A vida não tem sido fácil para os nossos pequenos reis. Principalmente para os brasileiros.
Cada vez que penso nos meio-irmãos Kauã e Joaquim, estuprados e assassinados pelo próprio pai e padrasto em Linhares (ES), meu coração sangra. Decerto eles acreditavam viver em segurança num lar abençoado. Seu algoz, afinal, exercia funções de pastor. Não imaginavam que aquele que criam ser seu protetor era, na verdade, um desses religiosos picaretas que se aproveitam da fé alheia para enriquecer e que não poupam sequer a vida dos entes queridos para alcançar seus objetivos. Quem o viu dando entrevista dias depois de ter ateado fogo nos garotos percebeu que o falso religioso simulava um choro, mas não lhe escorria uma única lágrima por detrás dos óculos de sol que usava.
A menina Vitória Gabrielly, de Araçariguama (SP), também foi assassinada. Por engano, por conta de uma dívida com traficantes de droga com os quais não tinha relação alguma.
Nos Estados Unidos, crianças são separadas da família ao atravessar a fronteira em busca de melhores condições de vida. São barradas pelo ódio de um presidente que não se peja de adotar medidas truculentas para “proteger seu país”. Quem viu os pequenos desesperados, abandonados numa gaiola gigantesca, não teve como deixar de associar a cena à imagem dos campos de concentração onde Hitler depositava os judeus, a quem tinha por inimigos. Donald Trump escolheu o resto do mundo como inimigo de seu povo, especialmente latinos e muçulmanos. Quem não se comoveu com esse drama, quem não se indignou com a passividade de Michel Temer, com a pusilanimidade de seu governo ao ouvir calado o pito que o vice-presidente Mike Pence teve a audácia de nos passar em nosso próprio território, revela o mesmo caráter perverso do pastor assassino tentando ocultar a ausência de lágrimas.
Comovemo-nos, no entanto, com o drama dos garotos tailandeses, encravados numa caverna debaixo d’água, com quem os brasileiros se identificam mais facilmente. São tempos de Copa do Mundo e eles integram um time de futebol infantil. Poderiam estar em casa, acompanhando os jogos da Rússia, torcendo, discutindo os lances, fazendo prognósticos, como todo garoto fã do futebol.
Aí me vem à mente o menino da favela carioca a caminho da escola, mochila às costas, certamente ansioso para encontrar os coleguinhas, comentar o empate do Brasil com a Suíça, trocar figurinhas, porque é o que fazem os garotos durante uma Copa do Mundo.
Marcos Vinícius não usava o uniforme da seleção, provavelmente um sonho de consumo fora do alcance econômico de sua família. Uma camiseta amarela básica com o número e o nome de Neymar às costas o deixaria feliz, mas não, nem isso. Outro era o uniforme que vestia.
Muitos jogadores e torcedores acreditam que basta vestir a histórica camiseta verde-amarela para fazer os adversários tremerem. Marcos Vinícius acreditava na força do uniforme escolar.
Hoje, no entanto, ele não pode chorar a derrota do Brasil para a Bélgica. Sequer pode alegrar-se com as vitórias contra Costa Rica, Sérvia e México. Não teve tempo de ver crescer e frustrar-se a esperança de conquistarmos o hexacampeonato, pois teve sua vida interrompida, alvejado a caminho da escola por um tiro disparado por um “blindado”. Tinha quatorze anos e sobrevivia no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Ele reclamou da dor que sentia, mas não chorou. Afinal, um rei não chora. Apenas lamentou. “Ele não viu que eu estava de uniforme”, disse à mãe antes de morrer.
O uniforme da seleção não a torna imbatível. O escolar não blinda nossos garotos. Ainda assim, renovamos a esperança de que o melhor futebol do mundo voltará a ganhar uma Copa daqui a quatro anos e só nos resta continuar acreditando que a educação é a salvação para os garotos pobres deste país.
O menino da Maré já não reina neste plano. Não verá nenhuma dessas conquistas. Coube-lhe a dolorosa constatação de que o uniforme da escola não impede o triunfo da violência, da arbitrariedade, da injustiça.
(Luís Antônio Albiero, advogado em Americana-SP, ex-vereador do PT em Capivari-SP)
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