CRÔNICA
Do homem poderoso de anos atrás só restaram cacos.
Acostumado às multidões, formadas sempre por um tanto de equivocados e outro tanto de contratados para inflar o contingente e dar maior relevância à cena, via-se agora reduzido à solidão. Trancafiado em uma mansão imensa que o tornava um homem ainda mais diminuto, achava-se prisioneiro de seus próprios fantasmas.
O homem minúsculo ouviu uma voz rouca, conhecida:
— Companheiro!
Olhou para trás, no entorno, não viu ninguém.
— Ei, companheiro! Aqui embaixo, agarrado ao seu tornozelo.
Só então se lembrou de que portava uma tornozeleira eletrônica. Era a primeira vez que dela provinha um som. A rouquidão da voz tornava-a inconfundível.
— Fala, barbudo!
— Trâmpi me ligou.
— Jura? Sério?!?
— Diz que está fazendo de tudo para livrar você dessa, mas não está conseguindo.
— É verdade. Sou grato a ele, mas nem a lei “magnífica” fez efeito. Não arranhou, nem cócegas fez naquela careca maldita…
— Ligou para mim como último recurso.
— E o que ele pediu a você? Mas... logo a você?
— Pois é. Quando me diziam que a terra plana em que vocês vivem não gira, que ela capota, eu duvidava…
— Não sei se devo aceitar sua ajuda…
– Bom, é pegar ou largar. Tô indo então. Boa noite, boa sorte…
— Pera, pera! Peraí, barbudo. Seja mais claro, p***a!
— Seguinte. Vou ser curto e grosso. Ele me pediu para avisar que a embaixada está pronta para receber você. Está tudo preparado.
— Mas como vou sair daqui?
— Ele orientou o Flávio a convocar uma grande aglomeração na frente do seu condomínio. Um ato religioso no início da noite deste sábado. Ideia dele, do Trâmpi. Você me retira do tornozelo e foge no meio da confusão. Os vigilantes da Federal nem vão perceber.
— Então já posso me livrar de você? Digo, dessa tornozeleira eletrônica?
— Calma, companheiro. Não se precipite. Lembre-se da Cinderela… espere dar meia noite. Até lá, toda paciência será necessária.
— Verdade, tem razão. Mas como vou fazer para arrancar você de mim? Digo, arrancar a tornozeleira?
— Fácil. Você fez Senai na juventude, não fez?
— Eu? Eu não, dosmilivre. Não nasci pra isso não!
— Pois eu nasci, e fiz. Vou dizer o que você deve fazer.
— Fala logo, ô barbudo.
— Você tem aí um cabo e um soldador?
— Um cabo e um soldado? Vamos fechar o Supremo? Esse meu filho, Eduardo, que orgulho! Eu sabia que ia dar certo!
— Não, tem nada a ver com o meu “camisa dez”, o Dudu, seu filho. Um craque, sem dúvida!
— Obrigado por reconhecer. E…?
— Estou falando do cabo de solda.
— Cê acha que tenho isso aqui em casa? Não sou soldador!
— E daí? Sou torneiro mecânico e tenho, com muita honra. Você vai ter de providenciar um, urgente. Até amanhã, sábado à noite.
— Bom, e o que devo fazer?
— Liga na tomada e mete fogo em mim. Ou melhor, nesta sua tornozeleira, que não é impressa, é eletrônica… rerrerrê…
— Isso é hora de brincar, ô da barba?
— Desculpe-me, não resisti.
— Será que vai dar certo?
***
O homúnculo não teve paciência e iniciou os procedimentos assim que Tarcísio providenciou a ferramenta, oferta de uma organização dedicada a empreendimentos alternativos que patrocina suas eleições. Passou a tarde toda de sexta-feira tentando, depois chorando, depois soluçando. Não conseguiu. Quando começou a se borrar em desespero, pegou no sono.
Passavam oito minutos da meia noite quando tocou a campainha. Acordou assustado.
— Veia, veia! Quem será, a essa hora? Veja lá pra mim, ‘mor.
Olhou para o lado, o amor não estava. “Sumiu de novo; como sempre, na hora que mais preciso, p***a”, pensou, já adivinhando do que se tratava.
Correu ao banheiro, limpou-se do borrado. Meteu uma bermuda e foi à porta. Era uma moça bonita. O homem miúdo deu uma fraquejada. Parecia novinha, pintou um clima em suas ideias, mas logo se deu conta de que o momento não era propício a fantasias.
— Pois não!? — indagou o minúsculo com voz sumida, chorosa.
— Boa noite, senhor. — ela exibiu o distintivo. — Polícia Federal.
— Estou vendo. Pode entrar — disse, quase inaudível e enxugando as lágrimas.
— Vim inspecionar sua tornozeleira. Parece que houve um probleminha com ela.
— Entre... — repetiu, sem forças.
A moça estranhou o mau cheiro da peça e do ambiente, mas não tinha como deixar de examinar. Mexeu, remexeu, viu umas marcas esquisitas, pediu explicações.
O homem mínimo respondeu:
— Foi a voz…
— Voz?!? Que voz?
Encontrando um restolho das forças que já dava por perdidas, ele respondeu:
— Da tornozeleira. Dela veio uma voz rouca... a voz do cara.
A moça olhou com ar desconfiado. Com a cara de menino apanhado na safadeza que se explica à tia no colégio, choraminguento e definhado, escusou-se, balbuciando:
— Eu só segui as instruções do cara... da voz que ouvi... juro!
— O senhor cheirou alguma coisa, ingeriu álcool, algum alucinógeno? O ar aqui parece empesteado...
Cada vez mais exíguo, ele mal conseguiu negar.
— Vou ter que levá-lo à diretoria — informou a agente, com ternura maternal, na intenção de distensionar.
O homem minúsculo chorou, berrou, rolou pelo chão, insistindo que não teve culpa. A culpa, afinal, é sempre do outro, mas não teve jeito.
Levaram-no pela manhã. A esposa ainda nem havia retornado. O sol começava a surgir no horizonte. Foi a última vez que o homem minúsculo o viu redondo.
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