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29/11/2025

A voz rouca

CRÔNICA

Do homem poderoso de anos atrás só restaram cacos.

Acostumado às multidões, formadas sempre por um tanto de equivocados e outro tanto de contratados para inflar o contingente e dar maior relevância à cena, via-se agora reduzido à solidão. Trancafiado em uma mansão imensa que o tornava um homem ainda mais diminuto, achava-se prisioneiro de seus próprios fantasmas.

O homem minúsculo ouviu uma voz rouca, conhecida:

— Companheiro!

Olhou para trás, no entorno, não viu ninguém.

— Ei, companheiro! Aqui embaixo, agarrado ao seu tornozelo.

Só então se lembrou de que portava uma tornozeleira eletrônica. Era a primeira vez que dela provinha um som. A rouquidão da voz tornava-a inconfundível.

— Fala, barbudo!

— Trâmpi me ligou.

— Jura? Sério?!?

— Diz que está fazendo de tudo para livrar você dessa, mas não está conseguindo.

— É verdade. Sou grato a ele, mas nem a lei “magnífica” fez efeito. Não arranhou, nem cócegas fez naquela careca maldita…

— Ligou para mim como último recurso.

— E o que ele pediu a você? Mas... logo a você?

— Pois é. Quando me diziam que a terra plana em que vocês vivem não gira, que ela capota, eu duvidava…

— Não sei se devo aceitar sua ajuda…

– Bom, é pegar ou largar. Tô indo então. Boa noite, boa sorte…

— Pera, pera! Peraí, barbudo. Seja mais claro, p***a!

— Seguinte. Vou ser curto e grosso. Ele me pediu para avisar que a embaixada está pronta para receber você. Está tudo preparado.

— Mas como vou sair daqui?

— Ele orientou o Flávio a convocar uma grande aglomeração na frente do seu condomínio. Um ato religioso no início da noite deste sábado. Ideia dele, do Trâmpi. Você me retira do tornozelo e foge no meio da confusão. Os vigilantes da Federal nem vão perceber.

— Então já posso me livrar de você? Digo, dessa tornozeleira eletrônica?

— Calma, companheiro. Não se precipite. Lembre-se da Cinderela… espere dar meia noite. Até lá, toda paciência será necessária.

— Verdade, tem razão. Mas como vou fazer para arrancar você de mim? Digo, arrancar a tornozeleira?

— Fácil. Você fez Senai na juventude, não fez?

— Eu? Eu não, dosmilivre. Não nasci pra isso não!

— Pois eu nasci, e fiz. Vou dizer o que você deve fazer.

— Fala logo, ô barbudo.

— Você tem aí um cabo e um soldador?

— Um cabo e um soldado? Vamos fechar o Supremo? Esse meu filho, Eduardo, que orgulho! Eu sabia que ia dar certo!

— Não, tem nada a ver com o meu “camisa dez”, o Dudu, seu filho. Um craque, sem dúvida!

— Obrigado por reconhecer. E…?

— Estou falando do cabo de solda.

— Cê acha que tenho isso aqui em casa? Não sou soldador!

— E daí? Sou torneiro mecânico e tenho, com muita honra. Você vai ter de providenciar um, urgente. Até amanhã, sábado à noite.

— Bom, e o que devo fazer?

— Liga na tomada e mete fogo em mim. Ou melhor, nesta sua tornozeleira, que não é impressa, é eletrônica… rerrerrê…

— Isso é hora de brincar, ô da barba?

— Desculpe-me, não resisti.

— Será que vai dar certo?

— Confie em mim.

***

O homúnculo não teve paciência e iniciou os procedimentos assim que Tarcísio providenciou a ferramenta, oferta de uma organização dedicada a empreendimentos alternativos que patrocina suas eleições. Passou a tarde toda de sexta-feira tentando, depois chorando, depois soluçando. Não conseguiu. Quando começou a se borrar em desespero, pegou no sono.

Passavam oito minutos da meia noite quando tocou a campainha. Acordou assustado.

— Veia, veia! Quem será, a essa hora? Veja lá pra mim, ‘mor.

Olhou para o lado, o amor não estava. “Sumiu de novo; como sempre, na hora que mais preciso, p***a”, pensou, já adivinhando do que se tratava.

Correu ao banheiro, limpou-se do borrado. Meteu uma bermuda e foi à porta. Era uma moça bonita. O homem miúdo deu uma fraquejada. Parecia novinha, pintou um clima em suas ideias, mas logo se deu conta de que o momento não era propício a fantasias.

— Pois não!? — indagou o minúsculo com voz sumida, chorosa.

— Boa noite, senhor. — ela exibiu o distintivo. — Polícia Federal.

— Estou vendo. Pode entrar — disse, quase inaudível e enxugando as lágrimas.

— Vim inspecionar sua tornozeleira. Parece que houve um probleminha com ela.

— Entre... — repetiu, sem forças.

A moça estranhou o mau cheiro da peça e do ambiente, mas não tinha como deixar de examinar. Mexeu, remexeu, viu umas marcas esquisitas, pediu explicações.

O homem mínimo respondeu:

— Foi a voz…

— Voz?!? Que voz?

Encontrando um restolho das forças que já dava por perdidas, ele respondeu:

— Da tornozeleira. Dela veio uma voz rouca... a voz do cara.

A moça olhou com ar desconfiado. Com a cara de menino apanhado na safadeza que se explica à tia no colégio, choraminguento e definhado, escusou-se, balbuciando:

— Eu só segui as instruções do cara... da voz que ouvi... juro!

— O senhor cheirou alguma coisa, ingeriu álcool, algum alucinógeno? O ar aqui parece empesteado...

Cada vez mais exíguo, ele mal conseguiu negar.

— Vou ter que levá-lo à diretoria — informou a agente, com ternura maternal, na intenção de distensionar.

O homem minúsculo chorou, berrou, rolou pelo chão, insistindo que não teve culpa. A culpa, afinal, é sempre do outro, mas não teve jeito.

Levaram-no pela manhã. A esposa ainda nem havia retornado. O sol começava a surgir no horizonte. Foi a última vez que o homem minúsculo o viu redondo.

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