Eram chamados de clientes os puxa-sacos que, na Roma antiga, se reuniam toda manhã para prestar rapapés e pedir favores aos poderosos da época, em espaços denominados vestíbulos, reservados para tal cerimonial diário na entrada dos domos, as casas enormes em que residiam os endinheirados e donos do poder. O vestíbulo era, portanto, uma espécie de cercadinho, como o que conhecemos recentemente no domo presidencial, ao tempo em que ocupado por Jair BolsoNero. Palco das mais tristes lembranças, foi no cercadinho vestibular que, certa feita, o nada saudoso ex-despresidente disse aos seus clientes que livros didáticos não passavam de "um montão, um amontoado de muita coisa escrita".
Noutra ocasião, falando no mesmo cercadinho a clientes-mirins, incautos aprendizes do neofascismo doutrinado pelo Micto, este indagou ao grupo se a professora deles era de esquerda. Ao ouvir a resposta de que ela era petista, o Bobo da Corte alçado por acidente à presidência da República sugeriu aos novilhos que lessem e recomendassem à professora o livro de memórias de um "brilhante" torturador, de nome coronel Ustra.
O poderoso d'antanho tinha e segue tendo suas reservas a livros. Do mais importante deles, que qualquer presidente da República deveria saber de cor e salteado, o Micto só conhecia, segundo sua própria e reiterada confissão, as quatro primeiras linhas. "Jamais fui além das quatro linhas da Constituição, talquei?", repetia e repete à exaustão.
Não é difícil entender as razões dessa aversão, verdadeira ojeriza bolsonariana a livros. Eles são armas poderosas, ameaça constante às intenções mais recônditas de qualquer sujeito com propensões despóticas.
Um livro fechado contém muito mais do que o amontoado de palavras que confina em seu interior. Aberto, leva quem o lê aonde sua imaginação quiser. No ambiente físico ou virtual em que um livro aprisiona as palavras, elas, em contato com os olhos e conduzidas à mente do leitor, oferecem-lhe a verdadeira liberdade. BolsoNero tangenciou essa realidade quando passou a repetir trecho do livro mais conhecido do planeta, que reduziu a mero slogan de sua campanha eleitoral, "conhecereis a verdade e ela vos libertará". Pena que o Messias dos trópicos jamais tenha aprendido o real sentido do versículo bíblico e se mantenha até hoje prisioneiro de seus medos íntimos.
Os livros vêm tirando a tranquilidade dos que exercem o poder com pendores absolutistas desde sempre.
Durante a dinastia Qin (Chin) da China antiga, no período de 213 a 206 a.C., ocorreu a “queima de livros e sepultamento de intelectuais”, período em que cem escolas de pensamento foram perseguidas. O imperador romano Augusto, no século XII a.C., mandou queimar obras porque considerava que os livros afrontavam suas ideias políticas. A biblioteca de Alexandria, fundada no início do século III a.C., foi submetida a sucessivos incêndios que culminaram com sua destruição total. No auge da idade média, os livros classificados como hereges eram incinerados em praça pública.
Em "O Nome da Rosa", Umberto Eco relata mortes misteriosas que ocorriam num mosteiro beneditino do século XIV porque as páginas dos livros tachados de “proibidos” eram envenenadas pelos monges controladores da abadia.
Semelhante comportamento tiveram os nazistas alemães, que promoveram a "Grande Queima de Livros" em 1933 -- mote que, ao contrário do que parece, não se tratava de propaganda de liquidação de estoque de alguma livraria.
No Brasil, durante o regime militar, houve proibições e censura a letras de música, peças teatrais, livros, até telenovelas, mas não se conhece notícia de que alguém tivesse chegado ao extremo de atear fogo em obras literárias; tampouco se chegou a tanto na onda da guerra cultural estimulada pelo ex-despresidente brasileiro, hoje inelegível. Houve, é verdade, atos constrangedores como invasões a escolas, filmagens de aulas feitas por alunos em estabelecimentos de ensino públicos e particulares, denúncias aqui e ali contra professores "doutrinadores" e conteúdos ditos "impróprios" de livros.
Terminada a triste era bolsonariana, ainda se percebem metástases do que representou o maligno necrogoverno. O livro "O Avesso da Pele", do escritor gaúcho Jéferson Tenório, foi alvo de críticas tão duras quão insanas por parte de uma diretora de escola municipal de Santa Cruz do Sul, interior do Rio Grande do Sul, fato que levou a prefeitura local a censurar a obra, distribuída por uma ONG aos estabelecimentos de ensino de acordo com critérios definidos pelos professores da própria rede local de ensino. Governadores, não por acaso todos bolsonarentos, gostaram da atitude e a reproduziram em seus estados, Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná.
Numa cidade do interior de Santa Catarina, a prefeita repetiu o feito em relação a outras obras, dentre as quais o clássico "As Melhores do Analista de Bagé", coletânea de crônicas do também gaúcho Luiz Fernando Veríssimo. "Mais uma vez o governo do PT faz esse tipo de coisa: bota o adolescente, bota a criança, induz a coisa que não é dos valores do que a gente acredita, não é o que a família quer que ele aprenda. Não é realmente o que uma criança ou até um adolescente precisa ler numa biblioteca", vomitou, com o mau cheiro inconfundível de sua sabedoria de esgoto, a alcaide catarinense, autoproclamada porta-voz das vontades da família tradicional brasileira, de olho, como seus demais congêneres, nos votos que acredita que esse tipo de conduta lhe trará nas eleições municipais deste ano.
Nem bem haviam esfriado os restos imortais do cartunista Ziraldo, ei-lo vítima do fervor censório do prefeito de Conselheiro Lafaiete, cidade localizada em seu próprio estado natal, Minas Gerais, que expressou sua intolerância ao livro "O Menino Marrom". Coincidência ou não, todos os livros censurados Brasil adentro têm o racismo por temática. E, por ordem judicial ou revisão da própria decisão administrativa, as desculpas vieram todas na mesma linha de que as obras haviam sido apenas "recolhidas temporariamente para avaliação", do que se pode extrair a boa notícia de que a palavra "censura" ainda causa algum incômodo à consciência dos que a praticam, nem que seja por oportunístico recálculo político-eleitoral.
Por sinal, de Minas veio outro episódio bizarro, não por conta de censura ou queima de livro, mas pela ignorância azêmola do governador Romeu Zema. Presenteado pela secretária de educação de Divinópolis com um exemplar da obra da poeta Adélia Prado, ele, que não parece dado a leituras -- a despeito do que disse o entrevistador encarregado de entregar-lhe a oferenda, que o laureado "gosta muito de ler" (penso que tenha feito uma ironia) --, Zema deu uma breve folheada nas páginas, fez cara de quem não encontrou as figuras que esperava ver e, com a falsidade de um político tradicional que se julga esperto, elogiou o livro por ser "muito bonito". E, sem enrubescer, perguntou ao outro se "ela (a autora) trabalha aqui".
O vídeo, que é recente, viralizou pelas redes sociais e, passados alguns dias, voltou a circular, agora porque, para azar da zêmula bípede que governa Minas e sorte dos brasileiros, a mineira Adélia Prado venceu o prêmio Camões de literatura, concedido pelos governos de Portugal e Brasil a autores de língua portuguesa. É de se supor que, a esta altura, o governador já saiba onde, enfim, ela trabalha, e quem seja ela.
E por falar em imortais, nem mesmo o fundador da Academia Brasileira de Letras escapou da sanha dos intolerantes à cultura e ao saber de que possam desfrutar os comuns do povo. Muito tempo antes de a influenciadora digital estadunidense Courtney Henning Novak ter viralizado ao compartilhar sua experiência de ler e se maravilhar com "Memórias Póstumas de Brás Cubas", a célebre obra de Machado de Assis já havia sido uma dentre as mais de quatro dezenas censuradas pela Secretaria de Educação de Rondônia, em fevereiro de 2020.
Por derradeiro -- para mim , a pior das notícias --, recolheu-se há poucos dias livro contendo referências à vereadora Marielle Franco e à antropóloga Débora Diniz, por suposta
“apologia ao aborto”. Ao saber do triste episódio que ocorreu bem ao meu lado, eu me lembrei do célebre poema
"No Caminho, Com Maiakóvski", em que seu autor Eduardo Alves da Costa começa escrevendo que
"Na primeira noite eles se aproximam / e roubam uma flor / do nosso jardim" e conclui com
"Até que um dia / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa / rouba-nos a luz e / conhecendo nosso medo / arranca-nos a voz da garganta", que fecha com o verso "
E já não podemos dizer nada".
No meu caso, já não se trata de "eles" terem invadido o meu quintal para roubar uma flor, pisotear as demais, matar meu cão. "Eles", de fato, alcançaram a minha sala de jantar, estão sentados à minha mesa, comendo do meu prato, porque são pessoas com quem convivo ou mantenho relações, por dever de ofício, e eu me sinto sufocado por não poder erguer a minha voz.
Que medo essa gente ignorante e covarde tem das palavras escondidas num singelo livro, decerto porque incapazes de as compreender.
(Luís Antônio Albiero, em Capivari, SP, aos 30 de junho de 2024)