Trago na memória poucas lembranças de meu pai. Chamava-se Ildefonso, era conhecido como Nego, apelido carinhoso que já revela a estima que os outros tinham por ele desde menino.
Uma das lembranças mais significativas é do dia em que minha mãe, Cida, nos deu “remédio quente”, a mim e à minha irmã Eliana. Não sei que raio de remédio era aquele, mas era “quente”. E saímos a passear pela pequena Rafard eu, minha irmã e meu pai. Estávamos na esquina da rua Marechal Deodoro com a Maurício Allain, diante de uma venda. Meu pai nos comprou sorvetes. Voltamos para casa e à noite passamos mal, com bronquite. Minha mãe acreditou a vida inteira que eu e minha irmã passamos a sofrer com bronquite por causa daquele picolé. Onde já se viu dar gelado a quem tomou “remédio quente”!
Outras lembranças são mais agradáveis. Eu me lembro de quando escrevi meu próprio nome num prendedor de roupas, de madeira. Até então eu jamais havia ido a uma escola. Estávamos sentados no quintal de casa. Minha mãe pendurava roupas no varal e eu – a lembrança não alcança detalhes, mas imagino – copiei meu nome de uma folha de papel em que meu pai devia tê-lo escrito. A família fez festa pelo meu modesto feito. Foi a primeira vez na vida que me senti orgulhoso por algo que escrevi.
Num dia abri um berreiro na hora em que meu pai saía para o trabalho e me dizia que não poderia ficar. Noutro, íamos à missa, minha irmã no colo de minha mãe, ele trajando terno, carregando um guarda-chuva.
A mais marcante das lembranças é a do Natal de 1967. Havíamos ido à casa de meus nonos, Tone e Nina, que ficava na mesma rua em que morávamos, a umas três ou quatro quadras de distância. Meu nono não havia ainda comprado nossos presentes de Natal. Ele disse a mim e à minha irmã “peguem esses brinquedos. Comprei para o Joãozinho e para a Oliete (filhos de tia Vitória, hoje também já falecida), mas depois eu compro outros para eles”. Foi meu primeiro presente de Natal, um caminhãozinho tipo guincho. Tinha até uma roldana e uma cordinha na carroceria, com um gancho na ponta.
No meio do caminho da casa do nono à nossa há a igreja de Nossa Senhora de Lourdes, padroeira da cidade. Meu pai nos levou até à porta e nos mostrou o presépio. “É por ali que vem Papai Noel”, disse-nos.
Outra recordação é de meu pai varrendo a rua. Ele, filho de agricultores, deixou o campo e, com um irmão, meu tio Nico, também já falecido, montou uma transportadora. Tinham apenas uma carreta. O motorista era um negro risonho que me carregava no colo, não me vem à mente o nome dele. Não deu certo a sociedade. Com o dinheiro da venda do caminhão, ele e minha mãe compraram a casinha. Ficou descapitalizado e desempregado. Minha mãe foi à luta. Conseguiu um emprego para ele na prefeitura. Ela contava que foi difícil. Genaro Vigorito, primeiro prefeito da cidade recém-emancipada, disse a ela que ele não precisava, “os Albiero são gente rica”. Quando asfaltaram as ruas da vizinhança de casa, meu pai integrava a turma. Ele fazia a varrição após a aplicação do asfalto. Do portão de casa eu o vi trabalhando.
Não me lembro de nenhuma vez em que eu o tenha chamado de pai. Poucos diálogos com ele me restam na memória. Certa feita, sentados eu, ele, Eliana e a prima Célia na minha cama, meu pai nos mostrou um relógio de pulso e disse que havia sido presente do nono.
Noutra ocasião, eu o acompanhei ao médico. Tomamos o ônibus em Rafard e descemos na rua 15 de Novembro, em Capivari, defronte onde hoje é a loja Paz Vídeos. Desci do ônibus com as passagens. Meu pai me disse para devolvê-las ao motorista – era Tito ou Sílvio Braggion, não me lembro ao certo, ambos primos dele (em Rafard, éramos praticamente todos parentes). Eu, já metido a fazer graça, rasguei os tíquetes. Rimos todos, despedimo-nos do primo e rumamos os dois ao consultório do Doutor Máximo Guidetti, logo ali adiante.
Não me recordo de nenhuma lição que ele tenha me dado. Nenhuma bronca, nenhum conselho, nenhuma palavra sobre como eu devesse me comportar, e isso é o que mais me entristece. Tudo o que sei do caráter de meu pai, por testemunho de quem o conheceu, é que ele era um homem bom. Esse foi e é o único exemplo que ele me deixou. Um homem bom e trabalhador, que não se envergonhava de exercer um ofício modesto. É esse modelo que eu me esforço para seguir.
Em 19 de julho de 1968 eu estava na casa dos meus nonos. O lugar estava cheio e havia um corpo no meio da sala, descansando num esquife. A certa altura, minha irmã chegou. Havíamos ficado uns dias na casa de tia Luzia, enquanto meu pai esteve internado. Naquele dia, porém, nos separamos. Eu cheguei primeiro, com minha mãe. Eliana chegou depois, com tia Luzia e calçando chinelos novos. Briguei com ela por causa dos chinelos de dedo. Em dado momento, chegou tia Vitória. Ela se aproximou do caixão e, ao ver o corpo do irmão, deu um grito longo e dolorido que ecoa em minha alma até hoje. Creio que só então eu me dei conta de que não era uma festa.
O féretro saiu da casa dos nonos para a igreja, na mesma quadra. Minha última lembrança é do cortejo. Chovia fino. Homens de ternos e guarda-chuvas pretos carregavam o ataúde, caminhando rumo ao cemitério de Rafard. Fiquei na casa dos nonos e da esquina eu via a procissão, uma quadra acima.
Ele tinha apenas quarenta anos de idade, completados um mês antes. Eu não sabia, mas naquela tarde chuvosa de 1968 eu me despedia de meu pai. Que era um homem bom e trabalhador.
(Publicado originalmente em 19 de julho de 2018 no meu Facebook - Luís Antônio Albiero)
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