Conheci meu mundo pisando em chinelos. Eram o meu chão, meu porto seguro ambulante. Sobre eles, explorava a casa, o quintal, as ruas da vizinhança, até boa parte da cidade. Com eles, eu girava a enorme bola planetária enquanto me esforçava para subir a ladeira íngreme da rua Padre Haroldo, perto de casa.
Para mais longe, nem sempre eram suficientes. A ida ao centro da pequena Capivari já me exigia um calçado mais reforçado. Um par de calçados, deixe-se claro. Vivemos tempos em que é necessário lembrar que temos dois pés e que eu costumo usar os dois, desde sempre, o esquerdo e, pasmem!, também o direito.
Para ir ao centro ou mais longe, as havaianas eram substituídas pela conga, um tênis de tecido e solado de borracha branco. Minha conga era toda branca, mas logo surgiram variadas cores. A mais comum era a azul, a mesma da calça rancheira, precursora das atuais jeans e seu inconfundível indigo blue.
Algo na minha memória me traz a imagem de um calçado em que a sola era de um material semelhante à corda, decerto sisal, mas a certeza não me é boa companheira. Talvez fosse alguma imitação, por ordinário mais barata que as originais. Talvez, ao contrário, os chinelos de meu uso já fossem uma evolução de calçados primitivos.
Chamávamo-las de pargatas, corruptela do nome do fabricante, Alpargatas, o mesmo das havaianas de hoje, palavra que é uma variação do gênero alpercata, de origem árabe que, segundo o dicionário Priberam, significa calçado em que a sola, de corda ou de borracha, se ajusta ao pé por meio de tiras de couro ou de pano. Bingo! Parece que eu estava certo.
Os chinelos havaianas e a conga eram produtos baratos, coisa de pobre. Vem dos primeiros a expressão pé de chinelo, que desde então passou a designar a pessoa desprovida de recursos, o pobretão, como o menino de 1970, este jovem senhor que ora vos escreve, e assim foi até se transformar no moço de 1980.
Bom, calço chinelos até hoje, e ainda da marca havaianas, que passaram a ter qualidade de exportação e a serem chamados de sandálias, razão, suponho, pela qual os preços explodiram. Já faz tempo que um pé de chinelo deixou de ser o pé-rapado dos anos de chumbo.
Os chinelos tinham utilidades que iam além de proteger os pés das pedras do caminho. Têm até hoje. As baratas que o digam. Também as crianças, vítimas de mães zelosas nem sempre bem humoradas.
Uma superstição da infância era não deixar as havaianas com a sola voltada para o alto. Não me esqueço de Susso, um vizinho pouco mais novo, me advertir aos gritos, sinceramente preocupado: "não deixe o chinelo assim, senão vai encontrar sua mãe morta atrás da porta!" Ainda hoje, mesmo que minha saudosa mãezinha já não mais se encontre entre nós viventes, zelo para não deixar os chinelos de ponta-cabeça. Temo que no dia de seu último suspiro eu os tenha esquecido na posição fatídica e essa sensação de culpa me consome.
A propaganda, fiel à razão de sua existência, já então funcionava para induzir o consumidor a se desviar da pirataria. O humorista Chico Anysio, ícone da TV naqueles antanhos, vivenciava em diversas peças publicitárias o brasileiro comum, o trabalhador, o torcedor, o malandro, o desiludido com a política. O apelo era sempre para jogar fora as imitações e comprar as legítimas havaianas. Invariavelmente, o personagem por ele encarnado terminava dizendo que as legítimas "não deformam, não soltam as tiras e não têm cheiro".
Uma das peças terminava com a mensagem de que o produto agora era também fabricado no Nordeste — fico pensando nos sentimentos não bons que essa revelação hoje causaria numa certa gente preconceituosa que habita partes do Sul e do Sudeste do Brasil.
As havaianas acabam de lançar a mais genial das peças publicitárias de todos os tempos. Retoma, na verdade, a linha adotada em 2014, em que o Chico Anysio da vez era o boleiro Romário, que vivia a si mesmo adquirindo um par de sandálias e pedindo à vendedora que embrulhasse cada pé em uma embalagem própria. Terminava com ele em meio a torcedores, com as pernas esticadas, a esquerda sobreposta à direita, e um dos figurantes perguntando-lhe "cadê o pé esquerdo das suas havaianas?" "Está com quem merece", terminava dizendo o craque brasileiro, campeão mundial. A cena fechava com uma referência à Argentina e seu craque Diego Maradona.
Já havia sido uma grande sacada essa peça de 2014. A referência à política era indisfarçável. O Brasil vinha das jornadas de junho, do ano anterior, que determinaram uma queda acentuada, de um dia para o outro, nos índices de popularidade da presidenta Dilma Rousseff, do PT, e remetia às eleições que viriam a acontecer naquele mesmo ano, em que a petista penaria para ser reeleita por uma diferença percentualmente ínfima e preocupante. No mesmo pleito, o Rio de Janeiro elegeria senador, para seu primeiro mandato, ninguém menos do que o próprio Romário. Dilma é de esquerda, as jornadas de junho foram apropriadas pela extrema-direita e Romário até hoje está no PL, de BolsoNero e de direita.
À época, ninguém bufou, ninguém falou em boicote ao produto, nem mesmo houve qualquer questionamento à evidente promoção do então pré-candidato Romário, de fato eleito no mesmo ano. Patrocinada por uma empresa privada em rede nacional como se se tratasse de uma publicidade ordinária, bem poderia ter sido caracterizada como propaganda política antecipada e abuso do poder econômico. No mínimo, caixa dois.
Os tempos são outros, a economia hoje bomba, vivemos ainda o alívio de nos termos livrado da extrema-direita em 2022 e seu necrogoverno de pendores nazifascistas. Nesse contexto, eis que surge a melhor das sacadas. No finzinho de 2025, o publicitário trocou Anysio, já falecido, e Romário, senador reeleito, por ninguém menos do que a atriz Fernanda Torres, identificada com causas da esquerda, que há pouco foi indicada para o Oscar de melhor atriz. A obra, de que participou como protagonista, conquistou a estatueta de melhor filme estrangeiro, o primeiro Oscar do Brasil.
Em tom de evidente provocação, suavizada logo na sequência das falas, Fernanda começa dizendo: "desculpa, mas eu não quero que você comece 2026 com o pé direito".
De pronto e na sequência, a suavização, o afastamento da provocação politica — como se não bastasse o prévio pedido de desculpas: "não é nada contra a sorte, mas vamos combinar… sorte não depende de você. Depende de sorte!"
A partir daí a propaganda, como a de 2014, que terminava com uma generosa referência à esquerda (Maradona sempre foi, como Fernandinha, identificado com o lado esquerdo do espectro político, amigo de Lula e de Fidel Castro), parte para uma mensagem de inclusão e acolhimento: "o que eu desejo é que você comece o ano novo com os dois pés!"
Nota bene: com os dois pés!
O que parecia um repúdio à direita, torna-se logo nas primeiras frases um apelo à união, à pacificação do país, tão desejada por todos (ou não?). São tempos de Natal, a mensagem diz do ano que está para começar, e Natal é reconciliação, e um novo ano sugere fraternidade. O dia 1° de janeiro, não por acaso, é o dia da confraternização universal ("frater", do latim, significa "irmão" e "confraternização" tem a mesma raiz de "fraternidade").
E por aí segue a atriz citando expressões do cotidiano brasileiro que apontam para atitudes e escolhas pessoais: "os dois pés na porta, os dois pés na estrada, os dois pés na jaca, os dois pés onde você quiser".
Observe a ênfase em os dois pés.
E termina: "vai com tudo, de corpo e alma, da cabeça… aos pés!"
Genial ou não?
Só que nem todo mundo gostou.
Não tardou e os pés-rapados da cognição logo se insurgiram, dizendo que era uma propaganda comunista, que os chinelos havaianas eram um lixo, daí para o esgoto…
Eu tomei conhecimento da peça não por ela mesma, vendo-a na TV, mas já pela repercussão nas hostes da extrema-direita. O primeiro vídeo que vi mostrava um sujeito jogando no lixo um par de havaianas. Depois dele, vi vários outros vídeos, estes de gente da esquerda reproduzindo essa estultice extremista, criticando, por óbvio, a atitude da subcelebridade protagonista. Vários! Até agora não vi o vídeo original, a propaganda propriamente dita, ela em si mesma e somente ela.
E depois desse primeiro indigente da inteligência vieram outros, sobretudo os políticos da quinta série do Congresso Nacional, tipos exóticos como Bia Kicis, Pazuelo, Nicole Guerreira, até o sapientíssimo Eduardo Bolsonaro, o sujeito que do nada, passando-se por autoexilado, provocou a própria exclusão do país e do parlamento ao partir para os Estados Unidos para cumprir o papel que o pai lhe havia reservado quando presidente, mas que não chegou a concretizar, graças à coragem que o caracteriza, de embaixador do Brasil junto ao maior país da América do Norte.
O até então líder da bancada trumpista na Câmara Federal brasileira, hoje membro da bancada dos foragidos e cassados, realmente se empenhou com toda sua inteligência e aptidão para tal encargo, tanto que conseguiu obter do governo estadunidense as mais gravosas taxações a produtos exportados pelo Brasil, pôs em polvorosa os nossos produtores e o mercado dos Estados Unidos e, de quebra, conseguiu a aplicação da lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes e outros ministros do STF.
Tanto poder concentrado nas mãos de um só sujeito, convenhamos, tem alto potencial explosivo. Sua competência foi tanta, e tão sólida se demonstrou sua influência junto a autoridades do governo dos EUA que hoje, mal passados seis meses dos primeiros anúncios das sanções, Lula dança valsa com Donald Trump com invejável desenvoltura, enquanto o próprio Bananaro corre risco de ser deportado para seu país de origem ou se tornar um apátrida.
Uma sequência histórica de trapalhadas só poderia mesmo culminar com mais esse comportamento ridículo dos extremistas de direita em relação a uma singela propaganda de TV que, sim, começa com provocação politica, mas parte logo para uma mensagem de inclusão e acolhimento. E disso, acolhimento e inclusão, a extrema-direita faz questão de não querer nem saber.
Minha amada mãezinha diria que faltaram chineladas nas nádegas desses meninos mimados transformados em adultos mal resolvidos. Sim, acompanho o voto da nobre relatora, de saudosa memória, e digo mais: essa gente estúpida não merece mesmo usar os chinelos havaianas. Não, ao menos, enquanto não calçarem as sandálias da humildade, enquanto não se reconhecerem como os pés-rapados da politica nacional que de fato são.
Que se lhes deem umas boas e merecidas havaianadas na bunda! Meramente corretivas, faz favor, porque na esquerda não curtimos violência.
_____________
Compre meu livro!!!
Meu primeiro livro impresso, “O Onomaturgo e Outras Histórias”, está à venda nos seguintes endereços:
* no portal da editora Rua do Sabão
* nas livrarias:
** Livraria da Vila,
** Amazon,
** Estante Virtual,
** Quatro Cinco Um,
** Magazine Luíza,
** Rama Livros,
Ah, sim! E também, enquanto houver em estoque, diretamente comigo (envie mensagem para meu endereço laalbiero@yahoo.com.br ).
Falo sobre o livro nesta crônica: “Entrevista sobre o meu livro”.
Casa Literária é uma publicação de Luís Antônio Albiero. Para receber boletins periódicos com as novidades e prestigiar a publicação, torne-se assinante. Basta preencher este formulário.
Expresse sua livre opinião
Socialize esta publicação
Seja participativo


Nenhum comentário:
Postar um comentário