Quando rebentou o pequeno Amado, ecoou por toda a Bahia a notícia de que havia nascido o menino mais belo do mundo. Alíria, ao tomar o filho nos braços para dar-lhe o colostro, proferiu a sentença: “é lindo de morrer!”
Lágrimas felizes escorreram pelo rosto da mãe. A parteira comentou com a vizinha, que se incumbiu de espalhar a novidade por todo o bairro. Não custou para a rede social do boca-em-boca avançar pela cidade e alcançar os rincões do estado. Amado cresceu consciente e orgulhoso da beleza a que fora condenado, pela natureza e decreto materno, a ostentar por toda a vida.
Na adolescência, seus belos traços de homem já quase feito ganharam a força que caracteriza o negro baiano. Cedo o filho de Alíria e Zéfiro despertou paixões. O tempo passava e, no entanto, Amado não se entusiasmava por ninguém. Era de pouco falar. Em rodas de conversa, limitava-se a ouvir. Se se animava a pronunciar palavra, a timidez extrema o impedia.
Foi no batuque do Olodum que conheceu um rapaz pouco mais novo. Nemésio era dotado de incontrolável loquacidade e rapidamente se aproximou de Amado. Este, porém, a tudo o que ouvia limitava-se a expor seus grandes e alvos dentes que perfaziam o mais encantador sorriso que o outro jamais houvera visto.
Ao final dos ensaios, passaram a seguir juntos até o bairro onde ambos moravam. Atravessavam o Pelourinho rumo ao Elevador Lacerda e seguiam em companhia, tomando o mesmo ônibus. Nemésio não parava de falar. Contava com entusiasmo coisas do seu cotidiano, sua paixão pela música baiana, pelas tradições do lugar, pela gente soteropolitana. Amado seguia devolvendo sorrisos que foram se tornando cada vez mais breves, até que os cessou de vez. Quando era instigado a responder a alguma pergunta, fazia-o com monossílabos. Ia com o olhar fixo no banco à frente ou na sequência de casas e edifícios que surgiam e desapareciam ao longo do trajeto e já nem prestava atenção no que dizia o parceiro.
Nemésio morava a vinte metros do ponto onde desciam. Amado tinha uma caminhada por quatro quarteirões além. Numa noite iluminada por lua cheia e perfumada por dama-da-noite, Nemésio despediu-se abraçando o vizinho com força e vagar. Sorrindo, atirou seus verdes olhos sobre os do amigo, que os manteve baixos. Haveria de ser pela timidez, ponderou, e deslizou sem pressa suas mãos pelos braços musculosos do parceiro até que elas, com suavidade e ternura, encontrassem as deste. Segurou-as com firmeza, pôs-se nas pontas dos pés e lentamente aproximou sua cabeça para beijá-lo. Amado, no entanto, desviou e apenas emitiu um último sorriso, nervoso, discrepante dos anteriores. Disse “boa noite” e seguiu seu caminho.
Na manhã seguinte, assim que atravessou a porta da casa e pôs os pés na calçada carregando livros, Amado encontrou Afrodite, amiga de infância, de louros cabelos encaracolados, que sempre lhe houvera dedicado apego desmedido, proeminente e sem meias palavras. Desde menina apaixonara-se por ele, que jamais lhe dera qualquer esperança. Afrodite fez-lhe um aceno acompanhado de desabrido sorriso, mas dele recebeu a mesma frieza que por toda a vida a desconcertara.
“Preciso falar com você”, disse ela, quase em súplica. “Qualquer hora”, respondeu ele, distanciando-se. A jovem dirigiu-lhe um esgar de despeito como nunca antes imaginara possível. Das profundezas de seu espírito brotou, indômito, um sentimento que a fez dizer, baixinho, “morra!”
Amado seguiu em largas passadas observando o casario da rua. De si para si contava as tantas moças vizinhas que já se haviam declarado apaixonadas por ele. Rejeitara-as todas. Havia também um e outro rapaz que o assediaram, aos quais reservara igual repulsa.
Em vinte minutos de caminhada chegou na faculdade. Viu Nemésio no pátio e estranhou, pois jamais o houvera notado ali. A curiosidade, porém, não foi suficiente para que o abordasse e indagasse o que, afinal, fazia ele em tal lugar. Contentou-se em crer que talvez fosse aluno de outro curso, apenas mais um dentre tantos em quem jamais deitara reparo. O outro, no entanto, correu até o novo amigo com alegria exultante assim que o avistou. Abraçou-o com iguais vigor e paixão da noite anterior e repetiu o gesto com os braços e as mãos. Fitava-o com doçura e languidez. Amado, porém, fez um movimento brusco enquanto as mãos do amigo escorregavam por seus braços e o afastou de si. “Estou atrasado para a aula”, disse-lhe com educação, em voz baixa, e se distanciou a passos apressados. Sua expressão era de desconforto e Nemésio percebeu.
Temeu Amado que na academia de musculação, à tarde, encontrasse tão pegadiça companhia. Ali, porém, viu-se livre de Nemésio. Os grandes espelhos do lugar permitiram-lhe contemplar o próprio corpo. Admirava os resultados obtidos com os exercícios. Pôs-se ereto, de frente; virou-se para examinar à direita, depois à esquerda, às costas, dobrando os braços em direção a cada ombro com as mãos cerradas e a cabeça voltada para a própria imagem refletida. Verificou os glúteos, as coxas, estufou o peito e tudo lhe pareceu perfeito.
Voltou a encontrar Nemésio no Olodum, à noite. Este, no entanto, limitou-se a olhá-lo com expressão de descontentamento. Não sorriu, não o cumprimentou, transmitindo ao amigo sua decepção e tristeza. Amado não se importou, sequer lhe fez um aceno.
No retorno para casa, percebeu que Nemésio o seguia e que apertava o passo para alcançá-lo. Amado não o evitou. O colega então desandou a dizer-lhe tudo o que sentia, o quanto havia sofrido com o desprezo que este lhe dedicara no pátio da faculdade, a angústia pela ausência de um cumprimento, a dor que lhe causara a falta de correspondência ao afeto que lhe dedicara. Tudo dizia com voz melancólica, embargada por um choro contido que a cada palavra parecia prestes a irromper em plenitude. Quando, enfim, disse sem peias nem meias que estava apaixonado, Amado viu-se na contingência de dizer que ele não deveria alimentar expectativa, pois não havia a menor possibilidade de que correspondesse. E prosseguiu firme em seu caminhar.
Nemésio prostrou-se e chorou como criança a quem se nega a compra de um brinquedo que ela tinha como certo. “O amor que lhe devoto é tanto que sou capaz de morrer e de matar por você”, disse-lhe em grito sufocado pelos soluços. Amado mal o ouviu e foi adiante. A certa altura, percebeu que o outro havia parado de segui-lo. Tomou o Elevador e, em seguida, o ônibus, sem a companhia que se tornara desagradável. Não mais o viu.
Não houve aula no dia seguinte e Amado decidiu ir logo cedo ao Pelourinho, aproveitar a bela manhã que inundava de sol toda Salvador. Caminhou pela região, apreciou cada casarão antigo, a imponente catedral, as muitas igrejas, os estabelecimentos comerciais, observou encantado o vaivém buliçoso do gentio. Almoçaria por ali mesmo.
Deteve-se diante de uma poça d’água. Seus olhos foram atraídos por um raio da luz do sol nela refletido. Agachou-se para melhor ver no pequeno espelho natural sua própria imagem e constatou mais uma vez o quanto, de fato, era bonito. Ocorreu-lhe que se havia alguém digno de sua paixão era mesmo o dono do lindo rosto que o chão molhado exibia.
Com as mãos em concha, colheu um pouco da água empoçada, como se fosse sorvê-la. Não a ingeriu, porém, porque considerou que era necessário preservar a quantia ali represada. Ponderou que a beleza que ela refletia haveria de contar com a exata porção do líquido ali posto pela natureza. Desfazer a formação, ainda que para retirar-lhe pequena quantidade, seria como danificar uma obra de arte preciosa. Ele devolveu lentamente, cuidadosamente, a porção que concentrara em suas mãos. Breves ondas circuncêntricas propagaram-se até que o líquido se acomodasse e Amado pode novamente contemplar sua imagem ali espelhada à perfeição, sem qualquer distorção.
Estava assim absorto, a admirar seu próprio reflexo, quando um estranho movimento à sua esquerda despertou-o. Olhou e viu dois pedaços de pau que, lançados por trás de si, caíram um sobre o outro, formando no chão uma espécie de cruz. Amado voltou seu olhar para seu algoz, mas mal teve tempo de reconhecê-lo. Viu apenas uma silhueta à frente do sol intenso no mesmo instante em que sentiu a faca penetrar-lhe as costas. Pela vastidão do lugar ecoou um grito de dor lancinante. À primeira facada, seguiu-se outra, e outra, e outra; doze ao todo.
Da igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos soaram as badaladas do meio-dia. O sol estava a pino quando o corpo de Amado tombou sobre a poça. Seu sangue deu nova coloração ao quadro feito de água que até aquele instante retratava o rosto mais belo de que o mundo já tivera notícia.
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3 comentários:
Sou baiano,gostei do que li, embora mudar um roteiro não cabe sobre um texto bem escrito. Bom!!
Chico batistafrancisco140@gmail.com Arte educador...
Obrigado, Chico! Volte sempre. E explore os demais textos do blog. Sua presença e seus comentários serão sempre bem-vindos.
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