06/11/2024

Cainã, o Telecobrador

 

Faltavam segundos para as sete da noite quando Cainã viu surgir na tela do computador mais uma ligação a ser feita. Seria a última do dia, pois seu turno chegava ao fim. Estava ansioso por ir embora e odiou a inserção desse novo número de telefone que lhe fez a pessoa sem rosto que lhe supervisiona o trabalho, passa-lhe ordens e lhe dá as broncas por metas não atingidas. 

Enquanto tocava e ele, dedos cruzados, torcia para que o destinatário não o atendesse, pôs-se a reparar nos colegas. Todos expunham na fisionomia, nos gestos, na pressa, o cansaço de mais um dia de dissabores insólitos.

Odiou mais quando do outro lado alguém o atendeu.

— Senhor José Fanzine? — indagou Cainã, com voz honestamente simpática.

Uma voz de homem respondeu, serena:

— Boa tarde. Pode falar.

— Ótima tarde, senhor…

Cainã mal iniciou o discurso treinado e foi interrompido pelo interlocutor:  

— Qual o seu nome, por gentileza?

— Cainã, senhor. Falo em nome da…

— Cainã! Bonito nome. Indígena, presumo. Exala o frescor da natureza. Que bom que você ligou, Cainã. Estava mesmo me sentindo solitário, precisando de alguém para conversar. 

— Que bom, senhor José. Eu falo em nome…

— Eu sei, eu sei. Você fala pela empresa Concentro, em nome do banco Santo André. Você já deve ser o décimo quinto que me liga hoje.

— Eu preciso que o senhor me confirme o número de seu…

— CPF. Vamos pular essa parte. Como eu lhe disse…

— O senhor é mesmo José Fanzine?

— De que adiantará lhe dizer que não? Só hoje, foram quinze ligações. Quinze! Veja que eu neguei cinco vezes mais do que Pedro a Cristo, mas não adiantou. Cá está você! Vocês insistem em me ligar. Há pouco, ligou-me um Alfonso.

Cainã olhou em volta, os colegas retiravam fones de ouvido e fios da cabeça, alguns já perfilavam diante do computador que serve de relógio de ponto eletrônico. O sujeito do outro lado da linha prosseguia, indiferente:

— Até semana passada, era outra empresa, uma certa Alma Viva, ou Vivalma. Convenhamos, o nome era mais simpático, mais interessante do que Concentro. Muito prosaico, este. Alma Viva, ou Vivalma, tinha ao menos um quê de poesia. Era mais “versaico”, se me permite um neologismo; mais cheio de vida. 

— Senhor, eu vou estar precisando checar seus dados.

— Compreendo, Cainã. Mas foi você quem me ligou, e você tem todos os meus dados. Aliás, tem os dados desse José Fanzine, Pazini, Magazine… enfim, desse pobre coitado em quem vocês me transformaram.

— Senhor, vou estar anotando aqui que…

— Não vai adiantar, meu caro Cainã. Agradeço sua boa vontade, mas eu já solicitei umas quatrocentas e trinta e sete vezes que riscassem meu número do seu caderno, e não adianta! — disse, com voz calma, arriscando-se a cantarolar Risque, de Ary Barroso. — Você vai registrar, e eu não duvido disso; vai desligar e, dez minutos depois, outro me telefonará com igual discurso pronto. “Ótimo dia, senhor”, ele me dirá. A propósito, interessante essa transformação. Até uns tempos atrás, vocês eram treinados para desejar “bom dia”, “boa tarde”, como manda e sempre mandou a boa educação. De repente, as empresas de teleatendimento deram um salto de qualidade, um “apigreide”, como se diz em línguas estrangeiras, e atualizaram essa expressão de desejo. Passaram a nos dizer “ótimo dia”. Ainda hoje me ligou uma moça, sua colega dessa mesma empresa, simpática como você, a Ismália. “Tenha um ótimo dia, senhor!”, ela me disse, depois de me fazer a mesma cobrança. Como eu quis conversar, como faço agora com você, ela bateu o telefone e me deixou falando sozinho. Que ótimo! O treinamento tem funcionado, sem dúvida, mas o resultado é horrível. Soa falso, é irritante.

— Senhor, eu… grouuouogruoouou

— Cainã,  querido. A ligação ficou péssima, de repente. Quer ter a bondade de repetir o que disse, por gentileza?

— Perdão, senhor. Um minutinho, vou ajustar… Agora, sim. Eu estava lhe dizendo que entendo o senhor e que vou estar fazendo uma anotação, mas sugiro que o senhor entre em contato com o banco…

— Cainã, simpático Cainã! Bondade sua, e agradeço pela sugestão, mas vou lhe dizer, vou dizer a vocês, pela quadricentésima trigésima oitava vez — e seguiu falando com a calma inverossímil das pessoas dotadas de paciência inesgotável. — Eu não sou José Fanzine! Eu não faço ideia de quem seja esse pobre-diabo que, sem querer, anda me pondo em crise de identidade. E não vou perder meu tempo e meu humor para ligar para um banco para dizer que eu sou eu e que não sou outra pessoa! Até porque, com certeza, com pessoa é que não vou conseguir falar. Você sabe disso melhor do que eu. Uma voz de robô me atenderá e me recitará um rosário de números, “disque um para isto, disque dois para aquilo”, depois “digite seu CPF”, e nesse diapasão jamais chegarei a ser atendido por um ser humano, como você. É incrível que, na hora de cobrar, os bancos optem por seres humanos.

O jovem de vinte e dois anos, cabelos longos, olhos esverdeados e compreensíveis dificuldades com a língua pátria era generoso e educado e não quis fazer desfeita ao homem que o atendera de modo tão inesperado e, de certa forma, não lhe faltara com a gentileza.

— Senhor, vou precisar estar encerrando…

— Cainã, estimado e compreensivo Cainã. Sabe, eu trabalho em teleofício, em romiófis, como se diz em línguas estrangeiras, em minha própria casa. Passo os dias solitário, sem ter um único colega com quem eu pudesse definir, entre um cafezinho e outro, as soluções para os grandes problemas da humanidade. Confesso que até gosto dessas ligações, dessas cobranças que vocês insistem em me fazer, por mais perturbadoras que sejam. É a chance que tenho de dialogar com alguém, entende? A propósito, você assistiu ao jogo de ontem, do Palmeiras…?

O telecobrador riu e explicou que não curte futebol. 

— Ah, que pena. Achei que poderíamos entabular uma rodada de debates sobre o jogo de ontem, a roubalheira que foi... 

— Lamento, senhor. Olha, eu poderia…

— Sei, sei. Você tem outras ligações a fazer e eu estou apenas tomando seu precioso tempo. Mas vou lhe fazer mais esta confissão: é proposital. É a lei de Talião, já ouviu falar? Quem com ferro fere, olho por olho será ferido. É o meu troco, dente por dente. Vocês acham que eu tenho tempo para ficar recebendo ligações, cobranças por alguém que não sou e nem conheço. Minha arma é tomar o seu tempo! Pela natureza da sua atividade, suponho que o seu tempo valha mais dinheiro do que o meu. Afinal, sabemos de antemão que comigo você não terá êxito, pois, como venho lhe dizendo, não faço ideia de quem seja esse tal José Fanzine. Já se você estivesse cobrando de outro, quem sabe...

O sujeito não queria deixar Cainã respirar, pois a um vacilo, o cobrador desfaria a ligação.

— Sabe que seus colegas já me ligaram até oito horas da manhã de sábado? Várias vezes. Eu, querendo dormir até mais tarde… Sábado! Dia do Senhor, e não dia de sim-senhor-não-senhor. Essa empresa para a qual você trabalha, assim como a anterior e as demais, são todas impiedosas! Onde já se viu acordar alguém às oito horas da madrugada, num fim de semana? Onde já se viu obrigar um trabalhador honesto e dedicado como você a cobrar outro em plena madrugada de um sábado?

— Perdoe-me, senhor, mas vou desli…

Cainã interrompeu a ligação antes de completar a própria frase. Com destreza, retirou fios e fone das orelhas e, num salto, estava batendo o ponto. Dos colegas de turno, já não havia mais ninguém. 

Na rua escura, um vento gelado cortava-lhe os ossos. Correu em vão para pegar o ônibus, que saía do ponto lotado. O motorista não atendeu ao seu sinal. O próximo só viria uma hora depois e ele decidiu caminhar. Enquanto andava, seu celular tocou. Era um telecobrador, de uma empresa concorrente, que lhe cobrava um valor qualquer. Cainã desligou.

Ao atravessar a ponte, parou para contemplar o reflexo do luar sobre as águas calmas do rio. Olhou para o céu e se encantou com a lua cheia. Cainã desejou alcançar a lua do céu e calculou que, para tanto, a lua do rio haveria de servir-lhe de caminho.


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15/09/2024

Banho de Literatura

Descobrimos que os ingressos para a Bienal do Livro de São Paulo, no Anhembi, estavam esgotados somente quando chegamos na bilheteria do evento.

Estacionei o carro no Sambódromo, ao preço de R$70,00, e dali caminhamos uns 2km até a bilheteria.
No caminho, cruzei com o deputado federal do PSol Ivan Valente e o cumprimentei. Lembrei a ele que recentemente participamos juntos de uma videoconferência, a que eu inadvertidamente me me referi como "live" -- eu, ele, o também deputado federal Chico Alencar, do PSol do Rio de Janeiro, a advogada Talitha Camargo da Fonseca e mais uma pessoa (misssshtério!), mas me pareceu que ele não se lembrou de mim. E eu, claro, me esqueci de tirar uma foto! Mais um exemplo da minha deficiência no campo da tietagem, sobre a qual falei na postagem anterior.
Só depois de tudo isso foi que descobri que os ingressos estavam esgotados.
Felizmente eu não descobri antes. Porque, por óbvio, eu teria desistido de ir.
Na portaria, logo também descobri que eu não precisava pagar, porque sou... (argh!) idoso! Pessoas com idade acima dos sessenta não pagam (eu ainda não me acostumei com essa tal "melhor idade").
Mas minha esposa, por ser praticamente uma criança, porque "di menor" de sessenta anos, ainda teria de pagar e dependíamos de aparecer um ingresso.
Então fomos informados que muita gente pagou sem precisar (mais essa descoberta: eu não era o único desinformado a respeito) e que daria para negociar o ingresso de Luciana com eventuais desistentes.
Bem rapidamente, por sorte, chegou uma família que tinha meia entrada disponível, por conta de alguém que havia desistido de ir, e que outro da família que pagaria meia havia pagado por uma entrada inteira. Ou algo assim. Sei que fiz um PIX de 35,00 pro marido, entrei de graça, pela minha dolorosa "idosidade", e Luciana entrou no vácuo da meia já paga e da meia pela qual reembolsei o simpático sujeito, ou sei lá que cálculo foi usado. Sei que entramos.
Logo de cara, outra feliz coincidência. Num estande, vi uma menina de feições conhecidas conversando com um rapaz, um visitante, como nós. Achei que ela fosse, e era mesmo, a "booktuber" Isabella Lubrano e me aproximei. Também já falei a respeito desse encontro na postagem anterior.


Recentemente, compartilhei uma postagem do ex-ministro Renato Janine Ribeiro em que ele comentava que na abertura da Bienal, uma semana atrás, havia muito mais gente do que no fracassado 7 de Setembro de BolsoNero e do pastor e empresário da má-fé Silas MalaCheia, o que, dizia eu, era um bom sinal. E, de fato, pude comprovar, com estes olhos que um dia o formol há de preservar (pelamordidela, não inventem de me cremar! Quero ter a oportunidade de experienciar o "caro data vermibus" e ser eternamente lembrado pelo "verme que primeiro roer as frias carnes de meu cadáver", para assim homenagear Brás Cubas, o das "Memórias Póstumas" escritas por Machado de Assis), que o evento atraiu grande público, parecendo desmentir a crença de que brasileiro não lê, que não gosta de livros. Ora, como tudo no tal mercado, há nichos para todos os gostos e necessidades e o da literatura não é nada desprezível.
Caminhamos por mais de duas horas e nem o chão acarpetado do local, que muito aliviou o peso do meu corpo sobre meu fraquejado espírito, impediu que conseguíssemos ver apenas pouco mais da metade dos estandes. Foi o suficiente para nos cansarmos. Tomamos dois cafés e comemos dois pães de queijo no Fran's Café a R$80,00 (é, todos os avisos diziam que os preços dos alimentos eram elevados na Bienal...) e decidimos partir.
Antes, porém, vimos um interessante estande sobre Machado de Assis, com originais manuscritos e datilografados de seus textos e seu tabuleiro de xadrez, que se veem nas fotos adiante.


Num outro estande apinhado de gente, a maioria jovens, consegui comprar pelo menos "O Avesso da Pele", de Jefferson Tenório, e "Um Sopro de Vida", de Clarice Lispector. Só não comprei mais por conta, mesmo, do cansaço.
E não foi nada fácil a longa caminhada de retorno até o Sambódromo, onde, na parte mais distante, eu havia deixado o automóvel.
Na véspera, havíamos ido a um encontro presencial do meu pessoal do curso de escrita criativa "Preparando o Romance", comandado pelo professor e escritor Tiago Novaes, realizado no Teatro Casa das Utopias, na Lapa. Na parte da manhã, chegamos muito atrasados e nos deram cadeiras para nos sentarmos no corredor, e me pareceu tudo bem, bastante confortável. Após o almoço, porém, embora acomodados em poltronas como todos os demais, minhas costas passaram a doer muito. Eu não achava uma posição confortável e Luciana chegou a me advertir que eu estava com o "semblante muito pesado". De tanta dor que sentia.
Acabamos não indo ao esperado "happy hour", onde certamente poderíamos bater um papo mais descontraído com os colegas de minha turma. Fomos ao hotel e eu não resisti. Deitei-me na cama e só me levantei na manhã de hoje, para irmos à Bienal e passarmos por toda essa saga.
Foram dois dias difíceis, por conta dos efeitos da minha "idosidade", mas o banho de literatura que tomamos foi altamente reconfortante e suficiente para a plena recomposição dos ânimos.
Agradeço de coração à minha amada esposa Luciana, que se dispôs a me acompanhar nesse périplo, sem a qual eu não teria vivenciado esses dois dias da mais pura alegria e felicidade.
A fé na literatura é que me proporciona grande esperança nessa luta incessante contra o monstro do fascismo que nos assombra de quando em quando ao longo da História.


(A última foto é da frase que recebi no "biscoito da sorte" que veio com o frango xadrez que pedimos ao "China em Caixa" -- vocês sabem, já ouviram falar, certamente já consumiram algo dessa famosa rede de comida rápida chinesa, não preciso fazer a propaganda --, no hotel, na noite de sábado).

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Adorável Coincidência

Vejam quem eu e Luciana encontramos na Bienal do Livro, hoje, logo que chegamos no centro de convenções do Anhembi!

A simpaticíssima Isabella Lubrano, a "booktuber" que é filha de minha querida amiga Rosinha Lubrano, colega dos tempos de departamento jurídico (Jurid) do Banespa. Éramos do Contencioso -- eu, Rosa e os saudosos Nelson Nakamura e Luiz Carlos Pereira, chefiados pelo Dr. Barbelli.
Isabella apresenta o canal "Ler Antes de Morrer", em que ela resenha e comenta livros de todos os gêneros, contemporâneos e clássicos.
Em dez anos, o canal já acumulou mais de 700 mil inscritos e não para de crescer. E Isabella é tão competente no que faz que em 2018 foi finalista do prêmio Jabuti no eixo "fomento à leitura" e há cerca de um mês chamou a atenção de Felipe Neto, que a convidou para uma parceria no projeto Clube do Livro, criado por ele recentemente.
Eu sou tão ruim de tietagem que quase não tiro a foto. Ela, mais ágil, tirou logo uma foto de nós e a enviou para a mãe pelo WhatsApp, que imediatamente me mandou um beijo!
E eu quase ia pedindo à Isabella, à moda antiga, que me enviasse a foto, até que me lembrei que eu mesmo poderia tirá-la do meu próprio celular!
(Outro exemplo da minha dificuldade com a tietagem. Ontem, em evento fora da Bienal, no Teatro Casa das Utopias, na Lapa, estive com os escritores Tiago Novaes, meu professor no curso de escrita criativa "Preparando o Romance" e autor do premiado "Baleias no Deserto", da editora "Rua do Sabão" -- a mesma que lançará o meu livro de contos "O Onomaturgo e Outras Histórias" --, e Virgínia Ferreira, que escreveu "Chumbo", da editora "Quelônio", e, claro, me esqueci de levar os livros para serem autografados por eles. E nem me lembrei de tirar uma mísera fotografia!).
No link adiante, a exibição mais recente do canal de Isabella, em que ela resenha os contos de Isaac Asimov que compõem o livro "Eu, Robô".

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08/08/2024

Crise Existencial

(Resposta que enviei a uma cobrança que recebi pelo WhattsApp)

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Prezado senhor, ou senhora, Cepié Fiele, boa tarde.

O senhor, ou senhora, me lançou em profunda crise de identidade ao me remeter essa cobrança, "apenas 01 conta em aberto", como está dito na mensagem. "Vencida desde 20240509 no valor de R$ 129,82". E com a advertência explícita de que "esse débito encontra-se APTO PARA NEGATIVAÇÃO OU PROTESTO" assim mesmo, em letras maiúsculas, como se um cobrador estivesse à porta de minha casa cobrando-me aos gritos, expondo a toda a vizinhança a ignominiosa maldade que cometi contra essa empresa.

Ameaça séria. Idônea. Daquelas capazes de gerar aflição em qualquer devedor que preza a própria honra. Mas, reconheço, não chega a ser ameaça de morte, de sorte que não tem efeitos jurídicos a ponto de caracterizar o crime de ameaça, porque desprovida de potencial para causar "mal grave e injusto"

Ao contrário. Bem sabemos que a inclusão do nome do devedor em róis negativos ou de levar-lhe o título a protesto é, na medida do razoável, exercício legítimo de direito por parte do credor. 

Poderíamos, no extremo, pensar em cobrança vexatória, com repercussões no campo do Direito do Consumidor, mas não me parece o caso, como seria se fosse real a hipótese da cobrança gritada para todos os vizinhos ouvirem. 

Parece mesmo razoável, enfim, a ameaça. Sujar o nome do cidadão inadimplente, por óbvio, é um mal que se pratica contra o devedor, e grave, mas, nas circunstâncias, é do tipo "mal justo"

Sim, também sabemos todos que há justiça em certos males; ao menos, é essa a leitura que a lei faz da vida dos humanos a que ela se dirige. E ainda há quem acredite que inteligência artificial seja novidade dos tempos modernos!

O problema é que a cobrança é endereçada a mim, quando é certo que meu nome não é João Ataliba. Esse nome tem sido insistentemente utilizado em ligações que há muitos anos venho recebendo, das mais diversas fontes. E não adianta ter dito, todas as vezes, que eu não sou João Ataliba, não conheço João Ataliba, não faço ideia de quem seja esse sujeito... as pessoas que o procuram insistem em ligar para mim!

A insistência é tanta que chego a me perguntar se eu sou eu mesmo ou, quem sabe, não seja eu de fato esse tal João Ataliba.

Trago do batismo e do registro civil o prenome Luís. Fui chamado de Luisinho da dona Cida desde menino, Luisinho do Bar do Tota na adolescência. Até de Totó me chamaram, na escola, apelido dado por uma professora de Música –--  sim, sou de um tempo em que tínhamos aulas de Música na escola pública! –--, que eu odiei... 

Odiei o apelido e odiei a professora. E, porque odiei, pegou! Foi por pouco tempo, mas pegou, e passou. 

Depois, fiz Direito, fui vereador, e passei a ser chamado pelo sobrenome. Hoje, advogado de longa trajetória, me chamam, a meu contragosto, de "doutor", seguido do meu patronímico, que não é Lourenço, como o do tal João Ataliba. Muito menos "Lourenco", como o senhor, ou a senhora, escreveu.

Fico me perguntando que história de vida terá tido João Ataliba Lourenço, o sujeito que vocês insistem em cobrar por meu intermédio, crentes de que eu seja ele, ou que ele seja eu. 

Que apelidos ele terá tido na escola, no trabalho, na vida em comunidade? TalibaTalibinha, Talibão? Talvez simplesmente Binha, como um Ataliba que foi meu vizinho, amigo de infância, e que não era João, muito menos Lourenço. 

Será ele gordo, magro, negro, branco? Terá olhos claros como o azul do céu, esverdeados como os meus, ou pretos como uma jabuticaba? Cabelos lisos e longos com madeixas ou curtos? Pixaim? Crespos? Serão louros, negros ou já branqueados, como estes que me ornamentam o telhado que Deus me deu?

Até endereço vocês atribuíram ao Binha, ou Talibinha, rua "Professora Neuza Tereza", vila São Pedro, em Espírito Santo do Pinhal. Não conheço Espírito Santo do Pinhal. Imagino que seja uma cidade aprazível, a julgar por duas amigas agradabilíssimas que vêm de lá, a Maria Amélia e a Ana Eudóxia, a "Docinha". Olha que doçura! Mas essa rua –-- pesquisei no Google Maps –-- essa rua não existe! Eu não a localizei. Nem mesmo corrigindo o nome para o bom português ("Neusa" "Teresa", ao rigor das regras ortográficas vigentes, escrevem-se ambas com "s" em lugar do "z" que o senhor, ou senhora, usou).

Sei que, em geral, não se exigem muitos conhecimentos, sobretudo gramaticais, para quem quer enveredar pela promissora carreira de golpista –-- de que suponho tratar-se. Aliás, quanto mais capricharem no pecado do gerundismo, por exemplo, mais autênticos se tornarão, ao menos quando se trata de ligação telefônica. "Vamos estar transferindo", dizem os pobres funcionários, hoje ditos "colaboradores", de telemárquetin encarregados das ligações reais, mal e porcamente imitados pelos que pretendem dar golpes. 

Eles, os reais, de uns tempos para cá, vêm sendo orientados a incorporar um suave e sereno “tenha um excelente dia, senhor” ao final das ligações; imagine uma reclamação estressante, daquelas de discutir com o atendente em termos que deveriam ser ouvidos pelo dono da companhia; ao fim e ao cabo, com o resto do dia estragado, o enfurecido consumidor ainda é obrigado a ouvir da mocinha ou do rapazote o falso desejo de que tenha um excelente dia, senhor”

Convenhamos, todavia, é de se exigir que, por escrito, empresas do porte de uma Cepié Fiele adotem certos cuidados.

Enfim, a rua não existe, a conta de instalação não existe, provavelmente o tal João Ataliba Lourenço também não exista, e eu chego a pensar se é mesmo real a minha própria existência.

Prezado senhor, ou senhora Cepié Fiele. Estou lhe enviando esta resposta nem tanto para aliviar meu espírito, por conta da crise identitária em que sua mensagem me atirou, mas sobretudo para tentar evitar que o nome do meu amigo Binha –-- sim, já o tenho por velho amigo, em consideração aos tantos e tantos anos, às tantas ligações que venho recebendo em seu nome! –-- seja lançado no rol dos culpados, dos devedores, dos maus cidadãos que não honram seus compromissos, por razões que ninguém procura, nem quer saber. 

A condenação sumária é sempre um remédio salvífico à  consciência dos apressados juízes da vida alheia.

Quanto a mim, seja como for, o senhor, ou a senhora, já me lançou no rol dos espíritos atormentados pelas incertezas, dos que perderam a convicção quanto à própria existência. Não sei se terei remédio jurídico para situação tão desconfortável. Vou procurar outro advogado, porque não dou conta de demandas de caráter existencial, decerto da área dos Direitos Humanos, sobre o qual, confesso, não tenho grande domínio.

Atenciosamente,

Luisinho da Dona Cida, que não é João Ataliba Lourenço. Nem Lourenco.

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