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25/05/2025

O Inabalável Jota

 Jota não estava em seu gabinete quando o telefone tocou. A secretária atendeu e a notícia era grave: a mãe do poderoso chefão havia falecido. 

Sem pestanejar, Marta ligou para o celular do chefe. A ligação foi atendida por um dos seguranças. “Ele está no mar, andando de jet-ski”, respondeu Merci, um policial destacado para a atividade.

“É urgente”, insistiu Marta, passando os dedos por entre seus longos cabelos amendoados que lhe escorriam pelos ombros. Transmitiu a notícia em palavras atropeladas. “Vou ver o que posso fazer”, avisou o outro.

Merci pegou um jet-ski e foi ao encontro de Jota. Ao se aproximar, deu sinais para que parasse e o ouvisse, mas o chefe estava muito feliz com o passeio, nada poderia interrompê-lo. Merci gritava é urgente, sem que Jota o escutasse.

Demorou até que, enfim, Jota parou.

— Que foi, Paraíba? Que que ‘tá acontecendo? Morreu a mãe de alguém?

— Isso mesmo, senhor.

— Vai me dizer que morreu a mãe do Trump. 

— Não exatamente…

— Menos mal. Eu ficaria muito sentido se fosse a mãe do Trump. Qualquer outra, eu não teria o mesmo sentimento — disse, lançando uma risada engasgada, expondo os dentes cerrados, a meia boca esticada em direção às orelhas.

— Gosto muito do cara, ‘cê sabe — completou Jota.

Ambos retornaram com os jet-skis até se reunirem em chão firme.

— E então, morreu a mãe de quem? Do português da piada? Hahaha! Conhece a piada do português que veio para o Brasil? Não conhece? Vou contar, então. Ele deixou em Portugal um gato para ser cuidado pelo amigo Manoel. Hahaha. 

— Senhor… — tentou interromper Merci, sisudo.

— Calma, rapaz! Por que a pressa? Por acaso foi sua mãe que morreu? Se foi, pode ir embora, está liberado por hoje — disse, escarcalhando novamente. 

— Não, não foi...

Jota o interrompeu e prosseguiu:

— Então. O português veio pro Rio de Janeiro, ‘tava lá de boa curtindo uma praia, tomando uma caipirinha, mulherada em volta… Hahaha! De repente, toca o celular. Era Manoel. Joaquim! Teu gato morreu! Hahaha.

Jota enrijeceu a musculatura facial, travou o riso e alçou as sobrancelhas, à espera de uma reação do segurança, que não veio. Continuou: 

— O português desmaiou, foi levado pro hospital. Quando se recuperou, ligou pro compadre e deu-lhe uma bronca. Quase me matas, ó Menuele! 

Jota fez um movimento com o corpo como se mudasse de personagem, a mão à orelha, em concha. 

— Mas como eu deveria ter dado a notícia?, perguntou Manoel. Hahaha! 

Fez outro movimento com o corpo e mudou a mão de orelha:

— Ora, devias ter me preparado para a má notícia. Primeiro, tu me dizias, Joaquim, teu gato subiu no telhado. Um tempo depois, me avisavas que o gato caiu do telhado. Por fim, eu já com o espírito preparado, aí sim tu me contavas a fatalidade!

Jota olhou fixamente para Merci, esperando arrancar-lhe uma risada, uma expressão de surpresa, que de novo não se apresentou. Sem perder o ânimo, retomou a contação:

— Manoel então disse que havia compreendido e, tudo bem, aquilo não aconteceria mais, e Joaquim voltou à praia. ‘Tava lá tomando uma cervejinha, comendo um camarãozinho e coisa e tal, quando, de repente, toca o celular. De novo, era Manoel. Hahaha! 

Jota levou a mão mais uma vez ao ouvido:

— Ó, Joaquim! Tua mãe subiu no telhado! — e desabou em nova gargalhada.

Merci permaneceu impassível, confrangido. 

— Ô, Paraíba! Não achou graça? Ria, rapaz! Ô sujeito mal-humorado.

O segurança mal foi capaz de esboçar um sorriso contido. Já não sabia como dar a notícia. Sentiu-se tomado por um desejo mórbido de dizer senhor, quem subiu no telhado foi a sua mãe, mas o só pensar nessa possibilidade lhe causou o desconforto de um profundo remorso.

— Desembucha, rapaz! Fala aí, a mãe de quem morreu? Vai dizer que, por coincidência, foi a mãe do Joaquim? — e gargalhou com mais intensidade.

— Quase isso — deixou escapar Merci e se arrependeu imediatamente.

— Como assim, quase isso, oxente? — repetiu Jota, imitando-lhe o sotaque e debochando do auxiliar.

— Sua mãe, senhor. Sua mãe, infelizmente, ela… faleceu. Marta acabou de telefonar. Meus sentimentos.

O semblante de Jota alterou-se com vagar, do meio sorriso de dentes cerrados para uma fisionomia fechada, quase de surpresa. Lançou um olhar severo para Merci, desvencilhou-se da boia que ainda envolvia seu corpo e perguntou:

— Por que não me disse logo?

Merci preferiu não responder.

— Quando foi?

— Hoje. Talvez ontem, Marta não soube dizer. Ligaram há pouco do asilo.

Jota voltou para o hotel. Foi de helicóptero para a pequena cidade onde a mãe passara toda a vida. A aeronave pousou num descampado próximo do cemitério em que o corpo era velado. Tomaram o automóvel que já os esperava e rumaram para o velório.

— Vamos lá, Paraíba — disse Jota ao descer do veículo, ajeitando seus óculos escuros e alisando os cabelos. Merci fez o mesmo com os próprios óculos, deu batidas no terno, puxou-o para baixo a esticá-lo, ajeitou a gravata de listras verdes e pretas e seguiu o chefe.

O modesto edifício compunha-se de um amplo salão de entrada, uma pequena cozinha, dois banheiros, e se dividia em três câmaras desprovidas de janelas. Duas delas estavam vazias. Misturavam-se no ar aromas de café e chá de capim-limão. Jota caminhou até onde era velado o corpo da mãe. 

Merci e os outros dois seguranças mantiveram-se em seu entorno, o que despertava curiosidades e burburinhos entre os presentes. Poucas eram as pessoas no local. A falecida era bem avançada em anos, beirava o centenário; havia décadas que residia num asilo, onde o filho a visitara duas ou três vezes.

Perpedina, irmã caçula da defunta, observou o sobrinho caminhar com dificuldade, as pernas abertas como um montador de animais, o abdômen imenso, a cara amarrada que há vários anos acostumara-se a só ver pelo noticiário da TV e redes sociais. Acompanhou-o com o olhar desde que ele cruzou o portal de entrada até se posicionar ao lado do esquife, próximo da cabeça da genitora. Jota não chorou. A tia reparou quando ele, decerto em gesto de reverência, como se tirasse um chapéu da cabeça, retirou os óculos de sol e os segurou às costas. Notou quando ele fixou seus olhos no cadáver da mãe, sem que o tocasse. Nenhuma lágrima deixou escapar, nenhum fio de sangue avermelhou sua esclera. O cheiro das velas a queimar havia sobreposto os de café e capim-limão da entrada. 

Assim permaneceu Jota por cerca de meia hora, até que um homem alto, de meia idade, esguio e vesgo, metido num surrado terno preto de microfibra, a camisa branca amarelecida sobre a qual jazia uma gravata vermelha descorada pelo uso, pediu licença para colocar a tampa sobre o caixão. 

A irmã solicitou que antes pudesse fazer uma oração e assim lhe foi permitido. Ainda incomodada com a ausência de reação do sobrinho, Perpedina puxou três ave-marias e um pai-nosso. Notou que Jota não acompanhou a reza e não moveu um único músculo da face. 

— E levai as almas todas para o céu. Em nome do Pai, do Filho… — rezou Perpedina, acompanhada por quase ninguém. 

Terminada a encomendação do corpo feita de improviso, que mal durou dez minutos, o homem vesgo da funerária reaproximou-se e girou com firmeza um a um os parafusos dourados da urna mortuária. Certificou-se de que o serviço fora executado com perfeição, de modo a garantir a segurança necessária, recolheu as coroas de flores, uma delas ofertada pela própria agência funerária, a outra providenciada pela diligente Marta. Caminhou em direção à saída do prédio, diante do qual estava parado o veículo fúnebre. Abriu-lhe a porta traseira e deu sinal aos presentes de que já poderiam carregar o ataúde até ali. 

Embora fossem necessários seis carregadores, apenas cinco homens se apresentaram. Três eram Merci e seus colegas da segurança; os demais, um sobrinho mais velho do que Jota, com ar cansado, a quem o primo cumprimentara a distância, apenas por troca de olhares, e Pérez, um estrangeiro bastante idoso que residia no mesmo asilo da falecida. Viera a pé, sozinho, pois o asilo ficava a menos de dez quadras dali. Costumava dizer que o albergue onde vivia era um passo anterior ao cemitério. Não poderia faltar ao adeus derradeiro à amiga. 

Todos a postos, faltava um sexto braço forte e os olhares se voltaram para Jota, que se manteve impassível. Não havia outro homem no interior da câmara-ardente. Só quando tia Perpedina, expondo as dificuldades da idade avançada, se apresentou para carregar o caixão foi que ele, num ato semelhante ao de generosidade, sussurrou-lhe:

— Pode deixar, tia. Eu levo.

Caminharam uns poucos metros até o veículo, dentro do qual depositaram o caixão. O agente funerário fechou a porta traseira e conduziu lentamente o automóvel, acompanhado pelos presentes, que o seguiam a pé. 

O portão de entrada do cemitério ficava a uns cem metros do espaço destinado ao velório. Ao longo do trajeto, Jota perguntou ao segurança:

— Paraíba, que dia é hoje?

— Sexta-feira — respondeu Merci. 

— ‘Tô perguntando número, Paraíba. Que é sexta-feira eu sei. Sextou! — disse, contendo um riso inoportuno.

Merci respondeu que era 22.

— Olhe a placa do carro. Termina com 22. É um sinal.

O segurança não entendeu, tampouco perguntou a que sinal o chefe se referia. 

O veículo adentrou o cemitério, seguindo o tempo todo em velocidade que pudesse ser acompanhado pelos poucos que o seguiam, e parou a dez metros da sepultura.

O caixão foi baixado pelos funcionários do cemitério. Retiradas as cordas, eles cobriram a cova com placas de concreto, que vedaram com argamassa já preparada. Ninguém lançou flores sobre o ataúde. Em seguida, passaram a assentar alguns tijolos até vedar completamente o sepulcro. 

O agente funerário depositou as duas coroas sobre o jazigo. Seu olho direito insistia em olhar para o chão. Cumprimentou os que ali permaneciam e partiu. 

Só Perpedina chorava, com discrição. Jota ficou até que o último tijolo fosse assentado, sem dizer palavra. A tia o convidou para tomar um café em casa, mas ele recusou. Alegou falta de tempo, compromissos inadiáveis, sem contar que o café lhe provocava azia, do que resultava terrivel dor no estômago. Não se lembrou de perguntar à tia como tem passado. Ela o abraçou e se despediram.

Jota e os seguranças iniciaram o caminho de regresso. Os rapazes se distraíam lendo os epitáfios, maravilhados com a antiguidade de muitos dos jazigos. Algumas lápides registravam a chegada de imigrantes alemães e italianos à cidade no final do século XIX. Outras exibiam homenagens de filhos aos pais, de esposas aos maridos. Estátuas de anjo sobrepunham-se a sepulturas de caprichada construção em que se liam as datas de nascimento e morte de crianças, a maioria em tenra idade, ao lado dos nomes. Pérez vinha atrás, solitário em seu difícil caminhar.

— Você viu o número da sepultura, Paraíba? — indagou Jota, referindo-se ao sepulcro da mãe.

— Não, senhor.

— 22. Mais um sinal. 

Merci, de novo, nada disse. Não conhecera a mãe de Jota, mas trazia os olhos vermelhos e uma lágrima triste escorria-lhe pelas faces suadas, coradas pelo sol que se exibia pleno. Pensava na velha, na gelidez de seu rosto inerte, extinto; olhava para Pérez, cada vez mais distante, desaparecendo no declive, e refletia sobre o custo de uma amizade.

O automóvel os esperava à porta do cemitério. Jota sentou-se no banco ao lado do motorista e ordenou:

— Toca para uma casa lotérica.

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30/06/2023

Sorte o Sirva

“Sorte ele, seu juiz! Sorte ele, dotô!”, esgoelava meu amigo de Capivari, o Nivardo, gente dos Borba, caprichando no gostoso sotaque característico de cá dos lados de Piracicaba.

O Nivardo assim berrava em um dia em que esteve na vigília, em Curitiba, defronte o prédio da polícia federal. Fazia sol e uma revoada de marrecos cruzava os céus da cidade onde o então ex-presidente fora confinado pelo juiz que, em seu linguajar também peculiar, falava e ainda fala “conje”, “cupção” e “depedrar”, dentre inúmeros outros estranhos vocábulos de uma língua à qual um ministro designou como “morês”. “Muito semelhante ao português”, explicou o supremo malvado favorito.

Por mais que o Nivardo arrebentasse a própria goela e estourasse os tímpanos dos circunstantes, o fato é que o juiz ladrão não “sortava” o ex-presidente.

Água mole e berro caipira tanto batem que um dia chegam ao Supremo Tribunal Federal. Lá, finalmente, outro ministro, também paranaense, depois de tanto fazer ouvidos moucos ao advogado noivacolinense, eis que se mostrou todo ouvidos às súplicas do meu conterrâneo. E o preso político foi “sorto”. Graças, evidentemente, ao meu amigo, o Nivardo Borba e seus berros d’água.

O político, que da cela ouvia com alguma dificuldade os brados de “sorte, sorte” do Nivardo, tomou-os como uma bênção e se tornou, de fato e de direito, um homem de sorte. E bota sorte nisso. Tanta sorte que assim que foi “sorto” ganhou a eleição e conquistou seu triplex, seu terceiro mandato presidencial.

Mal tomou posse e já de cara teve de enfrentar uma tentativa de golpe de Estado. Conseguiu evitá-lo, segurando na unha a Democracia que escapava como touro bravo. Puro golpe. De sorte, claro.

No sexto mês de seu governo, por sorte o país já respirava aliviado. Por sorte, os preços começaram a baixar. Por sorte, o dólar iniciou um movimento de queda vertiginosa. Por sorte, o Congresso aprovou o arcabouço fiscal. Por sorte, tudo começou a dar certo, pondo fim e cabo aos seis anos de temeridades, destruição e azares bolsonarentos (toc, toc, toc na madeira, mangalô três vezes!!!).

Os jornais passaram então a registrar em editoriais e manchetes de primeira página que todos os avanços, todas as conquistas, eram pura sorte. A Globo News, o Merval e toda a mídia de cativeiro só falavam nos bons fados, nos bafejos benfazejos do destino que passou a nos sorrir.

A inflação em baixa, sorte. Os empregos e os salários em alta, sorte. Os descontos nos carros populares, sorte. A picanha e a cerveja de volta aos finais de semana, nada mais do que sorte.

Foi por sorte que o Brasil recuperou sua imagem e seu lugar de destaque na geopolítica internacional. Por sorte foram conquistados bilhões de dólares para socorrer a Amazônia.

Descobrimos que somos um povo de sorte, de muita sorte. Que, no caso, tem nome e sobrenome. Atende por Luiz Inácio Sorte da Silva. Temos a sorte de o termos vivo e forte na presidência da República, já pela terceira vez e a caminho da quarta.

Sorte maior, digo no entanto, a bem da justa justiça e da verdade verdadeira, é termos o Nivardo Borba, o caipira cá de Capivari, que tem tudo a ver com essa “sorte tuda”.

(Luís Antônio Albiero, de Capivari, SP, aos 30 de junho de 2023)


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