27/09/2025

O cabo, o soldado e um caça F-35

 (Minha niusléter de 25/09/2025)


Dentre as inesgotáveis jabuticabas que brotam por este Brasil adentro, nada há de mais inusitado do que a atuação de uma bancada “trumpista” em pleno Congresso Nacional brasileiro. O Brasil é certamente o único país de todo o universo que tem, no Parlamento, duas bancadas governistas, oponentes entre si: uma formada por aliados do governo do presidente Lula e outra, de aliados do governo de Donald Trump.

A bancada trumpista tem por líder o deputado federal carioca, eleito pelo estado de São Paulo, Eduardo Bolsonaro, aquele cujo pai, na presidência, chegou a cogitar para o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos, por conta de sua fluência num dialeto semelhante ao inglês e pela experiência em fritar hambúrgueres.

A ideia do pai parece que criou frutos tardios nas pretensões do filho, que há pouco mais de 120 dias se licenciou do cargo de deputado para atuar como embaixador de fato junto ao governo Trump. Mudou-se de mala, cuia e família para o grande país do Norte, onde mora numa confortável mansão às custas de PIX que lhe envia o generoso genitor. Eduardo retomou recentemente seu papel de líder da bancada “trumpista”, função que vem exercendo como “D.A.D.”, “deputado à distância”.

O governo de Jair, o pai, foi sabidamente um governo contra o Brasil, composto por ministérios bastante peculiares – outro pé de jabuticaba: ministérios contra a Saúde, contra a Educação, contra a Justiça, contra os Direitos Humanos, contra a Economia… Como o bom fruto não cai longe do pé, Eduardo Bolsonaro resolveu ser também um contraembaixador.

De fato, Dudu tem-se mostrado um exímio negociador. Em pouco tempo, já conseguiu do governo Trump um inédito tarifaço de 50% de taxação sobre as importações de produtos brasileiros, que gerou desemprego e inflação nos Estados Unidos, contribuição inestimável do nosso contraembaixador à autodestruição do império estadunidense desencadeada por seu próprio presidente.

O tarifaço acabou por se transformar num presentaço ao presidente Lula, que, a um ano do pleito em que disputará a reeleição, unificou a parte saudável do povo brasileiro em torno da bandeira da soberania nacional e, de quebra, escancarou de vez, a quem se recusar a fechar os olhos e a fazer ouvidos moucos, o quão nocivo é o bolsonarismo à nação brasileira.

Na esteira das sanções econômicas, vieram imposições políticas que explodiram como Tiu França no Supremo Tribunal Federal brasileiro. Tiu França foi o catarinense que, para demonstrar seu amor à pátria e ao ex-presidente, suicidou-se ao explodir uma bomba no pátio em frente ao STF. Já a bomba lançada por Trump teve melhor sorte e explodiu no interior da Corte, no colo do ministro Alexandre de Moraes, contra quem o governo estadunidense decidiu aplicar a lei Magnistsky.

A intenção, anunciada com pompa e glória pelo próprio Eduardo Bolsonaro e seu parceiro de surto quixotesco Paulo Sancho Pança Figueiredo como grande feito, era fazer com que o STF não condenasse papai Jair pela tentativa de golpe de estado que culminou na quebradeira de 8 de janeiro de 2023.

O feito internacional marcou uma evolução na performance de Eduardo Bolsonaro, que em 2017 chegou a dizer que para fechar o Supremo bastavam um jipe, um cabo e um soldado. Eis que ele convocou Donald Trump como cabo e o soldado Marco Rubio, ministro de Estado dos EUA. Em lugar do jipe, porém, Dudu Bananinha ameaça vir com um avião caça F-35. Um salto e tanto de qualidade, convenhamos.

Imagem: Lockheed Martin F-35 Lightning II. Imagem: Wikipediao


As ameaças proporcionaram a colheita de bom fruto na Primeira Turma do STF, responsável pelo julgamento da entidade Pai Jair. Por fruto, no caso, entenda-se a groselha, frutinha vermelha nativa dos Estados Unidos da qual o Brasil é o quarto maior exportador mundial. Foram quase quatorze horas de xarope de groselha servida pelo ministro Luiz Fux a seus colegas e a todos que tiveram saco (perdoem-me) para assistir ao seu longo, cansativo e inútil voto. Com bomba e com tudo, Pai Jair acabou condenado a 27 anos e três meses de prisão por diversos crimes.

O Brasil adota o regime presidencialista, mas o que não nos falta são reis. Temos um rei para tudo: o do futebol, o do baião, o da soja – e o meu vizinho de parede-meia em Capivari, o da cachaça (pausa para um merchã gratuito: a “Cachaça do Rei” é da boa, eu garanto). Fux se revelou o Rei da Groselha.

O ministro foi escalado pela ex-presidenta Dilma Rousseff em 2011 para integrar a seleção brasileira dos onze do STF. Entrou em campo com a disposição de quem mataria no peito os casos rumorosos pendentes na Corte. Passaram-se quatorze anos e ele resolveu que, finalmente, havia chegado a hora. Matou a bola no peito, fez sua jogada individual dentro das quatro linhas, mas foi logo desarmado e driblado pelos demais integrantes do próprio time.

A jornalista Mônica Bergamo chegou a dizer, semanas antes do julgamento, que Alexandre de Moraes estava isolado na Corte. A realidade mostrou que isolado estava Luiz Fux, e assim tem ficado cada vez mais. Até “búlin” (do inglês “bullying”, que significa… ah, você sabe!) ele sofreu dos colegas no dia seguinte. Confesso que nem me deu pena.

É hábito nas Cortes de justiça do país que, ao final dos votos, o presidente da sessão agradeça ao eminente colega prolator e lhe enalteça o trabalho, elogiando-o pelo “brilhante voto”. O cruel Cristiano Zanin, todavia, nada disse nesse sentido ao final da groselhada, mas bem que poderia ter dito: “agradeço-lhe, ministro, por voto tão Magnitsky”.


(Esta crônica integrará a coletânea “Quando a Constituição Respira”, organizada pela escritora Cleusa Slaviero, a ser lançada em livro em breve pela editora ComPactos)


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Imagem: Lockheed Martin F-35 Lightning II. Imagem: Wikipediao

25/08/2025

A folha em branco (#41)

Do Jardim da Casa Literária de Luís Antônio Albiero
ago 25, 2025

Estou com as mãos no teclado e nenhuma ideia na cabeça. Há uma folha virtual em branco aberta à minha frente e não sei sobre qual tecla darei o primeiro toque. O problema de sempre, a primeira letra, a primeira palavra, a frase de impacto com que devo iniciar meu texto.

Por onde começar?

De Glauber Rocha dizia-se que tinha sempre uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Cá para mim, não deveria ser difícil a ele sair por aí, filmando tudo o que lhe surgisse à frente, para só depois editar o filme, dar-lhe forma e contexto. O objeto colhido despertará a ideia, esteja ela adormecida ou nem se encontre em sua cabeça.

Não difere muito disso o ato de escrever. Minha câmera são meus olhos e, se eles me faltam, até porque estou parado aqui, diante do computador, o meu próprio pensamento serve-me de janela para a realidade que me envolve. Vasculho-o por todos os escaninhos mentais, rebobino a memória, examino-a cena a cena, arquivo por arquivo, cada objeto recolhido, e nada encontro de útil. Nada que seja original, o que me remete à canção em que Renato Russo se pergunta quais são as palavras que nunca são ditas.

O que não falta são pessoas soltando palavras, exsudando-as pelos poros, evacuando-as por todas as portas de saída. Há livros em profusão, há o rádio, a televisão, plataformas virtuais, redes sociais, blogues, vídeos, áudios, jornais, revistas, boletins e panfletos, uma infinidade de meios pelos quais milhões de vidas inteligentes expressam sua voz, expõem pensamentos diversos. Que diferença fará o que eu tenho a dizer, o que eu quero dizer? Que lugar no mundo terá meu texto, meu conto, meu romance?

Revisito os clássicos, os grandes autores, os que me inspiram e em cuja fonte busco saciar minha sede criadora, mas eles me assustam. Leio um parágrafo de Dostoievski e concluo que nunca escreverei como ele. Leio um conto de Machado e a mesma sensação me abate.

Abandono-os e decido ler novos autores. Recorro a um amigo, conterrâneo, João Mattos, que recentemente lançou um livro de contos (1). Deus do céu! O estilo é tão gracioso, elegante, encantador. Falta-me essa capacidade, que ele revela de sobejo, de transcender à realidade, à dureza concreta do real. Meu amigo, sem saber, sem querer, me enche de desânimo e me derruba. Vou a nocaute. Nunca escreverei como ele.

Sou resistente, porém. Resiliente, palavra da moda. Teimoso como um animal de carga que reluta a dar-se por vencido. O nocaute me derruba, é fato, mas não se consolida. Levanto-me com a convicção de que não preciso escrever como João. Nem como Machado, nem como Dostoievski.

Soberbo, talvez, ocorre-me que tampouco Machado ou Dostoievski, ou Shakespeare ou Drummond, nenhum deles escrevia como eu. Porque o meu jeito de escrever é só meu. Como o rio que corta a aldeia de Fernando Pessoa é maior, mais belo e mais livre do que o Tejo porque pertence a menos gente, também o manancial de palavras e ideias que escorre por meu ser também há de ter seu valor; afinal, só pertence a mim. E pouco me importa o valor que os outros darão ao que tenho necessidade de dizer.

Encho-me de coragem, desafio a folha em branco que me assombra e aperto, então, a primeira tecla.

(1) “Urdiduras”, João Bastos de Mattos, ed. Patuá.

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17/08/2025

A reinvenção da roda (#40)


Casa Literária de Luís Antônio Albiero

Biblioteca
CONTO
Luís Antônio Albiero
ago 17, 2025

A Coroa andava insatisfeita com o andar da carruagem. Queixavam-se os mais elevados membros da Corte dos constantes solavancos que experimentavam em seus percursos pelos pedregosos caminhos do reino.

A roda nos tempos das cavernas, segundo a imaginação dos criadores d’Os Flintstones, o clássico dos desenhos animados.

O desconforto de estar no interior de uma carruagem durante horas era mesmo insuportável. O próprio rei irritava-se com os banhos de poeira que costumava tomar a cada visita aos arrabaldes da capital e aos rincões do país. Abespinhavam-no sobretudo as derrapagens comuns nos trechos de terra molhada, em que as rodas pareciam deliberar por interromper a viagem.

A insuportabilidade chegou a tal ponto que Sua Alteza tomou uma decisão drástica, que vinha protelando desde priscas eras. Era chegada a hora de convocar uma assembleia nacional para decidir um novo formato para a roda.

Convocaram-se todos os ministros, subministros, governadores das províncias e seus deputados e desembargadores, alcaides, edis, juízes de paz e de fora das mais distantes aldeias. Foi uma convulsão nacional. Milhares de carruagens rodaram de todas as partes do país com destino à capital, algumas por dias e noites que pareciam intermináveis. Motejava-se que tanto pó descolado do chão faria tossir o sol e a lua.

Foram chamados também todos os integrantes da corte, dos condes aos barões, bem assim os plebeus que, por sua magnanimidade ou, quase sempre, por significativa demonstração de subserviência a Sua Majestade, foram honrados com títulos outorgados pela Coroa, os cavaleiros, os coronéis e os comendadores de todas as plagas.

De longe, era a convenção mais numerosa e, por consequência, de maior importância de toda a história do reino, quiçá de toda a humanidade.

Rodaram-se circulares em que se imprimiram as milhares de propostas, que foram distribuídas aos convencionais da roda, assim designados pelos historiadores e cientistas políticos patrícios. Todos eles, instalados em acomodações precárias, porque a capital, embora capital, era modesta em face de tão expressiva multidão, tiveram de ler e examinar cada novo formato proposto para a roda.

Encetaram-se as mais diversas teorias, da circularidade do quadrado à quadratura do círculo. E em círculos rodava a imaginação dos convencionais, que nada original conseguiam produzir. A roda continuava orbicular e achatada.

Testaram-se novos eixos, inventaram-se amortecedores, reforçaram-se as porcas e os parafusos, mas nada dava conta. Os solavancos continuavam, as estradas seguiam cheias de pedras e buracos, a chuva persistia em molhá-las e elas, com a bonança, insistiam em produzir poeira que o movimento das rodas elevava e o vento se incumbia de espalhar.

Gastaram-se milhões, depois bilhões, quase se chegou ao trilhão de dinheiros do erário real, que por muito pouco não foi à bancarrota, em gastos com a estadia dos convencionais, em projetos e testes, e os resultados foram nulos. A roda era persistente em sua circularidade e estreiteza e em produzir chacoalhões.

Nada do que era transportado pelas carruagens resistia aos trancos e barrancos, tudo que não estivesse perfeitamente acomodado tombava ao piso do veículo ou ao chão da estrada. Malas e objetos preciosos chegaram a cair de cima das diligências, o que só fora percebido ao final da viagem. Houve mesmo quem propusesse revogar a lei da gravidade, o que restou aprovado, certo que por apertada maioria simples, e ainda assim os resultados continuaram exatamente os mesmos.

Do mais longínquo rincão do reino viera o Barão de Rodávia, um homem simplório de seus setenta e tantos anos que passara a vida fabricando rodas para as carruagens de sua região, enriquecera e comprara o título de nobreza. Partiu dele a sugestão de refazê-las como se jamais houvessem existido. A ideia era removimentar a roda da História a partir do zero.

O barão era um exímio artesão das rodas, não apenas na arte do ofício como também no conhecimento da história do objeto que produzia. E foi por sua experiência que ele sugeriu que, antes de prosseguirem os trabalhos dos convencionais, fossem suspensos os estéreis discursos e se nomeasse um peticomitê (petit-comité, no original francês) que se encarregaria de produzir uma roda de madeira maciça, como assim fora feito havia quase seis mil anos em Ur, na Mesopotâmia.

Passada a primeira semana, a obra foi apresentada pelo peticomitê ao conjunto dos convencionais. Posta à prova, percebeu-se que a roda de madeira maciça pesava muito e o custo-benefício não a recomendava, em especial porque os balanços das carruagens persistiam.

Partiu-se então para o novo projeto, construir uma roda com raios, o que a tornaria mais leve do que a de madeira maciça. Assim houvera sido na Europa, Ásia Menor e China, simultaneamente, há dois mil anos, nos exatos tempos em que o filho de Deus caminhara, ele mesmo, com seus próprios pés, pelo plano terreno. Foi o que disse o Barão de Rodávia, para quem a contemporaneidade com figura histórica tão ilustre e dotada de especial santidade haveria de trazer resultados milagrosos à roda, mas assim não se deu. Os raios se rompiam com recorrência quando expostos à pedregosidade das estradas do reino.

O Barão de Rodávia lembrou-se então de que os celtas, na Europa Ocidental, mil anos depois, passaram a cobrir com uma capa de metal as rodas de suas carruagens, o que teria aumentado sua resistência e durabilidade.

De fato, os convencionais puderam constatar que assim se deu com as rodas de suas carruagens, mas, testadas nas estradas do reino, as sacudidas, o poeirão, o barreiro, as quedas dos objetos, tudo continuava exatamente como dantes.

Coronel Argemiro de Nigromante, que nos primórdios de sua vida útil fora carroceiro, contemplado com o coronelato por ter combatido as forças populares que se insurgiram contra a Coroa, chegou a vaticinar que dia haveria em que as rodas passariam a ser feitas com metal e recobertas com algum produto a um tempo firme e macio. Lamentou, entrementes, que as técnicas até então conhecidas e desenvolvidas em seu tempo ainda não permitiam tais regalias.

Foi então que Rodário Pedroso, o Marquês de Poeiral, apregoou que, por mais que se alterasse o formato das rodas e se aprimorasse a qualidade dos amortecedores, enquanto as estradas continuassem pedrentas e esburacadas e por todo o tempo em que prevalecesse a lei da gravidade, a chuva molhasse a terra, o sol insistisse em secá-la e o vento continuasse a cometer a maldade de espalhar a poeira, de nada adiantariam os avanços técnicos que as aperfeiçoassem.

Tampouco haveria modificação do estado de coisas enquanto as carruagens fossem puxadas por tração animal e conduzidas por força humana.

E prosseguiu profetizando o marquês, dizendo que quando a terra das estradas fosse, enfim, revestida por material que reduzisse o atrito, o animal que puxa a carruagem e o que a conduz seriam estimulados a imprimir-lhe velocidade cada vez maior, de sorte que os solavancos seguiriam ocorrentes, agravados por acidentes danosos, por vezes fatais.

Sentenciou o visionário que a insatisfação humana é infinita e, por mais que se aprimorem as rodas e se aplainem as estradas, nada mudará enquanto for o mesmo o caráter de quem conduz sua movimentação e de quem vai dentro da carruagem.

O Barão de Rodávia, decano dos convencionais, propôs então que se decretasse o fim da roda. Afinal, lembrou o artesão das rodas e experto em sua história, mesmo depois do advento da agricultura e da cerâmica a humanidade viveu três milênios sem conhecer o artefato.

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28/06/2025

Entrevista sobre meu livro (#36)

Estou me preparando para o lançamento do meu primeiro livro impresso, "O Onomaturgo e Outras Histórias". Será no próximo dia 19 de julho — daqui a três semanas, portanto —, em Capivari, a mais importante cidade do interior de São Paulo (ao lado de Rafard, claro). São treze contos de variadas inspirações.

Cartão promocional do lançamento do meu livro, 19 de julho, na Casa Rosa, em Capivari, SP


Como parte da promoção do evento, acabei convidado pelo famoso jornal Nyor’Quetais, dos poucos ainda impressos que resistem à modernidade, para conceder uma entrevista. Claro que fiquei nervoso — já estava por demais ansioso —, mas topei. “Faz parte”, apeguei-me ao filósofo contemporâneo. O repórter acaba de chegar e vou atendê-lo à porta. Acompanhe.

— Olá, Albiero! — ele me cumprimenta como se me conhecesse desde sempre.

— Olá — respondo, ressabiado.

O repórter é jovem, deve ter menos de vinte anos. Magricela e de bochechas realçadas, óculos enormes, dentes proeminentes e desencontrados, cabelos pretos engruvinhados, olhos azuis pendendo para o verde. Lembra muito alguém que conheci na minha juventude, nos tempos em que eu mesmo trabalhava no jornal de minha cidade.

— Entre, por favor. Sente-se. Aceita um cafezinho?

— Agradeço, mas será breve. Tenho que fechar a matéria ainda hoje.

O jornalista mal se senta e logo se anima a fazer a primeira pergunta. Eu o interrompo:

— A propósito, e com sua licença, o seu nome é…

— Eumesmo.

— Eumesmo? Muito prazer. Nome interessante. Prossiga.

— O prazer é todo meu. Desculpe este meu jeito atropelado… Meu nome é a junção dos nomes dos meus pais, Eudice e Mimesmo.

— Ah! Mais interessante ainda…

— Albiero, sabemos que você escreve crônicas políticas. Será um livro de crônicas?

Penso que Eumesmo não me conhece.

— É verdade que escrevo crônicas, mas não apenas. Quem me acompanha pelo Facebook e Substack sabe. Escrevo crônicas, contos, poemas, até um romance ando me arriscando a escrever. Mas não, não é um livro de crônicas.

Luciana traz o café e cumprimenta a visita. Servimo-nos. Eumesmo agradece a ela, que se retira dizendo que é para nos deixar à vontade.

— É um livro de contos — complemento.

Eumesmo me lança um olhar desconfiado. Finjo não ter percebido. Devolvo-lhe um olhar interrogativo, tipo “e então?”, como convidando-o a seguir em frente.

— E de que trata o conto?

Não, não é possível. O glorioso NQ me envia um repórter com esse grau de despreparo, penso, indignado. E explico:

— Não é um conto. São treze contos.

— Treze? É sobre política?

Mal acredito na observação, menos ainda na pergunta. Sorrio e prossigo.

— Não, meu caro. Treze é, e de fato é mesmo, o meu número de sorte. Aliás, é em essência o número da sorte. Mas foi mera coincidência, inspirado em “A dama do cachorrinho e outras histórias”, de Anton Tchekhov, formado também por treze contos. O livro não é político, não trata de política partidária. É pura criação literária.

— Ótimo. E de que trata o livro? Os contos, os treze contos.

— Vários temas — respondo, deixando de propósito um vácuo perturbador.

— Vários? Não lhe parece que “vários” é muita coisa? — indaga Eumesmo.

— Sim.

O silêncio agora dura uns trinta segundos, Eumesmo olhando para mim, eu mirando Eumesmo.

— Bom, mas cite-me alguns dos temas, por favor.

— Claro, meu querido. Estou apenas descontraindo. Vejo que você está apressado, um tanto nervoso. É sua primeira entrevista?

— Sim… Na verdade, é um “frila”, o primeiro que me encomendaram…

A confissão de Eumesmo me deixa mais à vontade. O jovem repórter não deve ter percebido, mas eu estou mais nervoso do que ele. É minha primeira entrevista sobre o livro e temo que possa ser a única. Primeira e última, como dizia minha mãe quando a irritávamos nas vezes em que ela nos levava a um passeio novo, como na primeira ida ao circo, ou a fazer compras na Treze de Maio (treze!), em Campinas. “Primeira e última vez que eu trago vocês”, ela dizia, enfezada. A aproximação do lançamento, o temor de que ninguém compareça ao evento, o juízo que os outros farão do livro, se haverá venda ou se vai ficar encalhado na editora… tudo isso me deixa perturbado.

— Como é que o senhor elabora sua obra? Seus contos são relatos da sua vida real, são pura fantasia, como é que é essa coisa de escrever ficção?

Sinto-me uma tralha, chamado de senhor.

— Boa pergunta! — digo eu a Eumesmo. — Só não me chame mais de senhor. Eu costumo devolver na mesma moeda, senhor Eumesmo.

— Ah, o senhor me perdoe. É respeito… Você sabe.

— Entendo. Muitas vezes pensei em tingir estes meus cabelos brancos, mas são eles que dão a garantia da minha maturidade a quem vê esta minha carinha de dezoito.

Eumesmo ri. Respondo:

— Algumas histórias têm um pé na realidade, outras são fantasia pura. O conto que abre o livro, “A primeira pescaria”, por exemplo, é uma história quase cem por cento real. Aconteceu comigo, de fato. Foi logo na minha primeira pescaria, a que fui levado por meus tios. Embora no conto eu chame apenas um de “tio”, na história real os quatro eram meus tios, dois de sangue, irmãos de minha mãe, e dois agregados, cunhados dela e deles. O conto resume toda uma vida de opressão que vivi enquanto estive sob os cuidados desse meu tio. Desde crianças, eu e minha irmã, assim como minha mãe, trabalhamos no bar desse tio, que era alcoólatra. Imagine, um alcoólatra dono de um bar. Eu tinha quatro anos e meio quando morreu meu pai. Minha mãe, viúva e com dois filhos pequenos, resolveu mudar-se de Rafard, onde morávamos, para Capivari, junto aos pais dela. Contíguo à casa de meus avós havia um bar, explorado por esse meu tio, que gostava de pescar, como os demais. Cresci sob o jugo dele.

— Arrã. Acho que entendi. É uma autobiografia, então.

— Não! É uma história que criei na qual introduzi elementos autobiográficos. Quando você o ler, poderá observar que há elementos reais e há pura ficção, como a cena final.

— Unrum…

— A segunda história também tem um pé em fatos verdadeiros. Esse mesmo tio havia sido noivo de uma moça da cidade, mas teve de desfazer o noivado por ordem do pai dela, influenciado por uma fofoca de meu avô, por vingança. Minha mãe contava que foi por isso que ele se tornou alcoólatra e eu vi nesse fato um bom mote para um conto. Veja lá. Noventa por cento dele, porém, são pura ficção.

— Entendi.

— Há uma entrevista, como esta que estamos fazendo, em que um repórter parecido com você, Eumesmo, entrevista uma celebridade atemporal. É um conto narrado em primeira pessoa, cheio de “ovos de páscoa”, os “easter eggs”, como dizem em língua inglesa, que revelam quem é a moça entrevistada.

— Interessante.

— Há outros dois contos em que os personagens discutem sobre Deus. Num deles, um casal de ateus enfrenta a doença rara e grave do único filho, alternando sentimentos sobre um ser sobrenatural que nos rege. No outro, um rapaz que não acredita em Deus, mas admite a possibilidade de sua existência, tem um encontro com Ele. E há um em que a personagem principal é uma mulher idosa, presa a uma cadeira de rodas, que se vê posta por horas sem fim diante de uma imensa parede branca de sua casa, sem poder mover a cabeça, o que a leva a refletir sobre sua vida. Ela acaba atacada por projeções de sua mente, seus fantasmas, torturada por seus remorsos, ou pela falta de remorso, não sei… É um fim triste.

— Não sabe? Mas se você criou a história, você sabe tudo sobre os personagens, a trama…

— Nem sempre, meu caro Eumesmo. Nem sempre. Quase nunca, arrisco-me a dizer-lhe. Há um outro conto em meu livro, que reputo dos mais interessantes, em que uma escritora se vê às voltas com um dilema, como encerrar o romance que ela vem escrevendo. Ao mesmo tempo, essa minha personagem escritora mantém um relacionamento com um rapaz, um fã de seus livros que se apaixona por uma das personagens e tenta influenciar a autora sobre o que fazer com sua obra.

— E esse título estranho, Onomaturgo… o que é isso?

— Eis o mistério da fé… É o mistério do livro, e do próprio conto. Você quer que eu dê “estrago”?

— Dar estrago? Como assim?

— Em inglês, seria “spoiller”. Prefiro estrago.

— Ah!

Eumesmo olha para o celular, como se conferisse alguma coisa.

— Bom, acho que está bom. Vou indo.

— Espere. Tem outros contos dos quais não falei ainda.

— Ó, me perdoe — diz, já com meio corpo acima do sofá. Ele volta a acomodar-se.

— Sem problema. Há um conto, “Fogo que Arde”, que noventa por cento dele também são frutos da minha imaginação, mas com um pé num fato ocorrido na vizinhança do bar de meu tio, o “bar do Tota” que, no conto, “vira bar da Tata”, no bairro Jardim América, em Capivari, o mundialmente famoso bairro “Buraco da Onça”. Mas esse fato real é justamente o desfecho do conto, de modo que não posso “dar estrago”.

— Compreendo. Algo mais?

— Sim, sim. Há um conto, fruto de um exercício que me propuseram num curso. O desafio era produzir uma história a partir de uma foto. E a foto que escolhi foi a de um rapaz observando sua própria imagem refletida numa poça d’água num chão rachado, com dois pedaços de pau ao seu lado formando uma cruz. No primeiro olhar, julguei, pelo espaço, que se tratasse do Pelourinho, em Salvador, Bahia, e imediatamente me veio a história à mente. Segundos depois percebi que não era o lugar que pensei, pois se tratava do chão rachado do sertão nordestino, castigado pela seca, mas a história já veio pronta em minha mente e eu a desenvolvi tal qual ao meu primeiro olhar. A imagem me lembrou a mitologia grega e nela me inspirei. Abrasileirei e enegreci o mito. E espero que você e os leitores compreendam. Não será difícil.

— Ótimo. Podemos encerrar?

— Calma, rapaz! Lu! — chamei por minha esposa. — Traga mais um café, por favor!

Ela traz e Eumesmo se serve. Prossigo.

— O conto derradeiro fala da desigualdade que assola o Brasil desde que os p’rtugueses cá ap’rtaram — digo, forçando o sotaque. — Em “Os dois Josés”, falo do abismo que separa o luxuoso Residencial Ventura da favela Vila Baldo, um ao lado da outra, quase que o edifício sobre a favela, narrado a partir do ponto de vista de um vizinho que passa horas a contemplá-los da varanda do prédio de classe média em que reside. Nele, faço conexões com fatos bem recentes da história do nosso país que demarcam a separação real que existe entre os dois Brasis e o ponto comum em que ambos se tocam, que não raro é a tragédia.

Eumesmo olha fixo para mim, como se assombrado com minha imagem.

— Acabamos? — pergunta.

— Ah, ainda faltou mencionar outros dois. Num deles, falo da pandemia, das divergências que se afloraram nesse triste período da história da humanidade, da luta que se travou entre a ciência e o negacionismo. O final é um tanto inverossímil, reconheço, considerando o temperamento e a agressividade sem limites dos negacionistas, que exigia solução inversa à que acabei dando, mas aí prevaleceu o fato de que eu sou o deus das histórias que crio, de modo que o desfecho dessa história é meu.

Sorvo mais um tanto de café, para dar fôlego à prosa, e continuo.

— E há um em que um desembargador se vê premiado como o “juiz do ano”, conferido pela associação nacional dos magistrados brasileiros. Sem saber a razão da premiação, ele revolve suas memórias tentando encontrar um fato relevante de sua trajetória como julgador que justifique a comenda. Acaba indo à sua infância. Esse fato ao qual ele chega, que está na parte final do conto, é totalmente inspirado em um episódio da minha própria infância.

— Ah, você é juiz?

— Não, não, meu caro. Sou apenas um modesto procurador municipal. Nas horas vagas, sou achador. Acho muita coisa, desde as coisas perdidas dentro de casa até o que acho sobre os mais diversos acontecimentos do universo.

Eumesmo dá um risinho forçado, sem graça. Temo pelo juízo que esteja fazendo de mim.

— De todo modo, o livro gira muito em torno de você mesmo. É isso?

— Não. Ou melhor, sim e não, Eumesmo. Toda obra ficcional contém, por óbvio, uma carga muito forte da experiência vivenciada por cada autor. Não tem como não ser assim. Ainda que você crie um romance ambientado em Marte, com seres absolutamente diferenciados dos humanos, você necessariamente introduzirá elementos da sua história de vida.

— Pra finalizar, que mensagem você deixa para os jovens que estão começando agora a carreira literária?

— Nenhuma. Acumulo atualmente sessenta e um anos de juventude, de modo que eu sou um deles. Estou aprendendo também, nada tenho a ensinar.

Eumesmo, desconcertado, me pergunta:

— Algo mais?

— Só dizer que meu livro é uma celebração à palavra, à nossa menosprezada língua portuguesa. Um amigo muito querido, que o leu como leitor beta, ou alfa, nunca sei, aquele amigo que lê antes de os originais serem enviados a alguma editora, fez a observação de que uso algumas palavras “difíceis” nos contos, palavras já em desuso, o que decerto haveria de dificultar a compreensão dos leitores contemporâneos, especialmente dos mais jovens. Eu disse a ele que era proposital. Temo parecer pedante, mas ainda assim insisto. Precisamos, ao menos os que se dedicam à literatura, homenagear constantemente nossa matéria prima, que é a nossa língua, desenvolvida por nossa gente ao longo de séculos e séculos. E nossa língua portuguesa é muito, muito bela! Inculta e bela. Quando leio Machado, também não compreendo muitas das palavras que ele utiliza, pois ele as escreveu há mais de um século, mas, graças a todas as facilidades que a tecnologia hoje nos proporciona, é simples, basta digitar algumas teclas e consultar o oráculo do século XXI, o doutor “Gugo”, os dicionários virtuais.

Eumesmo toma o último gole, desajeitado, e se levanta com pressa maior do que a que o trouxe. Despedimo-nos.

Sujeito esquisito esse Eumesmo.
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22/06/2025

Petricor

IMPORTANTE: Prezada leitora, prezado leitor. Preciso muito saber da sua opinião sobre este conto, sobretudo quanto à temática e à forma como é tratada. Se puder me dar retorno, desde já lhe sou grato. Se não for possível deixar seu comentário ao final desta publicação, na página “Casa Literária“, por qualquer restrição da plataforma Substack, peço-lhe que o envie pelo e-mail laalbiero@yahoo.com.br ou comente na postagem replicada no meu Facebook ou blogue.


Houve tempo em que o caminho da roça era um verdadeiro banho de poeira vermelha. Agora, com o asfalto, o pó incomoda apenas no curto trecho entre o carreador e a estrada, suficiente, ainda assim, para sujar tanto quanto antes. A terra impregna na roupa dos trabalhadores de um modo que não tem como tirar. Os cortadores de cana-de-açúcar se aglutinam sobre a carroceria do caminhão, em que se adaptaram algumas tábuas para servir de bancos, cobertos de lona.

A viagem da volta após o término da extenuante jornada de trabalho é marcada por odores de homens, mulheres e umas poucas crianças, amontoados como animais, suados e exauridos por quase dez horas ininterruptas sob a nudez do sol. Ninguém, porém, se incomoda com o mau cheiro, acostumados que estão a respirar a catinga uns dos outros.

O caminhão parece que vem tropeçando de tão velho. Frequenta oficinas mecânicas como um idoso doente a um hospital – tantas vezes lhe diagnosticaram a morte, à qual resiste, teimoso como a gente que carrega em seu dorso. 

O melhor da jornada de trabalho é o caminho da volta, diz Ana de Chico, que se arrisca a cantarolar. Os demais vaiam e riem. Uns contam piadas, outros tratam de banalidades domésticas. Os problemas de cada um contam pouco nessa hora. A maioria troca impressões sobre o trabalho. 

O vozerio forma um mosaico oral de sotaques variados. Durval, baiano, discute com o velho Ticão, paranaense de carapinha branca, quem teria cortado maior quantidade de cana-de-açúcar no dia. O nordestino não concorda com Ticão, que proclama que o campeão teria sido o mineiro Isaías. Jeremias, negro da terra, diz que concorda, caprichando no “r” retroflexo característico do interior paulista.

As margens da pista são ambas inteiramente plantadas de cana-de-açúcar. Isaías sente o cheiro de terra, molhada pelo breve chuvisco que caíra há pouco; agrada-lhe a fragrância adocicada. Ele joga o toco do cigarro que guardara do breve descanso pós-almoço e aspira com força o cheiro que, de tão doce, parece emanar dos pés de cana, como se houvesse um deus das matas de cujas veias escorresse uma seiva que banhasse o solo, espargindo o perfume que se sobrepõe ao de suor dos trabalhadores.

Olha para Olinda, sua companheira, parda de quase trinta. Ela usa um chapéu de aba larga, como todas as outras mulheres do grupo. Também como as demais, traz um lenço debaixo do chapéu que lhe esconde os cabelos rijos de não lavar, ou de só os lavar uma vez por semana.

Nas casinholas onde moram não há água encanada, nem energia elétrica. Ajeitam-se com velas e lamparinas e buscam em baldes a água que lhes fornece dona Luzia, mãe do turmeiro Gumercindo, o dono do caminhão e daquilo a que chamam de casa, pela qual pagam aluguel que vem descontado do ordenado. A paga pelo labor vem tão repleta de despesas pelo pouco que lhes abastece o patrão que quase nada lhes sobra em espécie.

No retorno, os trabalhadores são deixados perto de onde moram. A maioria desce no ponto final, defronte um boteco vizinho à casa do patrão, onde alguns dos homens adentram. Isaías é um deles.

Olinda pede para que não demore, que traga um quilo de feijão, pão e salaminho para o jantar. Leva consigo os apetrechos do marido, o podão, a garrafa de água, a de café e a marmita de alumínio vazia, acondicionados num grande saco de lona. 

O boteco é pequeno, mal comporta o grupelho de trabalhadores. A luz é insuficiente. Do rádio a válvula, exposto numa das prateleiras ao lado dos maços de cigarro, ouve-se o noticiário d’A Voz do Brasil.

Quase dez da noite, já são quatro as garrafas de cachaça vazias sobre o balcão. A porção de mortadela e azeitonas há muito deixara de existir. Pendendo de bêbado, Isaías tem o rosto moreno brilhando de suor. Diz coisas desconcertadas. Volta-se para Ticão, aponta-lhe o dedo como se empunhasse uma arma. Solta palavrões, balbucia o nome de Olinda e coisas que ninguém compreende, nem se esforça para entender. E tomba.

Ticão, que mal se segura em pé, tenta levantá-lo. A muito custo, ele e Chico conseguem levá-lo até a casa. Olinda o recebe aos gritos e palavrões, esquecendo-se de que as crianças dormem. Isaías não revida. Cambaleante, ruma à cama, que fica bem perto da porta. Desaba e ronca. As crianças não chegam a acordar, acostumadas com gritos e a dormir famintas.

Na manhã seguinte, domingo, os meninos já longe de casa, Isaías e Olinda conversam ainda no leito. Do quintal, vem um cheiro de estrume. Uma galinha passeia com a ninhada pela casa, sobe na mesa..

Foto: Roberto Faria, via David Arioch - Jornalismo Cultural

 

Isaías olha para a mulher, abre um sorriso e começa a beijar-lhe o rosto, voraz feito lobo sobre a carniça. Morde-lhe as orelhas, puxa-lhe os cabelos duros como esponja de alumínio. Isaías procura, mas não encontra em Olinda o aroma terroso, a fresca sensação do orvalho matinal.

As mãos grossas de Isaías envolvem, firmes, os peitos já não tão rijos de Olinda, que responde com beijos no rosto do amante. Ela evita a região da imensa cicatriz da face direita do parceiro, resultado de antiga briga de bar.

As pernas magras de Olinda não impedem que delas Isaías se delicie, que lhe corra a língua desde o tornozelo. Ele morde as panturrilhas, as coxas, as nádegas. Gemem um e outro. Ameaça beijar o sexo da mulher, mas o forte odor o repele. Volta os lábios para os seios e segue beijando.

Ambos ofegam. Olinda escorrega os dedos grossos do trabalho duro sobre a carcaça do parceiro. Desce as mãos às coxas, toca-lhe o sexo.

— Merda! Desse jeito não vai dar! — grita e se desgruda do corpo do homem.

— A culpa é sua, sua fedorenta! Porca, filha de uma égua!

Isaías levanta-se ligeiro, envergonhado, o brio ferido. A galinha e os pintinhos correm, em pânico. Enquanto se veste, ele não poupa ofensas à mulher:

— Onde é que eu ‘tava com a cabeça quando inventei de juntar os trapos com uma mulher que fede a urina e alho, e com esse bafo de jiboia!? Não tem homem que consiga.

Soluçando, Olinda procura defender-se:

— Até treis meis atrás, ‘tava tudo bem. Agora a culpa é minha? Seu bêbado, sem vergonha. Seu frouxo!

Isaías dá um pontapé no rosto de Olinda que a faz sangrar. Sem forças para revidar, ela se debruça sobre o travesseiro, tinge-o de sangue, encharca-o de lágrimas. Seu homem sai sem destino. 

Ele chega nos fundos de um clube de grã-finos. Sem ser percebido, escala o muro e se senta sobre ele. De cima, contempla a beleza do lugar e sua gente chique. Gente bonita, alegre, tão distante de sua realidade de boia-fria. Gente sustentada pelo meu trabalho, pensa.

Fixa os olhos na piscina do clube. Detém-se a observar as meninas, suas nádegas perfeitas, as coxas volumosas, os peitos firmes querendo saltar dos biquínis. Procura esquecer Olinda, feia, tão nova e já envelhecida, sem qualquer graça.

Um rapaz conversa à beira da piscina com uma bela morena, de biquíni tão pequeno que parece nua. Lembra sua Olinda, bem mais nova. Sentada na cadeira, as pernas abertas, óculos de sol, ela expõe o ventre na direção dos olhos de Isaías, que imagina ver-lhe os pelos do púbis e já não enxerga as peças do maiô. Ele deseja as coxas bronzeadas que vê.

A moça levanta-se a convite das amigas. Vão jogar voleibol. À medida em que pula, seus seios balançam com graça e todas as suas delicadas formas serpenteiam e se acentuam. Isaías pensa em Olinda, dez anos atrás, como era linda, como eram apaixonados.

Num lance exagerado, a bola, caprichosa, ricocheteia numa pedra e se acomoda próximo ao muro onde Isaías está, atrás dos vestiários, de forma que nem da piscina, nem da quadra de vôlei se pode ver. A garota que o encantara vem buscá-la.

Da grama há pouco regada provém o cheiro de terra molhada. A garota abaixa-se para pegar a bola e não vê nem percebe Isaías aproximar-se por trás. Não tem tempo de gritar. Isaías a agarra, tapa-lhe a boca com as suas mãos enormes e calosas, tira-lhe o quase nada que veste. Ela desmaia, não tem como resistir. Ele aprecia seu corpo nu, inerte, indefeso, uma deusa em seus braços.

Enlevado pelo frescor da menina, ele se abaixa para aspirar de perto e melhor os odores de sua intimidade. Isaías sente-se levitar com o cheiro, doce como a cana, que se confunde com o da água caída sobre o solo gramado e com o da seiva vertida do ventre da deusa, a escorrer pelas pedras e plantas, da deusa domada, toda nua, toda sua, dormente em seus braços. Ele morde as orelhas com cuidadosa voracidade, depois o pescoço, as coxas, as nádegas, belas como um par de luas cheias.

Tudo gira no entorno de Isaías, que rola com a garota, ainda inconsciente, sobre a relva da qual provém o olor que se mescla com o cheiro de ventre de menina, perfume de mulher em desabrocho que o inebria, de Olinda rejuvenescida, o orvalho da manhã que há pouco buscava na companheira.

Isaías deita-a sobre o gramado para tirar sua própria camisa. Olha desapressado para a bela mulher que tem diante de si e nela reconhece a sacralidade de uma deusa. Adivinha-lhe a virgindade menina e a traz de novo junto ao próprio peito, agora nu. Isaías a abraça com intensidade, com força tal que, súbito, ele decide converter em brutal ternura, como se agora a quisesse proteger, como se defendesse uma filha do monstro que a ataca, como se lutasse para salvá-la de si mesmo.

A demora da moça preocupa as amigas, que saem a buscá-la. O grito doloroso e prolongado da primeira que vê a cena acompanha Isaías até atrás das grades.

Na manhã seguinte à noite maldormida, por conta do duro castigo que lhe impuseram os companheiros de cela, Isaías é levado à presença da autoridade judicial. No corredor do fórum, Olinda o aguarda, aflita. Não lhe permitem, porém, que fale com ele.

Ela se desfaz em prantos ao vê-lo passar cabisbaixo diante de si, escoltado por dois policiais fardados que o apressam com empurrões nas costas, a caminho da sala de audiência, as algemas prendendo-lhe os punhos, o andar claudicante, sem coragem de olhar para a mulher.

Da cela, Isaías traz o cheiro de cimento mijado, a fetidez da miséria humana impregnada em sua roupa. 

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NOTA: eventuais alterações podem ser feitas a qualquer momento pelo autor na publicação original, aqui.

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14/06/2025

Um nome para minha IA (#34)

Minha “IA” (sigla utilizada para designar inteligência artificial) ainda nem foi concebida, mas já tem nome.

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Dar nome é algo importante. Está na Bíblia, logo no Gênesis, versículos 19 e 20. Contam as sagradas escrituras que Deus concluiu a criação de todo animal do campo e de toda ave dos céus e os levou a Adão, “para este ver como lhes chamaria”; e tudo o que Adão chamou, a toda a alma vivente, “isso foi o seu nome”.

Ainda não havia pessoas a batizar, por evidente, pela singela razão de que as duas únicas existentes vieram já com os nomes de fábrica, mas coube ao macho do casal recém-criado dar nome às coisas, aos animais, aos fenômenos da natureza e a toda Criação que o cercava, incluindo Caim, Abel e toda a prole (frutos de flagrante e inevitável incesto, mas viremos essa página). Era o que, milênios depois, viria a ser chamado de poder de “dar nomes aos bois”, como lembra o escrivão, personagem de um dos meus contos, do que dá nome ao livro “O Onomaturgo e Outras Histórias”, com lançamento agendado para 19 de julho próximo.

Num outro conto, que ainda nem publiquei e que ficará para o próximo livro, narro um episódio na vida de um primeiro casal humano, o meu “Gênesis” particular (essa minha mania e de todo escritor de brincar de Deus!), o nascimento do seu primeiro rebento, uma menina. Eles não falam, como é de se supor da primeira leva de hominídeos da História, os homo sapiens de que descendemos; apenas emitem grunhidos, a par de outros meios naturais e intuitivos de comunicação. Nessa narrativa, faço uma ilação sobre quais devem ter sido e como teriam surgido as primeiras palavras pronunciadas, que, parece-me evidente, hão de ter servido para designar cada membro da família primígena.

Não haveria de ser diferente com os idealizadores das primeiras invenções a que denominaram “inteligência artificial”, gênios que desde logo pensaram nos respectivos nomes próprios. E como o objetivo de tais inventos é, e sempre foi, substituir os humanos, nada mais natural que as ditas fossem dotadas de nomes humanos.

Assim é que no filme “Her” o escritor protagonista vivido por Joaquin Phoenix, por exemplo, apaixona-se por Samantha, um computador com quem conversa como se fosse gente. No célebre “Inteligência Artificial”, a própria é um androide infantil chamado David. No clássico “Blade Runner”, o principal androide tem por nome Roy Batty.

Theodore (Joaquin Phoenix) dialoga com Samantha, em cena do filme Her

A ideia inspirou empresas do mundo real, como a Amazon, cujo robô virtual recebeu na pia batismal do deus capitalismo o nome feminino Alexa. Outras lhe sucederam, inclusive em terras brasileiras, como as assistentes digitais de lojas como Magazine Luiza (a Lu) a bancos, como o Bradesco (a Bia). Até nosso glorioso Supremo Tribunal Federal entrou na roda e criou sua Maria.

A Apple inventou uma certa ou certo Siri (ainda não fomos apresentados, não faço ideia de que apito toca), que não é exatamente um nome humano, tampouco parece feminino, mas passa como apelido, como Lula, a exemplo do nosso estimado presidente; talvez seja uma forma sincopada de Siriguejo, nome do caranguejo ganancioso dos desenhos animados, patrão do eterno funcionário do mês Bob Esponja — se bem que o nome original, em inglês, é Krabs, o que destrói a possibilidade de que minha tese seja procedente.

Nessa linha onomatúrgica, pensei num nome para a “IA” que resolvi criar. Para quê? A ideia da finalidade só me surgiu agora, exatamente neste momento em que escrevo este parágrafo: para atender de modo virtual os interessados em adquirir minhas futuras obras impressas. Por sinal, deixo registrado que estas, as minhas obras, minha criação literária, jamais serão fruto dessa tal inteligência artificial. Sou apegado à minha burrice natural e dela não abro mão.

Será, assim, uma espécie moderna de “secretária eletrônica”, a atendente virtual falecida tão jovem, em tempos nem tão remotos, embora suficientes para denunciar a longa jornada de vida de quem, como eu, conheceu e ainda se lembra da pranteada extinta.

Pensei no nome que considero ideal para minha IA: “Iaiá”. Isso mesmo, como Iaiá Garcia, personagem de Machado de Assis que dá nome ao célebre romance do mestre maior da literatura brasileira.

Sei que não é exatamente um nome, no sentido próprio, apenas um designativo, uma forma carinhosa de chamar alguém. Iaiá era como os africanos escravizados chamavam as moças e as meninas de então. Suponho seja corruptela de sinhá, que virou nhanhá, que se transformou em iaiá.

De todo modo, representa uma personagem, uma versão ficcional de alguém real. Olha que pertinente! E, de quebra, remete ao maior escritor que este país já produziu, o que pode ser sinal de descarada pretensão, tão elevada quão descabida, deste pobre plumitivo.

Então, é isso. Quase como o próprio Deus, aliás, mais ousado do que Ele, dou por boa minha obra, mesmo ainda não realizada, apenas idealizada. Agora só me falta desenvolvê-la. Vem logo, Iaiá!

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13/06/2025

É tudo líquido

Carlos Rios, bancário, sente-se satisfeito aos cinquenta e nove anos de idade com seu salário bruto de quase sessenta mil reais por ano, dono de um Verona que comprou zero quilômetro em 1996 e quitou em trinta e seis prestações, renegociadas por mais doze, seguidas de outras doze.

Imagem: PinterestImagem: Pinterest

Ao tempo da aquisição, conheceu Aleteia que, com ares de recatada, costumava atendê-lo na única videolocadora da cidade. Era bela e o cativara por sua timidez, que Carlos interpretara como demonstração de confiabilidade.

No início, era constrangedor. Carlos entrava na loja, percorria em silêncio as gôndolas, escondendo-se para não ser visto; examinava as caixinhas, lia algumas sinopses dos filmes, mas não escapava às orientações da atendente. Aproveitava a promoção de fim de semana e alugava três videocassetes de filmes clássicos, ditos cult, que Aleteia lhe indicava, para no meio deles meter dois pornográficos, que eram os a que de fato ele assistiria. Acostumada com expedientes tais, nada dizia a doce menina, dez anos mais jovem do que o elegante funcionário do banco ao lado. Era letrada, romântica, devoradora de romances de alta vendagem, em geral sem muita densidade literária, e conhecia toda a filmografia disponível no estabelecimento.

A reiteração da conduta dissimulada para escolher os vídeos com a discrição a que Carlos se impunha, que sempre concluía com a cumplicidade de Aleteia, levou-os à confiança mútua que lhes abriu portas para a intimidade. Meses depois viram-se casados, iniciando esperançosos a vida a dois, que o destino anunciava a sete trombetas que tinha tudo para dar certo.

De fato, a vida os colheu no primeiro quarto do novo século ainda casados, crendo-se felizes cada qual a seu modo. Carlos se diz um marido feliz porque tem um bom emprego, que lhe garante o status de bem-sucedido perante os seus, dono de uma casinha financiada pelo mesmo banco que o emprega, que paga mediante descontos em seu salário a juros subsidiados pelo governo que ele vive a maldizer, e o Verona verde, sua paixão, comprado no último ano de fabricação do modelo, que sobrevive à custa de constantes visitas e internações em oficinas mecânicas. Aleteia, porque busca em outros braços, em leitos estranhos, a felicidade que cansou de não encontrar no próprio lar.

Tudo parece bem e Carlos está a assim pensar na fila do supermercado em que se encontra. Tão bem se sente que se permite, em palestra aos circunstantes, espicaçar o governo por querer taxar os que ganham acima de um milhão de reais por mês só para compensar, vejam só se pode uma coisa dessa!, a isenção no imposto de renda que pretende conceder aos que recebem salário de até cinco mil mensais. Não que seja contra a concessão em favor dos mais pobres, mas que não custe o preço de lesar os que são a mola propulsora do nosso progresso, vocifera como se pertencesse à casta superior.

Repete em voz alta a conhecidos e estranhos da fila do caixa, como faz no banco para os clientes, os números e a retórica que ouve de especialistas em reportagens a que assiste no telejornal, sob insuspeito patrocínio da instituição financeira que o emprega. Carlos Rios empresta a tais comentaristas sua assinatura em garantia fiduciária cravando que é bancário há mais de trinta anos e sabe do que está falando.

Está prestes a completar sessenta anos de idade, aposentar-se, e só lamenta não ter ainda atingido a idade oficial dos idosos porque, apesar das cãs que lhe cobrem a cabeça como a neve à velha montanha, não pode ainda fazer uso das vagas preferenciais de estacionamento, nem gozar da prioridade nas filas de espera, mas jura que não faz questão.

Súbito, Carlos se dá conta de que ao lado, na fila preferencial, há uma mulher que carrega um bebê de colo. Repara que é uma senhora cuja idade lhe parece inverossímil a uma mãe puérpera, e muito moça para ser avó. Senhor de suas certezas, não tem dúvida de que se trata de um boneco de silicone, inerte nos braços da falsa mãe, usado apenas como artimanha para garantir preferência no atendimento. E ele atrasado, parado, aguardando sua vez numa fila interminável, contando os minutos que faltam para bater o ponto no trabalho.

Decide impor sua convicção e o que julga seu direito e vai às falas com a mulher, que retruca, faz juras de que não é um bebê reborn, que não faz ideia do que o estranho está falando, que seu filho é sim uma criança de verdade. Tomado por incontível ira em face de tamanha ignomínia, Carlos desfere um tapa no bebê com tal violência que a criança cai dos braços da mãe, vai ao chão e abre um choro doloroso regado ao sangue que esvai de um corte na nuca. É prontamente socorrida e o bancário, detido pelos seguranças, é levado preso em flagrante.

Ao delegado, pede mil desculpas, explica que se enganou, que tem visto na internet tantos casos de mulheres que para obter preferência de atendimento munem-se de bonecos de silicone como se fossem bebês de carne e osso, argumenta que a senhora já não tem idade para ser mãe recente, tampouco para ser avó e que ele é já um idoso, embora ainda não nos estritos termos da oficialidade.

O delegado lavra o flagrante e, compreensivo, cede ao espírito cristão recém adquirido no mercadinho da fé mais próximo de sua casa e se lhe firma a convicção de que de fato não houve dolo, de que Carlos não teve a intenção de matar, que foi induzido ao erro pelas circunstâncias. Ademais e afinal de contas, por sorte a criança sobreviveu. Já não corre risco de morrer, sofreu apenas fraturas e escoriações. O doutor libera-o mediante a paga de módica fiança e à conta do perdão que lhe foi ensinado nas aulas dominicais da igreja que passou a frequentar.

O caso explode na mídia com sensacionalismo, imagens obtidas pela câmera do supermercado viralizam na internet e Carlos perde o emprego, menos por conta da repercussão do que por sua profissão encontrar-se em vias de extinção.

Desgraça é visita que nunca vem desacompanhada e chega sempre nas horas impróprias. Não bastasse estar desempregado e sem outra qualificação, descobre por acaso a verdade sobre Aleteia, que há tempos vem traindo-o com seu antigo chefe, o gerente do banco, logo ele, um de seus melhores amigos desde os tempos de colégio.

Sem recursos para continuar pagando o financiamento da casa comprada no longínquo extremo leste da cidade, perde-a para o banco, o mesmo que até semanas antes o empregava e em nome do qual dedicava-se a convencer os clientes a fazerem negócios financeiros dos quais eles não necessitavam, a taxas de juros escorchantes.

Só, sem emprego e salário, condenado pela sociedade e pela justiça, vê-se numa tarde nublada de inverno sentado na calçada defronte sua antiga casa, com os móveis depositados num velho caminhão de aluguel, sem saber para onde levar o quase nada que lhe sobrou.

Agachado na sarjeta, cabisbaixo, cotovelos sobre os joelhos, as mãos segurando a cabeça, lembra-se dos bons tempos da videolocadora e das fitas que já não mais existem, pensa na antiga profissão que aos poucos se extingue, que por mais de três décadas lhe consumiu as forças, os sonhos e as oportunidades; lamenta a ausência de outra qualificação, ressente-se da felicidade conjugal jamais alcançada em plenitude, da fidelidade não correspondida, e pragueja contra a falsidade de Aleteia.

Pensa nos bebês de plástico, nos negócios lesivos que firmou em nome de seu ex-empregador com promessas de ganhos extraordinários, no bom salário que para tão pouco dava e que se foi, na casinha que se foi sem jamais ter-lhe vindo às inteiras, no Verona que não se fabrica mais desde que o comprou e que Aleteia levou consigo na divisão dos bens por ocasião do divórcio.

Conjectura que a realidade em que vive, líquida e voraz, é como um rio cuja correnteza, cortando um mundo povoado por bonecos de madeira regidos por um invisível Gepeto universal, a tudo e a todos arrasta rumo à concretude das rochas que o aguardam no fundo da queda d’água.

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