08/08/2024

Crise Existencial

(Resposta que enviei a uma cobrança que recebi pelo WhattsApp)

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Prezado senhor, ou senhora, Cepié Fiele, boa tarde.

O senhor, ou senhora, me lançou em profunda crise de identidade ao me remeter essa cobrança, "apenas 01 conta em aberto", como está dito na mensagem. "Vencida desde 20240509 no valor de R$ 129,82". E com a advertência explícita de que "esse débito encontra-se APTO PARA NEGATIVAÇÃO OU PROTESTO" assim mesmo, em letras maiúsculas, como se um cobrador estivesse à porta de minha casa cobrando-me aos gritos, expondo a toda a vizinhança a ignominiosa maldade que cometi contra essa empresa.

Ameaça séria. Idônea. Daquelas capazes de gerar aflição em qualquer devedor que preza a própria honra. Mas, reconheço, não chega a ser ameaça de morte, de sorte que não tem efeitos jurídicos a ponto de caracterizar o crime de ameaça, porque desprovida de potencial para causar "mal grave e injusto"

Ao contrário. Bem sabemos que a inclusão do nome do devedor em róis negativos ou de levar-lhe o título a protesto é, na medida do razoável, exercício legítimo de direito por parte do credor. 

Poderíamos, no extremo, pensar em cobrança vexatória, com repercussões no campo do Direito do Consumidor, mas não me parece o caso, como seria se fosse real a hipótese da cobrança gritada para todos os vizinhos ouvirem. 

Parece mesmo razoável, enfim, a ameaça. Sujar o nome do cidadão inadimplente, por óbvio, é um mal que se pratica contra o devedor, e grave, mas, nas circunstâncias, é do tipo "mal justo"

Sim, também sabemos todos que há justiça em certos males; ao menos, é essa a leitura que a lei faz da vida dos humanos a que ela se dirige. E ainda há quem acredite que inteligência artificial seja novidade dos tempos modernos!

O problema é que a cobrança é endereçada a mim, quando é certo que meu nome não é João Ataliba. Esse nome tem sido insistentemente utilizado em ligações que há muitos anos venho recebendo, das mais diversas fontes. E não adianta ter dito, todas as vezes, que eu não sou João Ataliba, não conheço João Ataliba, não faço ideia de quem seja esse sujeito... as pessoas que o procuram insistem em ligar para mim!

A insistência é tanta que chego a me perguntar se eu sou eu mesmo ou, quem sabe, não seja eu de fato esse tal João Ataliba.

Trago do batismo e do registro civil o prenome Luís. Fui chamado de Luisinho da dona Cida desde menino, Luisinho do Bar do Tota na adolescência. Até de Totó me chamaram, na escola, apelido dado por uma professora de Música –--  sim, sou de um tempo em que tínhamos aulas de Música na escola pública! –--, que eu odiei... 

Odiei o apelido e odiei a professora. E, porque odiei, pegou! Foi por pouco tempo, mas pegou, e passou. 

Depois, fiz Direito, fui vereador, e passei a ser chamado pelo sobrenome. Hoje, advogado de longa trajetória, me chamam, a meu contragosto, de "doutor", seguido do meu patronímico, que não é Lourenço, como o do tal João Ataliba. Muito menos "Lourenco", como o senhor, ou a senhora, escreveu.

Fico me perguntando que história de vida terá tido João Ataliba Lourenço, o sujeito que vocês insistem em cobrar por meu intermédio, crentes de que eu seja ele, ou que ele seja eu. 

Que apelidos ele terá tido na escola, no trabalho, na vida em comunidade? TalibaTalibinha, Talibão? Talvez simplesmente Binha, como um Ataliba que foi meu vizinho, amigo de infância, e que não era João, muito menos Lourenço. 

Será ele gordo, magro, negro, branco? Terá olhos claros como o azul do céu, esverdeados como os meus, ou pretos como uma jabuticaba? Cabelos lisos e longos com madeixas ou curtos? Pixaim? Crespos? Serão louros, negros ou já branqueados, como estes que me ornamentam o telhado que Deus me deu?

Até endereço vocês atribuíram ao Binha, ou Talibinha, rua "Professora Neuza Tereza", vila São Pedro, em Espírito Santo do Pinhal. Não conheço Espírito Santo do Pinhal. Imagino que seja uma cidade aprazível, a julgar por duas amigas agradabilíssimas que vêm de lá, a Maria Amélia e a Ana Eudóxia, a "Docinha". Olha que doçura! Mas essa rua –-- pesquisei no Google Maps –-- essa rua não existe! Eu não a localizei. Nem mesmo corrigindo o nome para o bom português ("Neusa" "Teresa", ao rigor das regras ortográficas vigentes, escrevem-se ambas com "s" em lugar do "z" que o senhor, ou senhora, usou).

Sei que, em geral, não se exigem muitos conhecimentos, sobretudo gramaticais, para quem quer enveredar pela promissora carreira de golpista –-- de que suponho tratar-se. Aliás, quanto mais capricharem no pecado do gerundismo, por exemplo, mais autênticos se tornarão, ao menos quando se trata de ligação telefônica. "Vamos estar transferindo", dizem os pobres funcionários, hoje ditos "colaboradores", de telemárquetin encarregados das ligações reais, mal e porcamente imitados pelos que pretendem dar golpes. 

Eles, os reais, de uns tempos para cá, vêm sendo orientados a incorporar um suave e sereno “tenha um excelente dia, senhor” ao final das ligações; imagine uma reclamação estressante, daquelas de discutir com o atendente em termos que deveriam ser ouvidos pelo dono da companhia; ao fim e ao cabo, com o resto do dia estragado, o enfurecido consumidor ainda é obrigado a ouvir da mocinha ou do rapazote o falso desejo de que tenha um excelente dia, senhor”

Convenhamos, todavia, é de se exigir que, por escrito, empresas do porte de uma Cepié Fiele adotem certos cuidados.

Enfim, a rua não existe, a conta de instalação não existe, provavelmente o tal João Ataliba Lourenço também não exista, e eu chego a pensar se é mesmo real a minha própria existência.

Prezado senhor, ou senhora Cepié Fiele. Estou lhe enviando esta resposta nem tanto para aliviar meu espírito, por conta da crise identitária em que sua mensagem me atirou, mas sobretudo para tentar evitar que o nome do meu amigo Binha –-- sim, já o tenho por velho amigo, em consideração aos tantos e tantos anos, às tantas ligações que venho recebendo em seu nome! –-- seja lançado no rol dos culpados, dos devedores, dos maus cidadãos que não honram seus compromissos, por razões que ninguém procura, nem quer saber. 

A condenação sumária é sempre um remédio salvífico à  consciência dos apressados juízes da vida alheia.

Quanto a mim, seja como for, o senhor, ou a senhora, já me lançou no rol dos espíritos atormentados pelas incertezas, dos que perderam a convicção quanto à própria existência. Não sei se terei remédio jurídico para situação tão desconfortável. Vou procurar outro advogado, porque não dou conta de demandas de caráter existencial, decerto da área dos Direitos Humanos, sobre o qual, confesso, não tenho grande domínio.

Atenciosamente,

Luisinho da Dona Cida, que não é João Ataliba Lourenço. Nem Lourenco.

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06/08/2024

Em Qual Fraude Você Prefere Acreditar?

Está dificil compreender o frenesi que tomou conta de significativa parcela dos oito bilhões de viventes sobre a face da terra em relação à Venezuela e à reeleição de Nicolás Maduro à presidência do país.

Mídia, centro, direita, extrema-direita e parte da esquerda do Brasil e do mundo aceitam como favas contadas que houve fraude nas eleições presidenciais da Venezuela e sequer por remota hipótese admitem a possibilidade de que as atas exibidas pelos opositores sejam, elas mesmas, frutos de fraude.

Eu me pergunto: o que essas pessoas -- desde parte da esquerda aos ponteiros da extrema-direita -- esperam que o Brasil, os Estados Unidos, o Papa, a ONU ou os extraterrestres façam? Que desconsiderem o que foi proclamado pelas autoridades constituídas da Venezuela, intervenham em assuntos internos do país vizinho, destituam Maduro do poder à força e em seu lugar coloquem Edmundo González, o Juan Guaidó da nova temporada?

Esse desejo é fruto da mesmíssima distopia que leva os bolsonarentos a crerem que, eleito Donald Trump presidente dos Estados Unidos, o Grande Irmão do Norte virá à "terra brasilis" e, quiçá pessoalmente, como um sonhado Rambo da política, desfará todas as acusações que pesam sobre o seu congênere dos trópicos, retirará o "Micto" de trás das grades, onde certamente estará em breve, e o fará sentar-se no trono real, então já não mais da presidência República, mas da monarquia refundada?

Ah, mas o governo brasileiro deveria ter reconhecido a oposição como vitoriosa! Com base em quê, cara pálida? Nos "documentos" apresentados pelos opositores? Será que já esquecemos das falas golpistas e das incontáveis provas de BolsoNero sobre a fraude das eleições brasileiras de 2022 jamais apresentadas? 

Em que se diferenciam, em credibilidade, a apuração realizada e proclamada pelas autoridades venezuelanas competentes e a documentação exibida pelas Corinas e seus aliados? Suspeita-se de fraude de um dos lados e se dá pleno crédito ao outro com quais suportes?

Os princípios internacionais da autodeterminação dos povos e da não-intervenção obrigam a que as demais nações do mundo respeitem os vereditos emanados das autoridades constituídas de quaisquer países. Desacreditar da palavra oficial de uma corte estrangeira ao ponto de negar-lhe os efeitos jurídicos é, em si mesmo, odiosa intervenção em assuntos internos. 

Ah, mas o Brasil poderia ao menos liderar um movimento de embargos econômicos à Venezuela. Sim, claro. E com isso contribuir ainda mais para o empobrecimento do povo vizinho e estimular que mais venezuelanos atravessem a fronteira e venham se somar aos que já se encontram do lado de cá. É isso mesmo que queremos?

Outra incompreensão é sobre o papel que Lula vem desempenhando, que lhe atrai críticas da esquerda e de todo o espectro à direita, que não compreendem sua índole conciliadora e sua postura de neutralidade, embora ele jamais tenha negado o bom relacionamento que procura manter com Nicolás Maduro e com qualquer chefe de Estado do planeta, da esquerda ou da direita, democrático ou com pendores ditatoriais.

Queriam os mais afoitos da direita que Lula de plano reconhecesse que houve fraude e desse como vitorioso o principal opositor de Maduro. No lado oposto, queriam que ele declarasse vencedor desde logo o sucessor de Hugo Chávez. 

Sem elementos para se posicionar, com convicção, de um lado ou de outro e, obrigado pela Constituição Federal do Brasil à neutralidade e ao respeito às decisões internas das autoridades venezuelanas, só lhe restava confiar e referendar o decidido. Com sua sabedoria de estadista, porém, por certo considerou que a comunidade internacional não teria a mesma postura e teve o tino de concluir que era necessário ganhar um tempo -- ele mesmo, o bom e velho deus Tempo, senhor da razão e dos enganos.

Foi por isso, creio, que Lula resolveu apelar para uma tal "entrega das atas", questão, a rigor, já superada pela Corte venezuelana, que ouviu todos os candidatos a presidente -- apenas Edmundo González, e justamente ele, se recusou a depor -- e proclamou o resultado definitivo. 

Esse hiato temporal proposto por Lula tem servido como uma ponte almofadada para que Maduro, toda a Venezuela e a comunidade internacional possam transitar tranquilos e confortáveis de um para o outro lado, aquele em que a nação venezuelana seguirá o curso normal da vida, com o mandato renovado de seu presidente. Tenha ou não havido fraude, é questão tormentosa que só o povo vizinho poderá resolver, com os meios que sua construção civilizatória lhe tenha proporcionado. 

Em 2018, o Brasil vivenciou uma situação parecida. O principal candidato a presidente fora encarcerado um ano antes, sem crime, nem prova de qualquer ilícito, por forças da direita malmente ocultas sob a toga do poder judiciário, para que não pudesse disputar a eleição. Avenida aberta, elegeu-se um pulha, ao custo de uma facada de autenticidade no mínimo duvidosa que serviu para humanizar o monstro caricato e retirá-lo dos debates. Uma fraude atrás da outra!

Desgovernado, o país ainda se viu obrigado a enfrentar, com centenas de milhares de dolorosas perdas de vidas humanas, a pandemia da Covid-19, e nem por isso ficamos aguardando socorro de nações estrangeiras ou forças extraterrenas (diferentemente dos bolsonarentos distópicos no pós-eleição de 2022). 

Encontramos a saída e resolvemos nós mesmos os nossos problemas. É só o que resta ao mundo em relação à Venezuela, confiar que esteja preparada para tecer a solução. 

Respeito é bom e todos gostamos.

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(Luís Antônio Albiero, de Capivari, SP, em Jacareí, SP, madrugada de 6 de agosto de 2024)

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20/07/2024

A "Picuirinha" de Meu Avô

Atriz de cinema? De novela? Não, nada disso. É muito mais importante! 

 
A bela moça da foto, provavelmente dos anos 50, é minha mãe. Ela deixou nosso convívio em 2010, após bem vividos 82 anos de idade.

Na infância, trabalhou no cultivo de cebola e batata em sítios de meu avô Roque, com minha avó Maria Augusta e meus tios Benedita, Antônio, Francisca, Luiz, Teresa e Luzia

Meninos, todos eles caminhavam quilômetros de estrada de terra desde o bairro Caraça, na zona rural de Capivari, para estudar no centro da cidade. Traziam os calçados nas mãos e só os calçavam quando chegavam à margem do córrego, já na entrada da zona urbana, onde lavavam os pés (vem daí o nome "lavapés", embora o termo tenha batizado apenas o congênere do outro lado da cidade), para assim chegarem na escola limpinhos, com a dignidade das pessoas simples do campo. Ela só pôde estudar até a terceira série, como todos os meus tios. 

O pai chamava-a de "Picuíra" (*), porque tão pequenininha. Contava-me ela que certa feita almoçava com o pai num restaurante próximo ao mercado municipal da cidade, onde ambos vendiam o produto da lavoura colhida, quando um casal paulistano ofereceu-se ao meu avô para levá-la consigo. Na capital, diziam eles, aquela menina de quatro anos de idade, tão bonita e de olhos verdes, certamente teria melhores condições de vida – ou, muito provavelmente, como demonstra a experiência, queriam-na para servir-lhes de escrava. Meu avô recusou, mas a oferta chegou a deixá-la preocupada, assombrada com a hipótese de ser retirada do convívio com a família. 

Ainda moça, enfrentou o desafio de trabalhar fora de casa, longe dos pais, em cidades distantes. Num tempo em que era tabu mulher ter um emprego, ela foi empregada doméstica em Capivari, em casa de uma família proprietária de uma farmácia no centro da cidade, emprego do qual partiu para Piracicaba, onde trabalhou na residência do maestro Petermann e foi metalúrgica na empresa Boyes. 

Tempos depois, a convite de amigas de Capivari que haviam ido trabalhar em São Paulo, foi empregada de um casal de idosos que residia num prédio da avenida Rebouças, próximo à Oscar Freire, na capital, onde sua maior alegria era ir às missas na Igreja Nossa Senhora do Brasil, na avenida Brasil, ali perto. Voltou a ser metalúrgica, dessa feita na indústria Villares, de São Bernardo do Campo, ao tempo em que morava em pensionato no bairro da Aclimação, na capital. 

Namorou meu pai Ildefonso (Nego) por dez anos. Casou-se quando viu iminente o risco de perder seu “italianinho" para outra... Acabaram vivendo juntos durante apenas cinco anos, pois meu pai faleceu precocemente, mal havia entrado nos quarenta. 

Viúva, sozinha, criou dois filhos pequenos – eu e minha irmã Eliana. Lutou com extremas dificuldades, trabalhando incansavelmente, ela e os filhos, no "Bar do Tota", e teve a sabedoria de nos estimular a estudar para não sucumbirmos às armadilhas da vida. Depois de viúva, ainda teve forças para ser faxineira no Banco do Brasil e na Caixa Econômica Federal, em Capivari. 

Juntos, levamos muitos tombos e, graças ao seu espírito guerreiro, sempre tivemos a força necessária que dela irradiava para nos levantarmos. 

Hoje ela jaz em seu descanso eterno. Deixou-nos por herança o exemplo de sua marcante generosidade, a alegria de sua gostosa risada, muito amor e a insuperável capacidade de resiliência que nos mantém em pé. 

Apparecida Feliciano Albiero, a Cidinha, a "Dona Cida do bar do Tota", a "Picuirinha" (*) do meu avô, foi uma gigante na vida. 

Saudades! 

Luís Antônio Albiero 
Capivari, SP

(*) A grafia correta é "piquira", "piquirinha". Optei pelo uso da letra "c", em lugar de "qu", por se tratar de palavra em desuso e para não confundir a sonoridade original.

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Este texto foi escrito em 28 de outubro de 2015, originalmente publicado no meu perfil Facebook , reescrito recentemente para o livro "Querida Mãe", da editora ComPactos, coletânea organizada pela estimada amiga Cleusa Slaviero.

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30/06/2024

Voz Arrancada da Garganta

Eram chamados de clientes os puxa-sacos que, na Roma antiga, se reuniam toda manhã para prestar rapapés e pedir favores aos poderosos da época, em espaços denominados vestíbulos, reservados para tal cerimonial diário na entrada dos domos, as casas enormes em que residiam os endinheirados e donos do poder. O vestíbulo era, portanto, uma espécie de cercadinho, como o que conhecemos recentemente no domo presidencial, ao tempo em que ocupado por Jair BolsoNero. Palco das mais tristes lembranças, foi no cercadinho vestibular que, certa feita, o nada saudoso ex-despresidente disse aos seus clientes que livros didáticos não passavam de "um montão, um amontoado de muita coisa escrita".

Noutra ocasião, falando no mesmo cercadinho a clientes-mirins, incautos aprendizes do neofascismo doutrinado pelo Micto, este indagou ao grupo se a professora deles era de esquerda. Ao ouvir a resposta de que ela era petista, o Bobo da Corte alçado por acidente à presidência da República sugeriu aos novilhos que lessem e recomendassem à professora o livro de memórias de um "brilhante" torturador, de nome coronel Ustra.

O poderoso d'antanho tinha e segue tendo suas reservas a livros. Do mais importante deles, que qualquer presidente da República deveria saber de cor e salteado, o Micto só conhecia, segundo sua própria e reiterada confissão, as quatro primeiras linhas. "Jamais fui além das quatro linhas da Constituição, talquei?", repetia e repete à exaustão. 

Não é difícil entender as razões dessa aversão, verdadeira ojeriza bolsonariana a livros. Eles são armas poderosas, ameaça constante às intenções mais recônditas de qualquer sujeito com propensões despóticas. 

Um livro fechado contém muito mais do que o amontoado de palavras que confina em seu interior. Aberto, leva quem o lê aonde sua imaginação quiser. No ambiente físico ou virtual em que um livro aprisiona as palavras, elas, em contato com os olhos e conduzidas à mente do leitor, oferecem-lhe a verdadeira liberdade. BolsoNero tangenciou essa realidade quando passou a repetir trecho do livro mais conhecido do planeta, que reduziu a mero slogan de sua campanha eleitoral, "conhecereis a verdade e ela vos libertará". Pena que o Messias dos trópicos jamais tenha aprendido o real sentido do versículo bíblico e se mantenha até hoje prisioneiro de seus medos íntimos.

Os livros vêm tirando a tranquilidade dos que exercem o poder com pendores absolutistas desde sempre.

Durante a dinastia Qin (Chin) da China antiga, no período de 213 a 206 a.C., ocorreu a “queima de livros e sepultamento de intelectuais”, período em que cem escolas de pensamento foram perseguidas. O imperador romano Augusto, no século XII a.C., mandou queimar obras porque considerava que os livros afrontavam suas ideias políticas. A biblioteca de Alexandria, fundada no início do século III a.C., foi submetida a sucessivos incêndios que culminaram com sua destruição total. No auge da idade média, os livros classificados como hereges eram incinerados em praça pública. 

Em "O Nome da Rosa", Umberto Eco relata mortes misteriosas que ocorriam num mosteiro beneditino do século XIV porque as páginas dos livros tachados de “proibidos” eram envenenadas pelos monges controladores da abadia. 

Semelhante comportamento tiveram os nazistas alemães, que promoveram a "Grande Queima de Livros" em 1933 -- mote que, ao contrário do que parece, não se tratava de propaganda de liquidação de estoque de alguma livraria. 

No Brasil, durante o regime militar, houve proibições e censura a letras de música, peças teatrais, livros, até telenovelas, mas não se conhece notícia de que alguém tivesse chegado ao extremo de atear fogo em obras literárias; tampouco se chegou a tanto na onda da guerra cultural estimulada pelo ex-despresidente brasileiro, hoje inelegível. Houve, é verdade, atos constrangedores como invasões a escolas, filmagens de aulas feitas por alunos em estabelecimentos de ensino públicos e particulares, denúncias aqui e ali contra professores "doutrinadores" e conteúdos ditos "impróprios" de livros.

Terminada a triste era bolsonariana, ainda se percebem metástases do que representou o maligno necrogoverno. O livro "O Avesso da Pele", do escritor gaúcho Jéferson Tenório, foi alvo de críticas tão duras quão insanas por parte de uma diretora de escola municipal de Santa Cruz do Sul, interior do Rio Grande do Sul, fato que levou a prefeitura local a censurar a obra, distribuída por uma ONG aos estabelecimentos de ensino de acordo com critérios definidos pelos professores da própria rede local de ensino. Governadores, não por acaso todos bolsonarentos, gostaram da atitude e a reproduziram em seus estados, Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná.

Numa cidade do interior de Santa Catarina, a prefeita repetiu o feito em relação a outras obras, dentre as quais o clássico "As Melhores do Analista de Bagé", coletânea de crônicas do também gaúcho Luiz Fernando Veríssimo. "Mais uma vez o governo do PT faz esse tipo de coisa: bota o adolescente, bota a criança, induz a coisa que não é dos valores do que a gente acredita, não é o que a família quer que ele aprenda. Não é realmente o que uma criança ou até um adolescente precisa ler numa biblioteca", vomitou, com o mau cheiro inconfundível de sua sabedoria de esgoto, a alcaide catarinense, autoproclamada porta-voz das vontades da família tradicional brasileira, de olho, como seus demais congêneres, nos votos que acredita que esse tipo de conduta lhe trará nas eleições municipais deste ano.

Nem bem haviam esfriado os restos imortais do cartunista Ziraldo, ei-lo vítima do fervor censório do prefeito de Conselheiro Lafaiete, cidade localizada em seu próprio estado natal, Minas Gerais, que expressou sua intolerância ao livro "O Menino Marrom". Coincidência ou não, todos os livros censurados Brasil adentro têm o racismo por temática. E, por ordem judicial ou revisão da própria decisão administrativa, as desculpas vieram todas na mesma linha de que as obras haviam sido apenas "recolhidas temporariamente para avaliação", do que se pode extrair a boa notícia de que a palavra "censura" ainda causa algum incômodo à consciência dos que a praticam, nem que seja por oportunístico recálculo político-eleitoral.

Por sinal, de Minas veio outro episódio bizarro, não por conta de censura ou queima de livro, mas pela ignorância azêmola do governador Romeu Zema. Presenteado pela secretária de educação de Divinópolis com um exemplar da obra da poeta Adélia Prado, ele, que não parece dado a leituras -- a despeito do que disse o entrevistador encarregado de entregar-lhe a oferenda, que o laureado "gosta muito de ler" (penso que tenha feito uma ironia) --, Zema deu uma breve folheada nas páginas, fez cara de quem não encontrou as figuras que esperava ver e, com a falsidade de um político tradicional que se julga esperto, elogiou o livro por ser "muito bonito". E, sem enrubescer, perguntou ao outro se "ela (a autora) trabalha aqui". 

O vídeo, que é recente, viralizou pelas redes sociais e, passados alguns dias, voltou a circular, agora porque, para azar da zêmula bípede que governa Minas e sorte dos brasileiros, a mineira Adélia Prado venceu o prêmio Camões de literatura, concedido pelos governos de Portugal e Brasil a autores de língua portuguesa. É de se supor que, a esta altura, o governador já saiba onde, enfim, ela trabalha, e quem seja ela.

E por falar em imortais, nem mesmo o fundador da Academia Brasileira de Letras escapou da sanha dos intolerantes à cultura e ao saber de que possam desfrutar os comuns do povo. Muito tempo antes de a influenciadora digital estadunidense Courtney Henning Novak ter viralizado ao compartilhar sua experiência de ler e se maravilhar com "Memórias Póstumas de Brás Cubas", a célebre obra de Machado de Assis já havia sido uma dentre as mais de quatro dezenas censuradas pela Secretaria de Educação de Rondônia, em fevereiro de 2020.

Por derradeiro -- para mim , a pior das notícias --, recolheu-se há poucos dias livro contendo referências à vereadora Marielle Franco e à antropóloga Débora Diniz, por suposta “apologia ao aborto”.  Ao saber do triste episódio que ocorreu bem ao meu lado, eu me lembrei do célebre poema "No Caminho, Com Maiakóvski", em que seu autor Eduardo Alves da Costa começa escrevendo que "Na primeira noite eles se aproximam / e roubam uma flor / do nosso jardim" e conclui com "Até que um dia / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa / rouba-nos a luz e / conhecendo nosso medo / arranca-nos a voz da garganta", que fecha com o verso "E já não podemos dizer nada".

No meu caso, já não se trata de "eles" terem invadido o meu quintal para roubar uma flor, pisotear as demais, matar meu cão. "Eles", de fato, alcançaram a minha sala de jantar, estão sentados à minha mesa, comendo do meu prato, porque são pessoas com quem convivo ou mantenho relações, por dever de ofício, e eu me sinto sufocado por não poder erguer a minha voz.
 
Que medo essa gente ignorante e covarde tem das palavras escondidas num singelo livro, decerto porque incapazes de as compreender.

(Luís Antônio Albiero, em Capivari, SP, aos 30 de junho de 2024)
 

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24/06/2024

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APRESENTAÇÃO

Crônicas de autoria do advogado público Luís Antônio Albiero, que se apresenta como cronista, contista, poeta, porém ainda aspirante a escritor, presidente e membro único do "Movimento dos Escritores Sem Livro", por até hoje não ter nenhum livro físico editado (embora existam poemas e crônicas publicadas em coletâneas) e jamais obtido qualquer premiação.

O autor nasceu em 19 de novembro de 1963 no município de Rafard, então distrito de Capivari, dupla naturalidade que o leva a classificar-se como "capifardense", condição que divide com personalidades como Tarsila do Amaral e Paulo Betti, dentre outros biconterrâneos.

Filho de Ildefonso Albiero e Apparecida Feliciano Albiero, começou a trabalhar logo cedo, no bar de um tio. Seu primeiro emprego, aos dezesseis anos de idade, foi como 'office boy" no extinto jornal "Tribuna Regional", de Capivari, do qual foi logo em seguida entregador e, aos dezoito, revisor e redator. Em 1983, aprovado em concurso público, tornou-se escrevente do Tribunal de Justiça de São Paulo, junto ao fórum de Piracicaba, onde trabalhou com os juízes Frank Célio Soares Hungria e Urbano Ruiz, dentre outros. Aprovado também em concurso público, tornou-se funcionário do Banespa, em 1984, tendo alçado ao cargo de advogado em 1991, por concurso interno. Em 1989, foi eleito vereador de Capivari pelo Partido dos Trabalhadores e, em 2001, foi eleito para seu segundo mandato.

Em 1993, ao final do primeiro mandato de vereador, fundou, com a esposa Luciana Falcirolli Albiero, o jornalista Marcelo Andriotti e seu pai, professor Delçon Andriotti, o jornal "Dois Pontos - Capivari", que marcou a história do jornalismo na cidade por sua coragem e independência e que sobreviveu por longevos treze anos sem qualquer dependência dos poderes públicos. Foi editorialista, chargista, quadrinista e assinou as colunas 'Pingos nos Is", de viés político, "Crônicas & Agudas" e "Olhos Abertos". Criou os célebres "Os Doispontinhos", que ao longo dos anos interagiram em bem-humorados quadrinhos com os prefeitos da cidade.

Foi assessor jurídico junto à Liderança da bancada do Partido dos Trabalhadores na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, a convite do deputado Antônio Mentor, de 2003 a 2004 e de 2006 a 2013. Em 2015, a convite dos vereadores Moacyr Romero, Celso Zoppi e Adelino Leal, todos do PT, foi assessor da Câmara Municipal de Americana e, a partir de 2017, a convite do presidente Alfredo Luís Ondas (PMDB), foi procurador da mesma edilidade.

Aprovado em concurso público em 2005, por força do qual deveria ter sido convocado em 2010, e preterido por um prefeito tucano por conta de seu histórico petista, o autor, após longa batalha judicial, em 13 de agosto de 2018 foi finalmente nomeado ao cargo efetivo de Procurador do Município de São José dos Campos, que exerce até a presente data, em vias de se aposentar.

Mantém perfil no Facebook ao qual estão vinculadas as páginas "Crônicas & Agudas", em que publica os textos que compõem a presente obra e têm viés político, e "Crônicas do Buraco da Onça", de caráter pessoal e intimista.

As crônicas que abrem esta série foram publicadas em coletâneas da editora "ComPactos", do Paraná: "Fênix e a Primavera" (em "O Brasil Voltou"), "
De Facas e de Cebolas" (em "Quatro Anos nas Sombras”), "Velho" (em "Viver a Velhice"), "Deus e o Diabo na Terra do Marreco" (em "Depois da Tempestade") e "Maior e Vacinado" (em "Vendo a Vida Passar - a Travessia pela Pandemia"). Já "Os Manés Chegaram ao Supremo" estará no próximo livro, "Bendita Democracia", ainda no prelo.

É pai de Mariana (in memoriam) e Estêvão
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