blocos de três dígitos e terminei com o "um" e o "três" finais dizendo "treze, confirma". E sublinhei: "que é o mais importante". O sujeito riu e eu já me senti em casa.
Faço isso já há tempos, sempre que os caixas de estabelecimentos comerciais me perguntam se quero a nota fiscal paulista. Nunca perco a oportunidade. Até um ano atrás, as reações eram de desconforto, irritação ou impassividade. De então para cá, porém, as expressões de contentamento estão cada vez mais intensas. Como dizia Ulysses Guimarães, repetindo um milhão de outros políticos e pensadores, a política é como nuvem, se transforma a cada instante.
Da recepção fui à sala de aplicação da vacina. Lá havia uma mesa grande com quatro ou cinco servidores sentados lado a lado, como mesários nos locais de votação em dias de eleição, assim dispostos para, mais uma vez, conferir documentos e, finalmente, preparar a injeção e o certificado. Vício é mesmo uma coisa invencível. Adivinhe se não perguntei "onde está a urna eletrônica". Claro. Mais risos.
Antes de a enfermeira espetar a agulha no braço, outra colega com cara de chefe da equipe fez a mim e ao outro candidato a jacaré - as pessoas eram atendidas duas a duas - uma breve palestra sobre a astrazêneca e suas possíveis reações, reforçando os cuidados.
Esclareceu que aquela vacina era produzida pela Fiocruz e eu fiquei preocupado com as coisas que a capitã Cloroquina falou na CPI sobre a tara fálica do pessoal do instituto carioca. Eu preferia que fosse do Butantã, até pela vantagem de me transformar em cobra, em vez de jacaré. Mas, estando em Jacareí, não tinha como. Pensei até se em Capivari, minha cidade de origem e onde resido com ânimo definitivo, eu não poderia me transformar em capivara, um animal, digamos, mais família. Ponderei que era tarde demais para certas exigências, sobretudo um capricho bairrista.
A primeira enfermeira mostrou o pequeno frasco com a dose de meio mililitro de um líquido transparente, a seringa, a agulha, e eu perguntei se eles não ministravam uma anestesia antes, pois detesto imaginar certas coisas enfiadas em meu corpo - inda mais sendo um produto da Fiocruz. Ela disse que a aplicação de um anestésico levaria tempo maior e seria mais dolorido. Aceitei calado e desviei os olhos. Detesto.
Mal senti a picada, mas confesso que me veio uma vontade de chorar. De emoção sincera. Contive o choro, porém, por conta do receio de acharem que fosse de medo ou dor, ou de parecer o menino que nos anos sessenta abria o berreiro ao tomar as injeções que me aplicavam as freiras do Círculo Operário de Rafard nas minhas primeiras crises de bronquite.
Fechei a camisa, levantei-me, disse com alguma timidez o infaltável "viva o SUS", cumprimentei a todos e saí. Ainda tomado pela mesma emoção, fiz a selfie exibindo o cartão de vacinação e postei, claro, no Facebook. Afinal, tradição é tradição, mesmo que recém-inaugurada.
Agora, sim. Maior e vacinado.
Maior, no caso, pelo tamanho. Difícil está sendo me adaptar à reação que a zelosa enfermeira-chefe esqueceu-se de mencionar. Vou lhes dizer, é complicado controlar o rabo. Já derrubei duas mesinhas e os vasos que estavam sobre elas, afora o notebook de um colega de trabalho, até agora o prejuízo mais vultoso. Mas vou me acostumar, tenho fé.
As garras que cresceram no lugar das unhas, já antes carentes de um corte profundo, até que são úteis. Serviram, por exemplo, para espantar dois engraçadinhos que vieram me cobrar uns trocos que lhes tomei emprestado dia desses. Um deles não volta mais. Engoli a seco. Prometi a mim mesmo que vou comprar desses molhos prontos e andar com eles no bolso por aí, balsâmico, italiano, tradicional. Barbecue, de preferência. Um jacaré nunca sabe a hora em que vai ter almoço para se servir.
A pele dura e enrugada também tem tido sua utilidade neste dia de muito frio, mas não quero passar a ser conhecido como um sujeito casca grossa. A boca é que me parece estar crescendo um tanto devagar. Até agora só deu para sentir o gostinho de ser como o cacique Raoni. Espero que o crescimento seja uniforme e os dentes não fiquem muito expostos. Prefiro o sorriso cínico do lagarto ao escárnio escancarado dos crocodilianos.
Planos para o futuro. 7 de setembro, adeus feriado prolongado em Capivari. Estarei a postos em Jacareí para a segunda dose. Independência, afinal! Ou morte. Quinze dias depois, agendar o cabeleireiro, que esta juba não combina com jacaré e eu não quero ser confundido com a personagem cabeluda do Sítio do Picapau Amarelo.
Ainda em setembro, pretendo ir lá para a região central do país. Não, não vou me mudar para o Pantanal, não. Prefiro continuar vivendo em meu habitat natural, entre capivaras, jacarés e a gente boa daqui de São José dos Campos, onde trabalho.
Eu me refiro a Brasília. Será um passeio gastronômico. Um bate-e-volta, apenas para degustar um prato para lá de especial: um perigoso "serial killer" (pronuncia-se "siri ao quilo", ou melhor, "siri ao quíler") que já matou mais de quinhentas mil pessoas, um sujeito gorduroso que anda rondando a capital federal e que se diz incomível. Quero ver se é mesmo.
Sei que sofrerei intoxicação alimentar, terei diarréia, mas certas reações são inevitáveis. Digo já de cátedra.
Você não perde por me esperar, genocida!
(Luís Antônio Albiero, em São José dos Campos, aos 15 de junho de 2021, no intervalo do almoço).
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