20/07/2024

A "Picuirinha" de Meu Avô

Atriz de cinema? De novela? Não, nada disso. É muito mais importante! 

 
A bela moça da foto, provavelmente dos anos 50, é minha mãe. Ela deixou nosso convívio em 2010, após bem vividos 82 anos de idade.

Na infância, trabalhou no cultivo de cebola e batata em sítios de meu avô Roque, com minha avó Maria Augusta e meus tios Benedita, Antônio, Francisca, Luiz, Teresa e Luzia

Meninos, todos eles caminhavam quilômetros de estrada de terra desde o bairro Caraça, na zona rural de Capivari, para estudar no centro da cidade. Traziam os calçados nas mãos e só os calçavam quando chegavam à margem do córrego, já na entrada da zona urbana, onde lavavam os pés (vem daí o nome "lavapés", embora o termo tenha batizado apenas o congênere do outro lado da cidade), para assim chegarem na escola limpinhos, com a dignidade das pessoas simples do campo. Ela só pôde estudar até a terceira série, como todos os meus tios. 

O pai chamava-a de "Picuíra" (*), porque tão pequenininha. Contava-me ela que certa feita almoçava com o pai num restaurante próximo ao mercado municipal da cidade, onde ambos vendiam o produto da lavoura colhida, quando um casal paulistano ofereceu-se ao meu avô para levá-la consigo. Na capital, diziam eles, aquela menina de quatro anos de idade, tão bonita e de olhos verdes, certamente teria melhores condições de vida – ou, muito provavelmente, como demonstra a experiência, queriam-na para servir-lhes de escrava. Meu avô recusou, mas a oferta chegou a deixá-la preocupada, assombrada com a hipótese de ser retirada do convívio com a família. 

Ainda moça, enfrentou o desafio de trabalhar fora de casa, longe dos pais, em cidades distantes. Num tempo em que era tabu mulher ter um emprego, ela foi empregada doméstica em Capivari, em casa de uma família proprietária de uma farmácia no centro da cidade, emprego do qual partiu para Piracicaba, onde trabalhou na residência do maestro Petermann e foi metalúrgica na empresa Boyes. 

Tempos depois, a convite de amigas de Capivari que haviam ido trabalhar em São Paulo, foi empregada de um casal de idosos que residia num prédio da avenida Rebouças, próximo à Oscar Freire, na capital, onde sua maior alegria era ir às missas na Igreja Nossa Senhora do Brasil, na avenida Brasil, ali perto. Voltou a ser metalúrgica, dessa feita na indústria Villares, de São Bernardo do Campo, ao tempo em que morava em pensionato no bairro da Aclimação, na capital. 

Namorou meu pai Ildefonso (Nego) por dez anos. Casou-se quando viu iminente o risco de perder seu “italianinho" para outra... Acabaram vivendo juntos durante apenas cinco anos, pois meu pai faleceu precocemente, mal havia entrado nos quarenta. 

Viúva, sozinha, criou dois filhos pequenos – eu e minha irmã Eliana. Lutou com extremas dificuldades, trabalhando incansavelmente, ela e os filhos, no "Bar do Tota", e teve a sabedoria de nos estimular a estudar para não sucumbirmos às armadilhas da vida. Depois de viúva, ainda teve forças para ser faxineira no Banco do Brasil e na Caixa Econômica Federal, em Capivari. 

Juntos, levamos muitos tombos e, graças ao seu espírito guerreiro, sempre tivemos a força necessária que dela irradiava para nos levantarmos. 

Hoje ela jaz em seu descanso eterno. Deixou-nos por herança o exemplo de sua marcante generosidade, a alegria de sua gostosa risada, muito amor e a insuperável capacidade de resiliência que nos mantém em pé. 

Apparecida Feliciano Albiero, a Cidinha, a "Dona Cida do bar do Tota", a "Picuirinha" (*) do meu avô, foi uma gigante na vida. 

Saudades! 

Luís Antônio Albiero 
Capivari, SP

(*) A grafia correta é "piquira", "piquirinha". Optei pelo uso da letra "c", em lugar de "qu", por se tratar de palavra em desuso e para não confundir a sonoridade original.

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Este texto foi escrito em 28 de outubro de 2015, originalmente publicado no meu perfil Facebook , reescrito recentemente para o livro "Querida Mãe", da editora ComPactos, coletânea organizada pela estimada amiga Cleusa Slaviero.

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30/06/2024

Voz Arrancada da Garganta

Eram chamados de clientes os puxa-sacos que, na Roma antiga, se reuniam toda manhã para prestar rapapés e pedir favores aos poderosos da época, em espaços denominados vestíbulos, reservados para tal cerimonial diário na entrada dos domos, as casas enormes em que residiam os endinheirados e donos do poder. O vestíbulo era, portanto, uma espécie de cercadinho, como o que conhecemos recentemente no domo presidencial, ao tempo em que ocupado por Jair BolsoNero. Palco das mais tristes lembranças, foi no cercadinho vestibular que, certa feita, o nada saudoso ex-despresidente disse aos seus clientes que livros didáticos não passavam de "um montão, um amontoado de muita coisa escrita".

Noutra ocasião, falando no mesmo cercadinho a clientes-mirins, incautos aprendizes do neofascismo doutrinado pelo Micto, este indagou ao grupo se a professora deles era de esquerda. Ao ouvir a resposta de que ela era petista, o Bobo da Corte alçado por acidente à presidência da República sugeriu aos novilhos que lessem e recomendassem à professora o livro de memórias de um "brilhante" torturador, de nome coronel Ustra.

O poderoso d'antanho tinha e segue tendo suas reservas a livros. Do mais importante deles, que qualquer presidente da República deveria saber de cor e salteado, o Micto só conhecia, segundo sua própria e reiterada confissão, as quatro primeiras linhas. "Jamais fui além das quatro linhas da Constituição, talquei?", repetia e repete à exaustão. 

Não é difícil entender as razões dessa aversão, verdadeira ojeriza bolsonariana a livros. Eles são armas poderosas, ameaça constante às intenções mais recônditas de qualquer sujeito com propensões despóticas. 

Um livro fechado contém muito mais do que o amontoado de palavras que confina em seu interior. Aberto, leva quem o lê aonde sua imaginação quiser. No ambiente físico ou virtual em que um livro aprisiona as palavras, elas, em contato com os olhos e conduzidas à mente do leitor, oferecem-lhe a verdadeira liberdade. BolsoNero tangenciou essa realidade quando passou a repetir trecho do livro mais conhecido do planeta, que reduziu a mero slogan de sua campanha eleitoral, "conhecereis a verdade e ela vos libertará". Pena que o Messias dos trópicos jamais tenha aprendido o real sentido do versículo bíblico e se mantenha até hoje prisioneiro de seus medos íntimos.

Os livros vêm tirando a tranquilidade dos que exercem o poder com pendores absolutistas desde sempre.

Durante a dinastia Qin (Chin) da China antiga, no período de 213 a 206 a.C., ocorreu a “queima de livros e sepultamento de intelectuais”, período em que cem escolas de pensamento foram perseguidas. O imperador romano Augusto, no século XII a.C., mandou queimar obras porque considerava que os livros afrontavam suas ideias políticas. A biblioteca de Alexandria, fundada no início do século III a.C., foi submetida a sucessivos incêndios que culminaram com sua destruição total. No auge da idade média, os livros classificados como hereges eram incinerados em praça pública. 

Em "O Nome da Rosa", Umberto Eco relata mortes misteriosas que ocorriam num mosteiro beneditino do século XIV porque as páginas dos livros tachados de “proibidos” eram envenenadas pelos monges controladores da abadia. 

Semelhante comportamento tiveram os nazistas alemães, que promoveram a "Grande Queima de Livros" em 1933 -- mote que, ao contrário do que parece, não se tratava de propaganda de liquidação de estoque de alguma livraria. 

No Brasil, durante o regime militar, houve proibições e censura a letras de música, peças teatrais, livros, até telenovelas, mas não se conhece notícia de que alguém tivesse chegado ao extremo de atear fogo em obras literárias; tampouco se chegou a tanto na onda da guerra cultural estimulada pelo ex-despresidente brasileiro, hoje inelegível. Houve, é verdade, atos constrangedores como invasões a escolas, filmagens de aulas feitas por alunos em estabelecimentos de ensino públicos e particulares, denúncias aqui e ali contra professores "doutrinadores" e conteúdos ditos "impróprios" de livros.

Terminada a triste era bolsonariana, ainda se percebem metástases do que representou o maligno necrogoverno. O livro "O Avesso da Pele", do escritor gaúcho Jéferson Tenório, foi alvo de críticas tão duras quão insanas por parte de uma diretora de escola municipal de Santa Cruz do Sul, interior do Rio Grande do Sul, fato que levou a prefeitura local a censurar a obra, distribuída por uma ONG aos estabelecimentos de ensino de acordo com critérios definidos pelos professores da própria rede local de ensino. Governadores, não por acaso todos bolsonarentos, gostaram da atitude e a reproduziram em seus estados, Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná.

Numa cidade do interior de Santa Catarina, a prefeita repetiu o feito em relação a outras obras, dentre as quais o clássico "As Melhores do Analista de Bagé", coletânea de crônicas do também gaúcho Luiz Fernando Veríssimo. "Mais uma vez o governo do PT faz esse tipo de coisa: bota o adolescente, bota a criança, induz a coisa que não é dos valores do que a gente acredita, não é o que a família quer que ele aprenda. Não é realmente o que uma criança ou até um adolescente precisa ler numa biblioteca", vomitou, com o mau cheiro inconfundível de sua sabedoria de esgoto, a alcaide catarinense, autoproclamada porta-voz das vontades da família tradicional brasileira, de olho, como seus demais congêneres, nos votos que acredita que esse tipo de conduta lhe trará nas eleições municipais deste ano.

Nem bem haviam esfriado os restos imortais do cartunista Ziraldo, ei-lo vítima do fervor censório do prefeito de Conselheiro Lafaiete, cidade localizada em seu próprio estado natal, Minas Gerais, que expressou sua intolerância ao livro "O Menino Marrom". Coincidência ou não, todos os livros censurados Brasil adentro têm o racismo por temática. E, por ordem judicial ou revisão da própria decisão administrativa, as desculpas vieram todas na mesma linha de que as obras haviam sido apenas "recolhidas temporariamente para avaliação", do que se pode extrair a boa notícia de que a palavra "censura" ainda causa algum incômodo à consciência dos que a praticam, nem que seja por oportunístico recálculo político-eleitoral.

Por sinal, de Minas veio outro episódio bizarro, não por conta de censura ou queima de livro, mas pela ignorância azêmola do governador Romeu Zema. Presenteado pela secretária de educação de Divinópolis com um exemplar da obra da poeta Adélia Prado, ele, que não parece dado a leituras -- a despeito do que disse o entrevistador encarregado de entregar-lhe a oferenda, que o laureado "gosta muito de ler" (penso que tenha feito uma ironia) --, Zema deu uma breve folheada nas páginas, fez cara de quem não encontrou as figuras que esperava ver e, com a falsidade de um político tradicional que se julga esperto, elogiou o livro por ser "muito bonito". E, sem enrubescer, perguntou ao outro se "ela (a autora) trabalha aqui". 

O vídeo, que é recente, viralizou pelas redes sociais e, passados alguns dias, voltou a circular, agora porque, para azar da zêmula bípede que governa Minas e sorte dos brasileiros, a mineira Adélia Prado venceu o prêmio Camões de literatura, concedido pelos governos de Portugal e Brasil a autores de língua portuguesa. É de se supor que, a esta altura, o governador já saiba onde, enfim, ela trabalha, e quem seja ela.

E por falar em imortais, nem mesmo o fundador da Academia Brasileira de Letras escapou da sanha dos intolerantes à cultura e ao saber de que possam desfrutar os comuns do povo. Muito tempo antes de a influenciadora digital estadunidense Courtney Henning Novak ter viralizado ao compartilhar sua experiência de ler e se maravilhar com "Memórias Póstumas de Brás Cubas", a célebre obra de Machado de Assis já havia sido uma dentre as mais de quatro dezenas censuradas pela Secretaria de Educação de Rondônia, em fevereiro de 2020.

Por derradeiro -- para mim , a pior das notícias --, recolheu-se há poucos dias livro contendo referências à vereadora Marielle Franco e à antropóloga Débora Diniz, por suposta “apologia ao aborto”.  Ao saber do triste episódio que ocorreu bem ao meu lado, eu me lembrei do célebre poema "No Caminho, Com Maiakóvski", em que seu autor Eduardo Alves da Costa começa escrevendo que "Na primeira noite eles se aproximam / e roubam uma flor / do nosso jardim" e conclui com "Até que um dia / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa / rouba-nos a luz e / conhecendo nosso medo / arranca-nos a voz da garganta", que fecha com o verso "E já não podemos dizer nada".

No meu caso, já não se trata de "eles" terem invadido o meu quintal para roubar uma flor, pisotear as demais, matar meu cão. "Eles", de fato, alcançaram a minha sala de jantar, estão sentados à minha mesa, comendo do meu prato, porque são pessoas com quem convivo ou mantenho relações, por dever de ofício, e eu me sinto sufocado por não poder erguer a minha voz.
 
Que medo essa gente ignorante e covarde tem das palavras escondidas num singelo livro, decerto porque incapazes de as compreender.

(Luís Antônio Albiero, em Capivari, SP, aos 30 de junho de 2024)
 

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24/06/2024

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01/06/2024

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APRESENTAÇÃO

Crônicas de autoria do advogado público Luís Antônio Albiero, que se apresenta como cronista, contista, poeta, porém ainda aspirante a escritor, presidente e membro único do "Movimento dos Escritores Sem Livro", por até hoje não ter nenhum livro físico editado (embora existam poemas e crônicas publicadas em coletâneas) e jamais obtido qualquer premiação.

O autor nasceu em 19 de novembro de 1963 no município de Rafard, então distrito de Capivari, dupla naturalidade que o leva a classificar-se como "capifardense", condição que divide com personalidades como Tarsila do Amaral e Paulo Betti, dentre outros biconterrâneos.

Filho de Ildefonso Albiero e Apparecida Feliciano Albiero, começou a trabalhar logo cedo, no bar de um tio. Seu primeiro emprego, aos dezesseis anos de idade, foi como 'office boy" no extinto jornal "Tribuna Regional", de Capivari, do qual foi logo em seguida entregador e, aos dezoito, revisor e redator. Em 1983, aprovado em concurso público, tornou-se escrevente do Tribunal de Justiça de São Paulo, junto ao fórum de Piracicaba, onde trabalhou com os juízes Frank Célio Soares Hungria e Urbano Ruiz, dentre outros. Aprovado também em concurso público, tornou-se funcionário do Banespa, em 1984, tendo alçado ao cargo de advogado em 1991, por concurso interno. Em 1989, foi eleito vereador de Capivari pelo Partido dos Trabalhadores e, em 2001, foi eleito para seu segundo mandato.

Em 1993, ao final do primeiro mandato de vereador, fundou, com a esposa Luciana Falcirolli Albiero, o jornalista Marcelo Andriotti e seu pai, professor Delçon Andriotti, o jornal "Dois Pontos - Capivari", que marcou a história do jornalismo na cidade por sua coragem e independência e que sobreviveu por longevos treze anos sem qualquer dependência dos poderes públicos. Foi editorialista, chargista, quadrinista e assinou as colunas 'Pingos nos Is", de viés político, "Crônicas & Agudas" e "Olhos Abertos". Criou os célebres "Os Doispontinhos", que ao longo dos anos interagiram em bem-humorados quadrinhos com os prefeitos da cidade.

Foi assessor jurídico junto à Liderança da bancada do Partido dos Trabalhadores na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, a convite do deputado Antônio Mentor, de 2003 a 2004 e de 2006 a 2013. Em 2015, a convite dos vereadores Moacyr Romero, Celso Zoppi e Adelino Leal, todos do PT, foi assessor da Câmara Municipal de Americana e, a partir de 2017, a convite do presidente Alfredo Luís Ondas (PMDB), foi procurador da mesma edilidade.

Aprovado em concurso público em 2005, por força do qual deveria ter sido convocado em 2010, e preterido por um prefeito tucano por conta de seu histórico petista, o autor, após longa batalha judicial, em 13 de agosto de 2018 foi finalmente nomeado ao cargo efetivo de Procurador do Município de São José dos Campos, que exerce até a presente data, em vias de se aposentar.

Mantém perfil no Facebook ao qual estão vinculadas as páginas "Crônicas & Agudas", em que publica os textos que compõem a presente obra e têm viés político, e "Crônicas do Buraco da Onça", de caráter pessoal e intimista.

As crônicas que abrem esta série foram publicadas em coletâneas da editora "ComPactos", do Paraná: "Fênix e a Primavera" (em "O Brasil Voltou"), "
De Facas e de Cebolas" (em "Quatro Anos nas Sombras”), "Velho" (em "Viver a Velhice"), "Deus e o Diabo na Terra do Marreco" (em "Depois da Tempestade") e "Maior e Vacinado" (em "Vendo a Vida Passar - a Travessia pela Pandemia"). Já "Os Manés Chegaram ao Supremo" estará no próximo livro, "Bendita Democracia", ainda no prelo.

É pai de Mariana (in memoriam) e Estêvão
Compre pelo site clicando aqui.

05/03/2024

O Soltador de Palavras

Como quem soltasse gases ou fosse acometido de sudorese, ele soltava palavras. Era incapaz de represá-las em suas entranhas, tinha necessidade fisiológica de as libertar, fosse como fosse, estivesse onde estivesse.

Começou, como qualquer um, soltando as palavras pela boca. Na infância, ele as expelia por meio de correspondências que trocava com distantes desconhecidos; bem mais tarde, com o advento do computador e do celular, passou a evacuá-las por e-mail, por blogues, pelo Facebook e X-Twitter. Arrotava-as ao ar livre ou por microfones. Preferia os meios que as levassem mais longe, para que mais pessoas pudessem senti-las. 

Escrevia versos e frases soltas em guardanapos de papel, que esquecia em bares, lanchonetes, restaurantes, ou espalhava pelos bancos de ônibus, praças e igrejas. Poltrão, todavia, não foi capaz de ceder ao desejo de pichá-las no alto dos prédios, tampouco em paredes e portas de banheiros.

Por algum desarranjo intestino, era um soltador de palavras compulsivo. Sonhava, entrementes, poder um dia aprisionar as palavras que excretava sem método e as confinar num livro.

Um dia, enfim, decidiu buscar ajuda de profissionais. 

(Perdoem-me se conspurco o ambiente)

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Escrita e postada originariamente no grupo de alunos do curso "Escrita Criativa", ministrado pelo escritor Tiago Novaes

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Luís Antônio Albiero


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25/01/2024

A Pequena São Paulo

A primeira vez que fui a São Paulo foi para retirar meu “RG”, o registro geral do qual se origina a cédula de identidade, documento com foto que se presta a provar que eu sou eu. Precisava do número para anotá-lo na inscrição para o vestibular da Fuvest, e com urgência, em razão do prazo. O despachante Corimba, de minha cidade, recomendou procurar um congênere que atendia no número 51 do Largo Paiçandu. Não me lembro do nome dele, mas era um dos integrantes dos "Demônios da Garoa", grupo musical que representa com fidelidade a "terra da garoa" - suponho que fosse o Ventura Ramirez, conterrâneo nascido no distrito de Mombuca em 1939.

Eu tinha de dezessete para dezoito anos – ainda menor, portanto – e fui acompanhado de minha mãe, que havia residido na capital paulista do início da idade adulta até casar-se, em fins de 1962. Fazia, portanto, em torno de vinte anos que ela não ia até a maior cidade do país. De todo modo, ela conhecia mais do que eu.

Até então, eu conhecia São Paulo apenas pela televisão, desde que acompanhei a transmissão do incêndio do edifício Joelma, em fevereiro de 1974, a inesquecível tragédia em que as pessoas em desespero atiravam-se para a morte, ao vivo e em rede nacional.

A primeira visão que tive da cidade, no entanto, foi a de uma rua escura, à noite, com as luzes dos postes acesas. Era uma bela imagem que estampava a folhinha de calendário do ano 1971 que meu tio mantinha afixado à vista da freguesia, em alguma prateleira do boteco em que eu trabalhara desde então, na flor dos meus sete anos de idade. A legenda informava tratar-se da avenida Nove de Julho, em cujo inicio fica o mesmo edifício Joelma. Aquela ilustração cravou em meu imaginário a impressão de que a capital dos paulistas era uma cidade sombria; ainda assim, a cintilância das lâmpadas ligadas exercia em mim uma espécie de atração que eu não era capaz de compreender.

Voltamos, posteriormente, eu e minha mãe, para minha posse no cargo de escrevente, em 1983, e, um ano e meio depois, para meu ingresso no Banco do Estado de São Paulo, o extinto Banespa, hoje transformado em Santander. Servi como escrevente, pelo curto período, junto ao fórum de Piracicaba e fui, por seis anos e meio, escriturário e caixa do Banespa na agência de minha própria cidade, o que me aliviou os custos com viagem e almoço em restaurantes piracicabanos.

Seis anos depois, aprovado para o cargo de advogado do banco, vi-me na contingência de me mudar para São Paulo. Eu já era vereador em Capivari e, no início, precisei viajar diariamente entre minha cidade natal e a capital. No início de 1991, pedi licença à câmara e aluguei um apartamento na rua Maria Antônia, uma espelunca dotada de um fogão amarelo, velho e sujo, uma cama e um guarda-roupas povoado por baratas. Ficava num prédio defronte a rua Doutor Vila Nova, na vila Buarque – a uma quadra da Consolação, bem próximo do Mackenzie. No térreo, havia uma padaria.

Na primeira semana, tendo deixado, com desconfiança, as chaves com o porteiro, um sujeito magro, de bigode, cabelos desgrenhados e cara de safado, para que ele abrisse a porta quando chegassem os móveis que eu havia encomendado, fui premiado com um assalto. Ao chegar no apartamento à noitinha, notei a porta destrancada, só encostada. Abri e logo constatei que faltavam itens que havia trazido do interior. Como eram poucas as coisas que havia no muquifo, somente o que eu conseguira trazer como bagagem de mão, pois tudo o que comprara para a nova residência ainda não havia sido entregue, tomaram-me apenas um desodorante, um rádio-relógio, uma antiga máquina de escrever portátil e um barbeador elétrico que havia acabado de ganhar de presente de Luciana. Tivessem esperado mais um dia e teriam levado a pequena TV Phillips de vinte polegadas que eu comprara no Mappin no mesmo dia. Nesse mesmo magazine, hoje extinto, comprei um novo barbeador, para não decepcionar minha amada namorada, e uma máquina de datilografar semelhante à furtada, pela qual eu tinha alta estima.

O departamento jurídico do banco ficava no décimo primeiro andar do edifício da rua Doutor Falcão, onde hoje está sediada a prefeitura do município, um prédio quadrado que lembra a caixa-forte do Tio Patinhas em cujo teto há o famoso jardim suspenso. No dia em que me deparei com o furto ao meu apartamento, eu havia saído do trabalho e ido para casa a pé, acompanhado da colega Adriana, mas em geral tomava um ônibus urbano que saía da praça do Patriarca. Numa das primeiras viagens, passando pelo largo do Paiçandu, avistei pela janela um conhecido conterrâneo, um sujeito magérrimo, de barbicha, óculos pesadamente grossos, pernas tortas, parado num dos pontos de espera em posição de quem tentava enxergar o letreiro dos coletivos – com a mão cobrindo o alto dos olhos, como se tapasse o que restava de sol. Era o inconfundível Ardumanes, mas não tive como falar com ele, pois o vi de passagem e a larga distância.

Costumava caminhar com colegas pelo centro de São Paulo depois do almoço, no entorno do prédio em que trabalhávamos. Numa ocasião, enquanto atravessava o Viaduto do Chá com Rosélys, também colega advogada do banco, cruzei com quatro conhecidos de Capivari, seu Mário, jornalista, o professor Tarcísio, um de seus filhos e o cunhado, Cláudio. Conversamos brevemente, destacando o inusitado do encontro em pleno centro da capital paulista.

Às sextas-feiras, ao fim do expediente, tomava o metrô e ia direto do trabalho para a rodoviária, onde apanhava o ônibus das dezoito horas para minha amada terreola. Numa dessas, porém, os metroviários estavam em greve e, ao chegar à estação São Bento, deparei-me com um movimento muito intenso e desisti. Caminhei até a avenida Prestes Maia para tomar um táxi. Como eu, havia muitas pessoas no mesmo lugar acenando para taxistas, que não estavam dando conta da demanda. Conversando com algumas delas, não foi difícil encontrar quem também fosse para a rodoviária. Combinei com duas moças e um rapaz dividirmos o preço da mesma corrida. Fomos conversando animadamente durante o percurso, que se alongava em face do congestionamento inevitável. Conversa vai, conversa vem, ouvi uma das moças dizer que estava em cima da hora para pegar o ônibus para Capivari. Ao mencionar o nome da minha cidade, olhei espantado para o banco de trás. Mal podia crer que, em meio à multidão, no centro de São Paulo, eu encontrara uma conterrânea que se dirigia no mesmo horário para a terrinha, um município a cento e trinta quilômetros da capital, à época com menos de cinquenta mil habitantes.

Tomamos juntos o ônibus para a cidade natal, sentamo-nos em bancos contíguos e seguimos conversando. A moça contou que vivia com a mãe e um irmão, na capital, havia alguns anos, desde que a mãe, viúva e já em idade avançada, reencontrara seu primeiro namorado e, a partir de então, passaram a viver juntos. Achei curiosa a história dos namorados que se separaram na adolescência e, mais de trinta anos depois, vieram a se casar. Quis saber quem eram eles e, para nova surpresa, tratava-se de Miguel, o primo mais velho de minha futura esposa Luciana.

Pouco depois, já casados, mudamo-nos para o Itaim Bibi. Fazíamos as compras no Eldorado da avenida Pamplona, à noite. Em duas dessas vezes, encontrei no supermercado doutor Frank, juiz de direito de quem fora escrevente de audiências no fórum de Piracicaba, vizinha à minha Capivari. Cumprimentamo-nos e fiquei feliz por ter sido reconhecido pelo magistrado e a ele ter podido apresentar a minha esposa.

Um dos entretenimentos, nos finais de semana em que não partíamos para o interior, era rodar de automóvel pela São Paulo vazia, sem destino certo. Ao passar pela pequena e, por ser domingo, pacata rua Luís Coelho, paralela à avenida Paulista, a caminho da Angélica, ouvi um grito que me pareceu de alguém chamando por meu nome. Com a rua deserta – nem o mendigo idoso de muletas e longa barba branca que costumava pedir esmolas naquele trecho, a quem eu chamava de “papai Noel”, encontrava-se em seu ponto habitual –, não foi difícil parar o veículo, recuar um pouco e olhar. À esquerda, vi João Jerônimo, velho amigo da terrinha, que de fato gritara meu nome. Estavam ele e família saindo de um restaurante. Conversamos rapidamente e trocamos a mais célebre das promessas paulistanas, de que qualquer dia desses um apareceria na casa do outro.

Um dos meus lugares preferidos, aonde eu ia com frequência, era a livraria Saraiva, na praça da Sé, defronte o fórum João Mendes. Certa feita, ali encontrei outro conterrâneo, Luís Henrique, o “Spoke”, que residia há tempos na capital paulista. Em outro dia, bem próximo dali, enquanto tirava cópias xerox de um processo judicial no prédio da associação dos advogados, encontrei Tatiana, filha de João Jerônimo.

Na mesma região, na calçada da rua Riachuelo, confluência com a praça João Mendes – na verdade, uma rua que vem da praça da Sé e ladeia a Catedral, um dos pontos mais movimentados de São Paulo –, escutei alguém gritar meu sobrenome em meio ao povaréu. Não era de todo impossível que naquele vuco-vuco houvesse alguém com o meu nada comum sobrenome, mas a circunstância exigia que eu olhasse. Voltei meus olhos na direção do chamado e, de fato, era mais um conhecido. No meio do povo, avistei Armando, jornalista natural de Capivari que trabalhava na Câmara Municipal paulistana, próximo dali. Era assessor do então presidente José Eduardo Cardozo, que no futuro viria a se tornar ministro da Justiça. Conversamos e ele me convidou para visitá-lo na sede do legislativo municipal paulistano. Tempos depois, Armando me telefonou dizendo que Cardozo queria me conhecer, com intuito de estabelecermos relações políticas. Eu continuava vereador em Capivari. Marcamos dia e hora e, na data aprazada, para lá me dirigia quando o carro quebrou, num viaduto sob a avenida do Estado, e nunca mais tive oportunidade de conhecer o futuro ministro.

Houve também uma ocasião em que o mesmo carro, um Monza branco fabricado em 1984, apresentou defeito quando eu e Luciana chegávamos em uma igreja, no Belenzinho, para o casamento de um colega de trabalho. O danado enguiçou a duas ou três quadras do destino, numa rua tranquila do bairro. Um morador da vizinhança, de sobrenome Lobato, vendo os meus apuros, ofereceu-se para guardar o automóvel em sua garagem. Na segunda-feira, eu poderia transferi-lo para a oficina mecânica localizada bem defronte à sua residência. O mecânico era confiável, disse-me o solícito morador, e assim fiz, o que salvou nossa ida ao casamento e o restante do final de semana.

Como combinado, na segunda-feira fui logo cedo à casa do simpático morador e de sua garagem o mecânico e seus auxiliares empurraram o automóvel para dentro da oficina. Ao ver a placa indicando a cidade de origem, o mecânico disse que tinha uma amiga muito querida nascida em Capivari. E qual não foi a surpresa, mais uma, quando o mecânico, um baixinho gordinho de cabelos e bigodinho brancos, também muito simpático, me disse quem era a sua conhecida: a prima de Luciana, Cida, irmã mais nova do mesmo Miguel, padrasto da moça do táxi. Anos depois, revi o mecânico em minha cidade, no velório de Cida, falecida jovem, creio que aos cinquenta anos de idade.

Outra das poucas diversões de quando moramos em São Paulo era ir ao cinema, quase sempre nos shoppings centers, por ser lugar mais seguro. Fomos assistir à estreia do filme Malcom X numa das salas de cinema do imponente Conjunto Nacional, na avenida Paulista. Na escadaria de acesso à sala, encontramos Lúli e sua esposa. Lúli, também originário da terrinha, havia feito contato comigo ao tempo em que eu era vereador. Ele era assessor do então deputado estadual Pedro Dallari, com quem, a partir daquele contato, estabeleci sólida relação política. Ele mesmo, o deputado, encontrei um dia, enquanto eu atravessava a pé a esquina da avenida Nove de Julho com a Bandeira Paulista. Morador da região, ele passava com o carro oficial lendo um jornal no banco dianteiro, ao lado do motorista, com destino à Assembleia.

Quando voltamos a residir no interior, já fora do banco, tive de ir com um cliente ao fórum João Mendes, de onde saímos com destino ao Primeiro Tribunal de Alçada Civil. Ao atravessar a praça da Sé, em meio ao bulício popular, encontrei novamente doutor Frank, então já promovido a juiz de alçada, caminhando no sentido contrário. Tempos depois, ele viria a falecer no cargo de desembargador.

Em 2003, voltei a trabalhar na capital, como assessor jurídico da bancada do PT na Assembleia Legislativa. Ia de ônibus até Campinas, de lá ate a rodoviária do Tietê, onde tomava o metrô até a praça da Sé e dali até a estação Santa Cruz, onde finalmente tomava um ônibus até o Parque do Ibirapuera. No retorno, fazia o mesmo percurso em sentido contrário. No metrô, no entra-e-sai das catracas, avistei várias pessoas conhecidas da terreola, como Jaques, um sujeito careca e boa praça que eu costumava ver no Cine Vera Cruz, em Capivari, e as amigas Nadine e Luciana, sempre juntas, que frequentavam meu escritório.

Noutra ocasião, voltei à capital para uma consulta ao oftalmologista, doutor Mauro, na rua Francisco Leitão, em Pinheiros. Eu havia sido submetido a duas cirurgias para transplante de córneas, em 2014, e retornava para os exames pós-cirúrgicos. Residia, à época, em Americana. Como enxergasse tudo embaçado, haja vista que as córneas levam pelo menos seis meses após o transplante para permitirem uma visão próxima do normal, pedi ao amigo Rogério que me levasse. Em retribuição, convidei-o para almoçar em uma churrascaria, em Pinheiros. Lá, Rogério me informou que havia pessoas conhecidas no restaurante, César, prefeito de Rafard, cidade vizinha de Capivari e onde nasci, e alguns de seus auxiliares. Conquanto nada pudesse enxergar, cumprimentei-os.

O mesmo Rogério levou-me, posteriormente, para nova consulta, na mesma clínica. De novo, ofereci-lhe um almoço em retribuição ao favor, só que dessa feita em lugar mais modesto, numa padaria próxima ao endereço do médico. Na fila do self-service, enquanto montava meu prato, ouvi atrás de mim uma voz com forte sotaque familiar indagando se eu não era de Capivari, seguido de menção ao meu nome. Quase disse a ele que não estava certo de que fosse eu mesmo, mas que com certeza ele era de Capivari, tal a força do sotaque. Era Erinho, que me conhecia da terrinha e fazia um curso de pós-graduação nas imediações da padaria.

Essa profusão de coincidências estendeu-se também à Grande São Paulo. Residíamos no interior quando eu e Luciana fomos a um casamento em São Bernardo do Campo. A noiva, Helka, era irmã de Hérika, colega de república de minha esposa. Ao chegarmos à porta da igreja, reconheci, com estranheza, a voz do cantor, que se preparava para sua participação na cerimônia. Entrei e, de fato, era Miguelito, um renomado pianista capivariano. Os convidados foram, em seguida, recepcionados num local de Santo André. Lá, não só Miguelito abrilhantava a festa com seu talento como encontramos Vornei e esposa, sua filha - minha amiga Lílian -, um dentista e vários conhecidos de Capivari. A família do noivo era de Rafard!

Na primeira ida à capital, em busca do "RG", minha mãe aproveitou para ver as lojas da rua 25 de Março. Caminhávamos por lá quando fui acometido de uma necessidade inadiável de aliviar meus interiores. Adentramos a uma loja de tecidos e me lembro de ter sido atendido por uma garoto da minha idade que, muito gentil, me permitiu usar o sanitário do estabelecimento. Considerando tudo o que viria a me acontecer no futuro, dos tantos acasos que acabo de relatar, não duvido nada que aquele rapaz possa ter sido Fernando Haddad, companheiro de partido que, salvo mais essa possível coincidência, até hoje não conheço pessoalmente. E - vejam só! - ele comemora seu aniversário no mesmo dia de São Paulo. E, como eu, ele nasceu em 1963, em 25 de janeiro; eu, em 19 de novembro. Por aquela época, ele tomava conta da lojinha do pai na mais famosa rua comercial do Brasil.

Essa é São Paulo, tão imensa e tão pequena que quase cabe na palma da minha mão, praticamente uma extensão da minha amada Capivari. Estou convencido de que o rio que corta minha aldeia é mesmo maior (e mais belo, e mais livre) que o Tietê e o Pinheiros juntos, porque pertence a menos gente, segundo a poética de Fernando Pessoa, pela persona de Alberto Caeiro. E, de mais a mais, a pauliceia desvairada de Mário de Andrade sempre foi para mim o pequeno trecho lôbrego da avenida com seu luzidio noturno retratada na folhinha do calendário de 1971.

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11/10/2023

Eu, o Ministro

Os amigos e amigas que me acompanham decerto se surpreenderão com a notícia. Desde o início do governo Lula, desde o primeiro dia, a honroso convite que recebi do presidente, ocupo o cargo de ministro. Não tive como me negar a atender a um apelo do amigo Luiz Inácio, companheiro de longa jornada.

Não é um ministério de grande visibilidade, embora de vital importância, e por essas circunstâncias prefiro não divulgar. Quem me conhece sabe o quanto sou discreto e avesso a holofotes.

O fato é que, comandando uma pasta ministerial, fui convocado a depor perante uma comissão conjunta do Congresso Nacional. Convocado, não: convidado. Afinal, sou ministro. Optei por aceitar, pela compreensão que tenho de que todo ocupante de um cargo público tem obrigação de prestar contas de seus atos à nação.

Bem, seja como for, o certo é que na data aprazada lá estava eu, a enfrentar os leões desdentados da extrema-direita. Espero que ninguém tenha visto esse fastidioso episódio da vida nacional.

Fiz minha apresentação de modo sucinto, “sou advogado de profissão, procurador municipal, ex-vereador de Capivari, São Paulo. Palpiteiro de Facebook e Twitter, aliás, ex-Twitter, ou simplesmente “ex” (pronunciei “équis”; grafa-se “X”). Escritor frustrado, presidente e único membro do MESL, Movimento dos Escritores Sem Livro”.

Assim que concluí a leitura, senti um arrepio de arrependimento. Ser ativista de movimento, qualquer que seja, não é de bom tom naquele ambiente. Temi sair preso dali, por conta da sanha criminalizadora de vários membros do Parlamento aos movimentos sociais. Enfim, assim saiu, por sorte sem a repercussão temida.

Encerrei aí minha apresentação inicial, embora tivesse bem mais tempo à minha disposição. Percebi certo desconforto entre os parlamentares, mas é de minha índole, como disse, essa minha discrição.

Não vinha me inteirando muito a respeito do universo paralelo em que vive parte do congresso, de modo que não conheço bem os deputados e os senadores da atual legislatura. Até porque, desde o primeiro dia estou às voltas com as inesgotáveis tarefas da pasta. E todos sabem como Lula é exigente com seus auxiliares, sobretudo os mais próximos, como é o meu caso.

O primeiro a me fazer perguntas eu jurava que era um menino. Decerto seria filho de parlamentar, pensei a princípio, que, na ausência do pai ou da mãe, fazia-lhe as vezes.

Depois supus que fosse um daqueles “deputados-mirins” dos programas de incentivo a que as crianças tomem contato com a Política, comum nas câmaras de vereadores e assembleias legislativas, mas não entendi a razão de aquele rapazote participar de um ato oficial.

Ele fez um longo discurso atacando a mim e ao governo Lula, chamou-me de “ministro da justiça” (debito a confusão a este meu corpo roliço, embora em nada eu seja parecido com o amigo Flávio Dino) e, por fim, a gritos histéricos, me indagou por que na guerra desencadeada recentemente o governo teria tomado posição favorável aos palestinos e contrária aos israelenses.

Minha resposta, que dei com toda a serenidade que marca meu caráter, foi exatamente esta:

“O governo que aqui represento não tem posição a favor de um país e contra outro. A posição do governo brasileiro é histórica, vem desde 1947, e sempre foi pela paz, pela solução pacífica dos conflitos. O governo se guia pela Constituição, cujo artigo quarto prevê”.

Dei uma pausa e li:

“Artigo quarto. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios”.

Continuei dizendo que os pouparia do enfado de ler o artigo todo e que iria ao que interessa, como de fato fui:

“Inciso sétimo. Solução pacífica dos conflitos”.

E dei por respondida a pergunta.

Em réplica, ele vociferou contra uma tal “ideologia de gênero”, que estaria sendo praticada pelo governo, da qual jamais eu ouvira falar em reunião ministerial alguma. A partir daí, fez duras críticas ao fato de o governo ter enviado a Israel um avião da FAB, dentro do qual, disse ele, haveria um certo “banheiro unissex”.

Eu não tinha a menor ideia do que o menino falava (“a imaginação infantil é mesmo fértil”, pensei) e nada respondi. Não tenho vocação para professor de jardim de infância.

Parêntese: numa reunião ministerial posterior à audiência, meu amigo e colega ministro Silvio me repreendeu, com a elegância que lhe é peculiar, dizendo que o rapaz era de fato um deputado e que deveria ser tratado como homem, não como moleque. Estranhei, mas se Silvinho está dizendo, eu acredito.

Depois dele foi a vez de uma senadora que, pelas feições, julguei que fosse uma ex-ministra do governo anterior, aquela que havia tido um exótico encontro com Jesus num galho de goiabeira.

“Por que o governo Lula...”, e fez a mesma pergunta do rapaz. Eu respondi, pausadamente:

“Artigo quarto, a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios”. E completei: “inciso sétimo, solução pacífica dos conflitos”.

Em seguida, foi a vez de outro que, pela aparência física e trejeitos engraçados, era o próprio Curly, irmão de Moe e Larry, de uma série famosa de TV da minha infância chamada “Os Três Patetas”.

Ele fez um discurso totalmente desconexo, que, confesso, não compreendi, e emendou a mesma pergunta. Dei-lhe a mesma resposta.

Assim se sucederam os parlamentares, um a um, uma a uma, dos quais só reconheci o mundialmente famoso “juiz ladrão”, ex-juiz, eterno ladrão.

Ao fim e ao cabo de quase dez horas em que a mesma pergunta me foi feita por todos os que me arguiram, à qual dei a mesmíssima resposta, sempre lendo o artigo quarto e o inciso sétimo, eu me despedi dizendo de minha alegria de poder servir à nação – sem outras palavras, senão essas e apenas essas mesmas.

Nesse instante, adentrou ao recinto um sujeito trôpego, apoiando-se nos ombros e cadeiras dos colegas, que reconheci como um senador capixaba cujo nome me escapa (só me vinha à mente “malte, malte”). Com a voz pastosa, arrastada, disse que meu comportamento, respondendo às perguntas com a mesma leitura do artigo quarto, inciso sétimo, da Constituição era um “deboche” - acusação que me fizeram todos os demais parlamentares, após cada resposta dada -, e que, por essa razão, iria propor meu impeachment. Enroscou na palavra, engasgou duas ou três vezes, até que conseguiu pronunciá-la às inteiras.

Meu microfone já havia sido desligado, mas nem fiz questão. Debater com pessoa naquele estado é algo que fiz muito com um tio alcoólatra, na minha infância, e sei da inutilidade.

Peguei meu paletó que descansava sobre a cadeira, vesti-o e saí em silêncio, com meus assessores, da mesma forma como cheguei. E um só pensamento passava por minha cabeça: “que futuro terá um país cujos representantes no poder legislativo acham que ler e seguir a Constituição é um deboche?”

(Luís Antônio Albiero, de Capivari, SP, em Jacareí, SP, aos 11 de outubro de 2023).

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