15/07/2002

A Sabedoria do Mestre Exíbio

Mestre Exíbio não tinha a aparência de um profeta. Não era idoso, não possuía barba branca, tampouco cavanhaque ou olhos puxados como os de um monge chinês. Sujeito franzino, cabelos sempre alinhados, olhinhos miúdos e um sorriso dissimulado faziam dele um homem comum, um boa-praça, apenas isso. Mas era botar o paletó preto e ei-lo com um insuspeito ar de pastor evangélico.

Apesar da pouca idade, era O Mestre. Contavam-se nos dedos de uma das mãos as pessoas que o levavam a sério, mas era assim que ele se intitulava.

Como todo guia espiritual, Mestre Exíbio tinha seus seguidores. O mais próximo e mais constante era um indivíduo baixinho, de corpo desengonçado, a quem o mestre chamava de Pequeno Micuim. Contrapondo-se ao seu cérebro diminuto, Micuim era dono de protuberantes barriga e traseiro, que lhe proporcionavam uma certa e bisonha simetria. Algo como o côncavo e o convexo, como se as conchas do Congresso Nacional tivessem sido postas uma contra a outra, levemente deslocadas.

O andar de Micuim era lento como seu raciocínio. Enquanto conversava, costumava apertar o olho esquerdo, sem fechá-lo. Se se esforçava muito para pensar, aquele olho cerrava-se totalmente, enquanto o outro se abria mais do que o normal.

Os dois caminhavam pela manhã de uma sexta-feira qualquer, como de hábito. O discípulo indagou:

– Terá o Mestre algum inimigo?

– Pequeno Micuim – respondeu o outro, pausadamente -, reflita sobre estas palavras que vou pronunciar. Quem não está comigo, está contra mim. Aquele que não é meu amigo, meu inimigo é. E todo aquele que for amigo do meu inimigo, também nutrirei por ele a mesma inimizade. E dois inimigos meus, ainda que um não conheça o outro, considerá-los-ei amigos entre si.

Micuim não compreendeu nada daquele discurso. Porém, era seu costume elogiar o outro.

– Sábias palavras, ó Mestre!

Um pássaro passou muito próximo dos dois, num vôo rasante, enquanto Micuim olhava para o alto. Se quisesse, aquela ave não teria tido pontaria tão certeira. Uma substância branca com cobertura preta jorrou do animalzinho e alojou-se exatamente no olho esquerdo de Micuim, obrigando-o a fechá-lo de vez. O mestre soube tirar daquele episódio mais uma importante lição:

– Veja, Pequeno Micuim. Você, que sempre se proclamou amigo dos passarinhos, bem vê agora a antipatia que tais animais nutrem por você. D’agora em diante, como poderá você continuar considerando amigos os pássaros?

Limpando o olho atingido com a alça direita de sua camiseta sem mangas, com o outro Micuim fitava Mestre Exíbio sem perder o ar de admiração. Assim permaneceu mesmo quando se abaixou para, de joelhos e com a fralda da camiseta, limpar os respingos que haviam caído sobre o sapato do Mestre. Este era, para ele, um ídolo incontestável. Desmanchar aquele êxtase permanente, que os seres desprovidos de luz manifestam logo que vêem alguém a quem têm por superior, seria tão pecaminoso como um cristão pôr em dúvida a existência de Deus.

– Mestre, eu não tenho inimigos…

O profeta retorquiu, em tom de advertência:

– Então procure fabricá-los, meu caro. Não apenas um, nem dois, mas vários de uma só vez. Prefira os grandes. Um homem certamente ficará incomodado se uma formiguinha estiver acossando seu calcanhar. Ele terá que parar para afastar aquele inseto indesejável. Veja como isso é maravilhoso, Pequeno Micuim! Aquele homem, de pernas longas e passos largos, estará sendo subjugado por um bichinho quase invisível.

Pequeno Micuim jamais ousaria questionar as verdades que piamente acreditava contidas nas palavras mais fúteis de seu guia. Quando fazia perguntas ao Mestre, nunca era por duvidar do que o outro lhe dizia. Havia sempre o intuito sincero de aprender, de bebericar do que julgava ser a fonte do saber. Micuim só não fazia idéia do quão impura era a água daquele manancial.

– O que isso representará para a formiguinha, Mestre?

– Feliz indagação, meu aprendiz. Veja como isso será bom para aquele inseto: ele se sentirá tão grande e tão forte como o homem a quem incomodava. Por isso eu lhe digo: incomode! Incomode o maior número de pessoas que puder. Crie inimizades sem parar! A vida sem percalços não tem a menor graça.

– Não deveria eu perdoar os meus inimigos?

– Não, Pequeno Micuim. O perdão não é virtude, é apenas demonstração de fraqueza. O homem que perdoa quem o ofende pratica injúria contra si mesmo, renega a sua própria honra.

– Mas, Mestre. Não está nas sagradas escrituras que chegará o dia em que leões e cabritos, lobos e ovelhas abraçar-se-ão?

Mestre Exíbio não era leitor dos textos sagrados, senão eventual, de modo que foi tomado de surpresa com pergunta de tanta profundidade. Sem alterar o semblante, prosseguiu em seu lento caminhar, buscando no horizonte inspiração para responder ao discípulo. Então disse:

– Vamos com calma, Pequeno Micuim. As coisas não são simples como parecem. É certo que esse dia chegará. Mas, antes do grande acordo final, será sempre necessário acertar os honorários dos advogados…

Micuim ficou prostrado, boquiaberto diante do que cria ser uma sapiência inesgotável.

– Sábias palavras, ó Mestre! – foi tudo o que conseguiu dizer.

Assim prosseguiram naquela caminhada matinal, o mestre exibindo sua filosofia, em jorros de falácias, e o pobre Micuim embebedando-se delas.

(Publicado originariamente na revista “Perfil”, de Capivari, em agosto de 1998)

13/01/2001

A Tribo dos Tipoassins

- Nossa! Você também pertence à tribo dos tipoassins?!

Rolava um papo supersério com um chegado, que me passava detalhes de como seria seu divórcio, tipo eu vou ficar com a casa da praia e o carro importado mas tudo bem ela pode ficar com o cachorro e se quiser com a casinha dele também, quando eu o interrompi com essa pergunta.

Meu conhecido não é de origem indígena. Melhor dizendo, deve ter aquele fiozinho de sangue índio que corre pelas veias de quase todos nós brasileiros (não é à toa que os americanos imaginam que no Brasil, em qualquer rua de qualquer cidade, há silvícolas travando guerra de flechas o tempo todo. E americano costuma odiar índios e flechas e tupiniquins e latinos em geral).

Expliquei ao meu amigo que essa tribo nem os irmãos Vilas Boas, famosos indigenistas, chegaram a conhecer. Ainda não está sequer catalogada nos compêndios de antropologia. Mas não era a uma tribo indígena que eu estava me referindo. Hodiernamente (eta palavrinha odiosa esta, um tanto quanto hedionda. E obsoleta.), "tribo" designa qualquer agrupamento de pessoas que se distinguem por uma característica comum, sem que tal distinção seja por origem étnica, como a princípio pode parecer. Há a tribo dos esquinredes, dos fanques, dos revimétal (como será o plural disto?). São as mais conhecidas. E todas têm alguma consangüinidade ou afinidade ideológica com os tipoassins. Eu mesmo redigi com absoluta naturalidade o parágrafo que começa com "rolava um papo supersério" porque, em certa medida, também tenho laços com a tal tribo. Não renego minhas origens.

É fácil reconhecer um legítimo tipoassim. Basta ficar atento ao vocabulário das pessoas. Experimente, por exemplo, girar lentamente o daio (do inglês "dial", que significa daio) do seu rádio FM. Ao percorrer menos de duas ou três estações, se tanto, você logo ouvirá um locutor esgoelando-se, berrando com voz esganiçada a seguinte frase:

- E aí, galeeeeeeeera? (ai, meus tímpanos!)

Pronto. Você já achou um autêntico representante dos tipoassins. Mais do que isso, você acabou de encontrar um dos maiores propagandeadores da cultura e dos costumes dessa gente.

Nas ruas, nos ônibus, nas escolas, onde você estiver, com certeza haverá alguém por perto que pertence à tribo. Você mesmo, quem sabe, ou alguém de sua própria casa pode ser um deles.

Creio que os tipoassins são seres dotados de extrema inteligência; afinal, são bons entendedores. Meia palavra basta para que todos entendam tudo. Uma reticência é uma sentença. São minimalistas do raciocínio, adeptos ferrenhos da lei do mínimo esforço, especialmente mental.

Quando você for à rodoviária de Campinas, por exemplo, procure sentar-se naqueles bancos de espera, próximo a um grupo de estudantes. Não importa que sejam da PUC ou da Unicamp. Você os identificará pela grande quantidade de mochilas e pela vestimenta. Eles só vestem roupa "Versáti", ou seja, calças jeans e uma camiseta "básica", que servem para qualquer ocasião. Tudo é muito "versáti", eles dizem, referindo-se à "versatilidade" dessa espécie de vestuário. Note que logo chegará outro, amigo deles, que os cumprimentará com o indefectível "e aí, galera".

Fique muito atento ao "papo que vai rolar". A certa altura, um deles passará a explicar alguma coisa aos demais. Imaginemos, por hipótese, que ele esteja contando o que pretende fazer no final de semana:

- Tipo assim, acho que vou pro sítio do meu avô, sei lá. Tá a fim, galera?

Outro perguntará mais sobre o tal sítio. E a resposta será tipicamente tipoassim:

- Ah, tipo assim. Tem lagoa... mil coisas.

E virão novas perguntas em linguagem tipoassim:

- Seu avô, tipo assim, planta alguma coisa lá?

- Tipo assim, meio que parece que ele meio que planta cana, sei lá.

A essa altura, uma garota do grupo vai dizer que conhece o sítio, pois já esteve lá certa vez.

- Eu superadorei! É mó legal. É dez! Tipo assim, sei lá. É super.

O agourento do grupo, aquele que sempre é do contra, vai dizer:

- Aí, manera! Lance mais besta, galera! Perder o finzão de semana no meio do mato, pisando em m... de vaca, meu? Qual que é, dá um tempo. Tipo assim, meio que programa de índio. Sei lá.

Chega a hora de descer para a plataforma 5, que o Caprioli prepara-se para sair. Alguém diz:

- Vam’nessa, galera, que o buzão já tá roncando.

E lá se vão os tipoassins, em bando, cuidando da preservação de sua cultura. Siga-os. Discretamente, sente-se num banco à frente dos que eles escolherem. Os tipoassins costumam viajar nas poltronas do fundão. E vão zoando a viagem toda. Curta o passeio. Ouvido neles! Não se esqueça de, no final, antes de descer do ônibus, dizer-lhes:

- Valeu, galera! Foi super!

Fui.