Eu tinha de dezessete para dezoito anos – ainda menor, portanto – e fui acompanhado de minha mãe, que havia residido na capital paulista do início da idade adulta até casar-se, em fins de 1962. Fazia, portanto, em torno de vinte anos que ela não ia até a maior cidade do país. De todo modo, ela conhecia mais do que eu.
Até então, eu conhecia São Paulo apenas pela televisão, desde que acompanhei a transmissão do incêndio do edifício Joelma, em fevereiro de 1974, a inesquecível tragédia em que as pessoas em desespero atiravam-se para a morte, ao vivo e em rede nacional.
A primeira visão que tive da cidade, no entanto, foi a de uma rua escura, à noite, com as luzes dos postes acesas. Era uma bela imagem que estampava a folhinha de calendário do ano 1971 que meu tio mantinha afixado à vista da freguesia, em alguma prateleira do boteco em que eu trabalhara desde então, na flor dos meus sete anos de idade. A legenda informava tratar-se da avenida Nove de Julho, em cujo inicio fica o mesmo edifício Joelma. Aquela ilustração cravou em meu imaginário a impressão de que a capital dos paulistas era uma cidade sombria; ainda assim, a cintilância das lâmpadas ligadas exercia em mim uma espécie de atração que eu não era capaz de compreender.
Voltamos, posteriormente, eu e minha mãe, para minha posse no cargo de escrevente, em 1983, e, um ano e meio depois, para meu ingresso no Banco do Estado de São Paulo, o extinto Banespa, hoje transformado em Santander. Servi como escrevente, pelo curto período, junto ao fórum de Piracicaba e fui, por seis anos e meio, escriturário e caixa do Banespa na agência de minha própria cidade, o que me aliviou os custos com viagem e almoço em restaurantes piracicabanos.
Seis anos depois, aprovado para o cargo de advogado do banco, vi-me na contingência de me mudar para São Paulo. Eu já era vereador em Capivari e, no início, precisei viajar diariamente entre minha cidade natal e a capital. No início de 1991, pedi licença à câmara e aluguei um apartamento na rua Maria Antônia, uma espelunca dotada de um fogão amarelo, velho e sujo, uma cama e um guarda-roupas povoado por baratas. Ficava num prédio defronte a rua Doutor Vila Nova, na vila Buarque – a uma quadra da Consolação, bem próximo do Mackenzie. No térreo, havia uma padaria.
Na primeira semana, tendo deixado, com desconfiança, as chaves com o porteiro, um sujeito magro, de bigode, cabelos desgrenhados e cara de safado, para que ele abrisse a porta quando chegassem os móveis que eu havia encomendado, fui premiado com um assalto. Ao chegar no apartamento à noitinha, notei a porta destrancada, só encostada. Abri e logo constatei que faltavam itens que havia trazido do interior. Como eram poucas as coisas que havia no muquifo, somente o que eu conseguira trazer como bagagem de mão, pois tudo o que comprara para a nova residência ainda não havia sido entregue, tomaram-me apenas um desodorante, um rádio-relógio, uma antiga máquina de escrever portátil e um barbeador elétrico que havia acabado de ganhar de presente de Luciana. Tivessem esperado mais um dia e teriam levado a pequena TV Phillips de vinte polegadas que eu comprara no Mappin no mesmo dia. Nesse mesmo magazine, hoje extinto, comprei um novo barbeador, para não decepcionar minha amada namorada, e uma máquina de datilografar semelhante à furtada, pela qual eu tinha alta estima.
O departamento jurídico do banco ficava no décimo primeiro andar do edifício da rua Doutor Falcão, onde hoje está sediada a prefeitura do município, um prédio quadrado que lembra a caixa-forte do Tio Patinhas em cujo teto há o famoso jardim suspenso. No dia em que me deparei com o furto ao meu apartamento, eu havia saído do trabalho e ido para casa a pé, acompanhado da colega Adriana, mas em geral tomava um ônibus urbano que saía da praça do Patriarca. Numa das primeiras viagens, passando pelo largo do Paiçandu, avistei pela janela um conhecido conterrâneo, um sujeito magérrimo, de barbicha, óculos pesadamente grossos, pernas tortas, parado num dos pontos de espera em posição de quem tentava enxergar o letreiro dos coletivos – com a mão cobrindo o alto dos olhos, como se tapasse o que restava de sol. Era o inconfundível Ardumanes, mas não tive como falar com ele, pois o vi de passagem e a larga distância.
Costumava caminhar com colegas pelo centro de São Paulo depois do almoço, no entorno do prédio em que trabalhávamos. Numa ocasião, enquanto atravessava o Viaduto do Chá com Rosélys, também colega advogada do banco, cruzei com quatro conhecidos de Capivari, seu Mário, jornalista, o professor Tarcísio, um de seus filhos e o cunhado, Cláudio. Conversamos brevemente, destacando o inusitado do encontro em pleno centro da capital paulista.
Às sextas-feiras, ao fim do expediente, tomava o metrô e ia direto do trabalho para a rodoviária, onde apanhava o ônibus das dezoito horas para minha amada terreola. Numa dessas, porém, os metroviários estavam em greve e, ao chegar à estação São Bento, deparei-me com um movimento muito intenso e desisti. Caminhei até a avenida Prestes Maia para tomar um táxi. Como eu, havia muitas pessoas no mesmo lugar acenando para taxistas, que não estavam dando conta da demanda. Conversando com algumas delas, não foi difícil encontrar quem também fosse para a rodoviária. Combinei com duas moças e um rapaz dividirmos o preço da mesma corrida. Fomos conversando animadamente durante o percurso, que se alongava em face do congestionamento inevitável. Conversa vai, conversa vem, ouvi uma das moças dizer que estava em cima da hora para pegar o ônibus para Capivari. Ao mencionar o nome da minha cidade, olhei espantado para o banco de trás. Mal podia crer que, em meio à multidão, no centro de São Paulo, eu encontrara uma conterrânea que se dirigia no mesmo horário para a terrinha, um município a cento e trinta quilômetros da capital, à época com menos de cinquenta mil habitantes.
Tomamos juntos o ônibus para a cidade natal, sentamo-nos em bancos contíguos e seguimos conversando. A moça contou que vivia com a mãe e um irmão, na capital, havia alguns anos, desde que a mãe, viúva e já em idade avançada, reencontrara seu primeiro namorado e, a partir de então, passaram a viver juntos. Achei curiosa a história dos namorados que se separaram na adolescência e, mais de trinta anos depois, vieram a se casar. Quis saber quem eram eles e, para nova surpresa, tratava-se de Miguel, o primo mais velho de minha futura esposa Luciana.
Pouco depois, já casados, mudamo-nos para o Itaim Bibi. Fazíamos as compras no Eldorado da avenida Pamplona, à noite. Em duas dessas vezes, encontrei no supermercado doutor Frank, juiz de direito de quem fora escrevente de audiências no fórum de Piracicaba, vizinha à minha Capivari. Cumprimentamo-nos e fiquei feliz por ter sido reconhecido pelo magistrado e a ele ter podido apresentar a minha esposa.
Um dos entretenimentos, nos finais de semana em que não partíamos para o interior, era rodar de automóvel pela São Paulo vazia, sem destino certo. Ao passar pela pequena e, por ser domingo, pacata rua Luís Coelho, paralela à avenida Paulista, a caminho da Angélica, ouvi um grito que me pareceu de alguém chamando por meu nome. Com a rua deserta – nem o mendigo idoso de muletas e longa barba branca que costumava pedir esmolas naquele trecho, a quem eu chamava de “papai Noel”, encontrava-se em seu ponto habitual –, não foi difícil parar o veículo, recuar um pouco e olhar. À esquerda, vi João Jerônimo, velho amigo da terrinha, que de fato gritara meu nome. Estavam ele e família saindo de um restaurante. Conversamos rapidamente e trocamos a mais célebre das promessas paulistanas, de que qualquer dia desses um apareceria na casa do outro.
Um dos meus lugares preferidos, aonde eu ia com frequência, era a livraria Saraiva, na praça da Sé, defronte o fórum João Mendes. Certa feita, ali encontrei outro conterrâneo, Luís Henrique, o “Spoke”, que residia há tempos na capital paulista. Em outro dia, bem próximo dali, enquanto tirava cópias xerox de um processo judicial no prédio da associação dos advogados, encontrei Tatiana, filha de João Jerônimo.
Na mesma região, na calçada da rua Riachuelo, confluência com a praça João Mendes – na verdade, uma rua que vem da praça da Sé e ladeia a Catedral, um dos pontos mais movimentados de São Paulo –, escutei alguém gritar meu sobrenome em meio ao povaréu. Não era de todo impossível que naquele vuco-vuco houvesse alguém com o meu nada comum sobrenome, mas a circunstância exigia que eu olhasse. Voltei meus olhos na direção do chamado e, de fato, era mais um conhecido. No meio do povo, avistei Armando, jornalista natural de Capivari que trabalhava na Câmara Municipal paulistana, próximo dali. Era assessor do então presidente José Eduardo Cardozo, que no futuro viria a se tornar ministro da Justiça. Conversamos e ele me convidou para visitá-lo na sede do legislativo municipal paulistano. Tempos depois, Armando me telefonou dizendo que Cardozo queria me conhecer, com intuito de estabelecermos relações políticas. Eu continuava vereador em Capivari. Marcamos dia e hora e, na data aprazada, para lá me dirigia quando o carro quebrou, num viaduto sob a avenida do Estado, e nunca mais tive oportunidade de conhecer o futuro ministro.
Houve também uma ocasião em que o mesmo carro, um Monza branco fabricado em 1984, apresentou defeito quando eu e Luciana chegávamos em uma igreja, no Belenzinho, para o casamento de um colega de trabalho. O danado enguiçou a duas ou três quadras do destino, numa rua tranquila do bairro. Um morador da vizinhança, de sobrenome Lobato, vendo os meus apuros, ofereceu-se para guardar o automóvel em sua garagem. Na segunda-feira, eu poderia transferi-lo para a oficina mecânica localizada bem defronte à sua residência. O mecânico era confiável, disse-me o solícito morador, e assim fiz, o que salvou nossa ida ao casamento e o restante do final de semana.
Como combinado, na segunda-feira fui logo cedo à casa do simpático morador e de sua garagem o mecânico e seus auxiliares empurraram o automóvel para dentro da oficina. Ao ver a placa indicando a cidade de origem, o mecânico disse que tinha uma amiga muito querida nascida em Capivari. E qual não foi a surpresa, mais uma, quando o mecânico, um baixinho gordinho de cabelos e bigodinho brancos, também muito simpático, me disse quem era a sua conhecida: a prima de Luciana, Cida, irmã mais nova do mesmo Miguel, padrasto da moça do táxi. Anos depois, revi o mecânico em minha cidade, no velório de Cida, falecida jovem, creio que aos cinquenta anos de idade.
Outra das poucas diversões de quando moramos em São Paulo era ir ao cinema, quase sempre nos shoppings centers, por ser lugar mais seguro. Fomos assistir à estreia do filme Malcom X numa das salas de cinema do imponente Conjunto Nacional, na avenida Paulista. Na escadaria de acesso à sala, encontramos Lúli e sua esposa. Lúli, também originário da terrinha, havia feito contato comigo ao tempo em que eu era vereador. Ele era assessor do então deputado estadual Pedro Dallari, com quem, a partir daquele contato, estabeleci sólida relação política. Ele mesmo, o deputado, encontrei um dia, enquanto eu atravessava a pé a esquina da avenida Nove de Julho com a Bandeira Paulista. Morador da região, ele passava com o carro oficial lendo um jornal no banco dianteiro, ao lado do motorista, com destino à Assembleia.
Quando voltamos a residir no interior, já fora do banco, tive de ir com um cliente ao fórum João Mendes, de onde saímos com destino ao Primeiro Tribunal de Alçada Civil. Ao atravessar a praça da Sé, em meio ao bulício popular, encontrei novamente doutor Frank, então já promovido a juiz de alçada, caminhando no sentido contrário. Tempos depois, ele viria a falecer no cargo de desembargador.
Em 2003, voltei a trabalhar na capital, como assessor jurídico da bancada do PT na Assembleia Legislativa. Ia de ônibus até Campinas, de lá ate a rodoviária do Tietê, onde tomava o metrô até a praça da Sé e dali até a estação Santa Cruz, onde finalmente tomava um ônibus até o Parque do Ibirapuera. No retorno, fazia o mesmo percurso em sentido contrário. No metrô, no entra-e-sai das catracas, avistei várias pessoas conhecidas da terreola, como Jaques, um sujeito careca e boa praça que eu costumava ver no Cine Vera Cruz, em Capivari, e as amigas Nadine e Luciana, sempre juntas, que frequentavam meu escritório.
Noutra ocasião, voltei à capital para uma consulta ao oftalmologista, doutor Mauro, na rua Francisco Leitão, em Pinheiros. Eu havia sido submetido a duas cirurgias para transplante de córneas, em 2014, e retornava para os exames pós-cirúrgicos. Residia, à época, em Americana. Como enxergasse tudo embaçado, haja vista que as córneas levam pelo menos seis meses após o transplante para permitirem uma visão próxima do normal, pedi ao amigo Rogério que me levasse. Em retribuição, convidei-o para almoçar em uma churrascaria, em Pinheiros. Lá, Rogério me informou que havia pessoas conhecidas no restaurante, César, prefeito de Rafard, cidade vizinha de Capivari e onde nasci, e alguns de seus auxiliares. Conquanto nada pudesse enxergar, cumprimentei-os.
O mesmo Rogério levou-me, posteriormente, para nova consulta, na mesma clínica. De novo, ofereci-lhe um almoço em retribuição ao favor, só que dessa feita em lugar mais modesto, numa padaria próxima ao endereço do médico. Na fila do self-service, enquanto montava meu prato, ouvi atrás de mim uma voz com forte sotaque familiar indagando se eu não era de Capivari, seguido de menção ao meu nome. Quase disse a ele que não estava certo de que fosse eu mesmo, mas que com certeza ele era de Capivari, tal a força do sotaque. Era Erinho, que me conhecia da terrinha e fazia um curso de pós-graduação nas imediações da padaria.
Essa profusão de coincidências estendeu-se também à Grande São Paulo. Residíamos no interior quando eu e Luciana fomos a um casamento em São Bernardo do Campo. A noiva, Helka, era irmã de Hérika, colega de república de minha esposa. Ao chegarmos à porta da igreja, reconheci, com estranheza, a voz do cantor, que se preparava para sua participação na cerimônia. Entrei e, de fato, era Miguelito, um renomado pianista capivariano. Os convidados foram, em seguida, recepcionados num local de Santo André. Lá, não só Miguelito abrilhantava a festa com seu talento como encontramos Vornei e esposa, sua filha - minha amiga Lílian -, um dentista e vários conhecidos de Capivari. A família do noivo era de Rafard!
Na primeira ida à capital, em busca do "RG", minha mãe aproveitou para ver as lojas da rua 25 de Março. Caminhávamos por lá quando fui acometido de uma necessidade inadiável de aliviar meus interiores. Adentramos a uma loja de tecidos e me lembro de ter sido atendido por uma garoto da minha idade que, muito gentil, me permitiu usar o sanitário do estabelecimento. Considerando tudo o que viria a me acontecer no futuro, dos tantos acasos que acabo de relatar, não duvido nada que aquele rapaz possa ter sido Fernando Haddad, companheiro de partido que, salvo mais essa possível coincidência, até hoje não conheço pessoalmente. E - vejam só! - ele comemora seu aniversário no mesmo dia de São Paulo. E, como eu, ele nasceu em 1963, em 25 de janeiro; eu, em 19 de novembro. Por aquela época, ele tomava conta da lojinha do pai na mais famosa rua comercial do Brasil.
Essa é São Paulo, tão imensa e tão pequena que quase cabe na palma da minha mão, praticamente uma extensão da minha amada Capivari. Estou convencido de que o rio que corta minha aldeia é mesmo maior (e mais belo, e mais livre) que o Tietê e o Pinheiros juntos, porque pertence a menos gente, segundo a poética de Fernando Pessoa, pela persona de Alberto Caeiro. E, de mais a mais, a pauliceia desvairada de Mário de Andrade sempre foi para mim o pequeno trecho lôbrego da avenida com seu luzidio noturno retratada na folhinha do calendário de 1971.
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