“Poucos sabem qual é o rio da minha aldeia, / E para onde ele vai, / E donde ele vem”. Pois eu o digo. O Rio Capivari desce de Jundiaí, corta a minha aldeia e vai servir suas águas ao Rio Tietê, engrandecendo-o. Decerto, não é o maior do mundo, nem o mais belo, mas “pertence a menos gente” e, portanto, há de ser mais livre e maior que qualquer outro.
Nestes dias de chuvas intensas, o Capivari libertou-se de vez e transbordou muito além da conta. Só não causou tragédia maior porque não houve perda de vida humana, felizmente.
Tem sido assim desde que me conheço por gente. Em 1970, havíamos nos mudado de Rafard para a casa de meus avós maternos, no bairro Jardim América, eu mal completara sete anos, vi as ruas encharcadas a duas quadras de onde morávamos, próximo do Juventus. Lembro-me das canoas transportando pessoas em desespero, das mudanças às pressas, das cabras sobre as mesas e animais sobre os telhados, e da repercussão que o caso teve em âmbito nacional.
Depois disso, vi outras cheias na mesma região do Juventus, do Posto Shell, da ponte da rua 15 de Novembro, mas o ponto mais preocupante mudou para o lado do bairro Moreto. Ali, em área de proteção ambiental, migrantes atraídos de seus estados para o corte de cana e pelas promessas de uma vida digna, encontraram lugar para construir barracos e casas de alvenaria de baixo custo e qualidade. Não precisavam pagar pelo terreno, ou pagavam pouco por áreas nas imediações, e passavam a residir bem perto dos centros de Capivari e de Rafard, e do leito do rio. Aos poucos, a região foi contando com serviços e equipamentos públicos, transporte, escola, creche, posto de saúde, tornando-se cada vez mais atraente, cada vez mais populosa. Ano vai, ano vem, repetem-se as enchentes, a súbita e atabalhoada correria para abrigar os desalojados, o drama vivenciado por idosos, crianças, grávidas, arrancados de seus lares, a transferir residência para o ginásio de esportes ou para escolas municipais, a depender da generosidade e da boa vontade alheias. E tudo o que acontece é a renovação de promessas, que iterativamente caem nos esquecimento. Não há até hoje sequer um planejamento prévio de socorro para atender a uma situação sempre previsível, como cheguei a propor logo na minha primeira passagem pela edilidade local.
Parece que, nesses anos todos, as autoridades foram mesmo incapazes de pensar numa solução definitiva, sequer num paliativo de eficaz prevenção. Como no poema de Pessoa, “o rio da minha aldeia não faz pensar em nada / Quem está ao pé dele está só ao pé dele”. A cada novo governo, uma nova esperança, uma nova promessa, uma nova decepção.
Não basta construir casas para a população que se acha em área de risco, há que se planejar o que fazer para dar a essa área aproveitamento útil e, ao mesmo tempo, e sobretudo, para impedir que outras pessoas continuem a fazer dela uma opção de moradia de baixo custo. Se não houver um projeto para coibir novas construções, será inevitável, as pessoas vão ocupar o lugar, impelidas pela necessidade humana de viver sob um teto.
"Ninguém nunca pensou no que há para além / Do rio da minha aldeia", prossegue o poeta. Hoje, dizem, temos um prefeito com capacidade de raciocinar e planejar. Que desta feita ele, que está "ao pé do rio", no comando da situação, lá não esteja apenas para ver, lamentar, redigir instruções normativas, distribuir responsabilidades e prometer, mas que não perca a oportunidade de efetivamente pensar numa solução definitiva. E de executar o que há de ser feito.
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Texto publicado originalmente no blogue “Cantinho do Pensamento”, postado em 2/jan/2010 (http://luisalbiero.spaces.live.com/)