21/05/2020

Duas Palavrinhas

Permita-me duas palavrinhas, por obséquio.

"Ah, mas você passa pano para seu bandido de estimação" - é o que estou cansado de ouvir e ler no esgoto aberto que são as redes sociais. Não, meu amigo, não passo pano para bandido algum, nem para ninguém - mas faço questão mesmo é de não passar pano para a injustiça. Se o preço que hei de pagar por empreender uma luta diuturna contra as injustiças - tem sido assim há meio século! - é ser chamado de "fanático", sim, pagarei com gosto. Não concordo, mas sucumbo. Chame-me como quiser.

Tenho para mim que o fanatismo é fruto da cegueira, e cego é o que não sou. Fanático é o sujeito que acredita no que não tem expressão concreta na realidade. Se você me diz que fulano é "ladrão" e eu quero que você me informe dados, situações, datas, horários, locais, objetos roubados por esse seu "ladrão", e você não é capaz de me dizer, acho melhor você reavaliar quem dentre nós é, de fato, o "fanático". Pois se eu peço dados objetivos e você me vem como frases prontas, "memes" produzidos em gabinetes de ódio e usinas de "fake news", repetições genéricas do que a mídia inculcou lenta, gradual e seguramente em seu frágil espírito, em doses homeopáticas, e você não foi capaz de raciocinar a respeito, não teve forças para enfrentar o leão, tenho para mim que o fanático, sem aspas, é você.

"Ah, mas quando chamo fulano de ladrão, é minha opinião, respeite". Respeito uma ova! Acusação, ofensa, injúria, não é "opinião", não é "liberdade de expressão". É crime. Cadeia, velho - ou velha! Código Penal, artigo 140, pena de detenção, de um a seis meses, ou multa, sem contar a indenização por dano moral, custeio do seu advogado, do advogado contrário, das custas do processo. Prepare o bolso.

Suponhamos que você se chame João, ou Joana, e eu resolva sair por aí dizendo que "João é ladrão", ou que "Joana é uma ladra", eu posso? Você, João ou Joana, aceitaria assim, na boa? "Ah, é liberdade de expressão, é só uma opinião" - você concordaria? Pois é, cara!

Claro, você já percebeu que estou falando de Lula. Bingo!

Sim, você tem direito de criticar o ex-presidente pelas políticas públicas que empreendeu quando governou o país. Pode achar que o bolsa-família foi um exagero, ou que foi tímido demais, que a política econômica foi equivocada, que não deveria priorizar o combate à fome, mas privatizar o que FHC não conseguiu, que houve excesso de republicanismo, que não deveria ter melhorado as condições para atuação da Polícia Federal, nem dado tanta liberdade ao Ministério Público, por exemplo. Tudo bem. Aceitável. Críticas de ordem política. Mas não pode negar as evidências, os dados oficiais, as estatísticas. O Brasil melhorou muito durante os oito anos de seu governo - e continuou melhorando com Dilma, até que a golpearam. Melhorou sobretudo sua imagem no cenário internacional. O Brasil passou a ser respeitado. Tínhamos um presidente que nos causava orgulho.

"Ah, mas era a velha política do 'rouba mas faz'", objetará você. Cara, você é cheio dos "ah mas", hein! Voltemos ao início: o que foi que o cara, esse "ladrão" da sua imaginação, roubou? Quando? Como? Onde? Cadê as provas?

"Ah, mas ele foi condenado e a sentença foi confirmada por duzentos e cinquenta e sete tribunais". Vou lhe explicar. Didaticamente.

Lula não foi condenado por ter "roubado" coisa alguma. Foi condenado por uma reforma que ele não pediu, não recebeu e jamais aceitou promessa de receber (são os três verbos do núcleo do tipo penal do crime de corrupção passiva; se quiser, depois eu lhe explico), num apartamento que nunca foi dele, no qual ele jamais pernoitou por uma noite sequer - nem ele, nem a esposa, nem qualquer dos filhos, nem amigos, parente algum, nem assessor, nem inquilino. Um apartamento que não era, nunca foi, não será e jamais seria dele (e com o sítio a história foi basicamente a mesma). Nem dele, nem de qualquer "laranja" que ele pudesse ter indicado. Um apartamento triplex, num prédio merreca de classe média, com 70m2 em cada pavimento, sendo que o superior é o "telhado" do edifício, onde há uma pequena banheira a que chamam de "piscina" e um singelo equipamento para churrasco. Só! Não vou entrar em detalhes técnicos a respeito das aberrações jurídicas cometidas pelo juiz corrupto que vendeu essa sentença em troca do cargo de ministro da justiça e promessa de galgar ao STF - sou profissional do direito há trinta anos, li o processo inteiro, sei o que digo e já me cansei de escrever a respeito.

Não tem roubo algum e me espanta que você acredite mesmo que Lula seja um corrupto se, tendo governado o país por oito anos - ou seja, tendo administrado orçamentos que somaram mais de dez trilhões de reais - ele, o "chefe da quadrilha", saísse do "maior caso de corrupção" das galáxias com duas reforminhas em propriedades que não foram e jamais seriam dele... Se essa sua "convicção" não for fanatismo antilulista, me explique o que é, então.

Bem, aí veio a pandemia. Chegou ao Brasil quando Lula estava na Europa. Ele voltou em 12 de março. Fechou-se com a namorada em seu apartamento, em São Bernardo. Está lá, de quarentena, cumprindo o isolamento social. Desde então, já concedeu - e fez! - dezenas de entrevistas. Em todas elas - rigorosamente em todas, sou testemunha - ele se solidarizou com os familiares dos mortos, expressou seus sentimentos e sua indignação com a falta de rumos de um país que, em plena pandemia, se dá ao luxo de não ter um ministro da saúde no comando das ações. Nem ministro, nem presidente.

Na somatória geral das entrevistas, Lula deve ter usado algumas dezenas de milhares de palavras de conforto, de consolo, de esperança, de carinho com as vítimas desse inimigo invisível e perigoso que é o Covid-19 - como se já não bastasse o "Bovid-17", o "bolsonarismo", esse fascismo à brasileira que tanto mal vem fazendo ao país desde antes da ascensão do próprio BolsoNero.

Em meio a essas dezenas de milhares de palavras - todas elas rigorosamente ignoradas pela mídia comercial que atende pelos nomes de TV Globo, GloboNews, outras emissoras e jornais -, eis que essa mídia velha, cruel e injusta, conseguiu caçar, como num gigantesco jogo de caça-palavras, duas palavrinhas, "ainda bem", empregadas por Lula ao dissertar sobre a importância do SUS e da presença do Estado neste trágico momento da pandemia, e fez delas um escândalo.

Num momento em que todas as pessoas que raciocinam neste país e no planeta Terra se questionam sobre o destino da Humanidade no período que se iniciará após a pandemia, se sairemos dela mais humanos, mais solidários, ou se tudo voltará ao canibalismo egoístico de antes, Lula pontuava sobre a importância do Estado para implementar políticas públicas que promovam a igualdade, a justiça social. Nesse contexto, o exemplo do SUS, fundamental para o atendimento universal da população. Do mais desafortunado ao bilionário, todos, brasileiros ou estrangeiros aqui residentes, têm direito de recorrer ao sistema único de saúde, que tem lá seus defeitos, que enfrenta dificuldades históricas, mas que é um exemplo para o mundo todo. "Ainda bem" que temos a oportunidade de enxergar a importância do SUS, da presença do Estado na vida do povo. Foi isso que Lula disse! Não "quis dizer", disse. Nem precisava, mas ele conseguiu dar mais uma demonstração de sua altivez, de sua condição de estadista, e pediu desculpas pelo escorregão que não cometeu.

Achar que Lula estaria enaltecendo a desgraça do povo é ignorar todo a história de vida dele, que desde 1978 se confunde com a vida de todos os brasileiros.

Aí vejo você, João, ou Joana, compartilhando uma "charge" em que num quadro BolsoNero aparece sobre uma pilha de cadáveres dizendo "e daí?" e, ao lado, outro, semelhante, em que Lula diz "ainda bem". Não dá, bicho.

As duas palavrinhas que queria lhe dizer são exatamente essas: "ainda bem".

Ainda bem, meu caro, minha cara, que você me deu a oportunidade de vislumbrar o fanático antilulista que se esconde por trás dessa sua carinha pretensamente inteligente. Cansei, não tenho mais "saco" para fanatismo como esse seu. Adeus.

(Luís Antônio Albiero, em São José dos Campos, 21 de maio de 2020).

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