20/12/2025

As náuseas e uma flor


Crônica
Luís Antônio Albiero
dez 20, 2025

Adentrou a cela preso a umas poucas roupas. Chegou de uniforme laranja por um corredor acinzentado.

Na solidão da cela que lhe foi destinada, espreitam-no o ar condicionado, o frigobar, a cama confortável, a mesinha de cabeceira. Nada, porém, nenhuma dessas mercadorias, nem a excepcional privacidade, impede que a melancolia tome conta de seu espírito intranquilo.

Os enjoos de sempre se intensificam e ele sente falta de armas com as quais pudesse extravasar sua revolta. Lança os olhos sujos no relógio de pulso e se dá conta de quão longe está o tempo da justiça, quase trinta anos pela frente.

A porta aberta do pequeno banheiro conjugado, ao lado da mesinha de comer, o faz lembrar que o tempo ainda é de fezes, e da dificuldade que tem para as expelir.

As alucinações que a espera lhe causou anteciparam a prisão definitiva. O tempo pobre funde-se à ausência de poesia, falta da qual ele sequer se ressente.

Em vão, ele tenta se explicar, mas as paredes são surdas. As palavras escondem cifras e códigos. Pelo quadrado da janela, o sol consola-o das doenças, mas não o renova. Tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Súbito, o desejo de vomitar esse tédio sobre a cela, sobre a cidade, sobre todo o país. Setenta anos e todos os problemas mal resolvidos, agora projetados por incertos mais de vinte e sete por vir. Nenhuma carta escrita, nenhuma palavra trocada e, no entanto, seu silêncio pauta os jornais que soletram o mundo, embora saibam que ele o perde.

Crimes da terra, como perdoá-los? Tomou parte em vários, muitos nem se deu ao trabalho de esconder. Alguns, ao contrário, achou belos, fez questão de os tornar públicos. Crimes suaves, que o ajudavam a viver, ração diária de erro distribuída em casa, o pão com leite condensado do mal de cada dia.

Deseja pôr fogo em tudo, como Nero, inclusive em si mesmo. Ao rapaz de 1986 chamavam subversivo, explosivo, porém seu ódio é o melhor de si. Ainda é o que o salva, que lhe traz mínimas e incertas esperanças.

Uma flor que nascesse! Quanta falta faz uma flor, ainda que desbotada. Uma flor que iludisse o peso da vigilância, rompesse a concretude da cela, compensasse a paralisia dos negócios.



O preso se convence de que se uma flor brotasse ali, ainda que sua cor não se percebesse, suas pétalas não se abrissem, cujo nome não estivesse nos livros, mas que fosse realmente uma flor, teria ao menos companhia para conversar.

Ele se senta no chão da cela na capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passa a mão nessa forma insegura, imaginada. Do lado de fora, pela estreita janela, vê a ausência de montanhas ao longe, a planície a se espraiar, apenas as nuvens maciças que se avolumam, pequenos pontos brancos que se movem lentos e ganham contornos de galinhas em pânico.

O preso clama em silêncio, ao menos uma flor com quem possa conversar! Ainda que fosse feia, seria uma flor. Furaria o concreto, o tédio, o nojo e o ódio.

(Crônica inspirada nos poemas “A flor e a náusea”, do livro “A rosa do povo”, de Carlos Drummond de Andrade, e “Não tem nem uma flor para ele conversar”, de Flávio Bolsonaro)

Imagem: Flor-Cadáver (Amorphophallus titanum), conhecida pelo seu cheiro de carne podre e tamanho gigante. Flores e Folhagens

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