Duas coisas precisam ser compreendidas e destacadas:
1. Lula não sairá da prisão apenas porque há ou haverá povo nas ruas.
2. Lula só deixará o cárcere se um grupo invadir a sede da Polícia Federal e o retirar de lá à força para imediatamente conduzi-lo ao exterior (ou a alguma embaixada ideologicamente alinhada) ou se um ou alguns ministros do Supremo (ou do STJ) lhe concederem a liberdade, seja absolvendo-o, seja reconhecendo a prescrição (vale dizer, reduzindo as penas aos patamares legais, artificial e injuridicamente elevados pelo TRF-4), seja deferindo um pedido de habeas corpus.
Nem um, nem dez, nem cem milhões de pessoas nas ruas gritando por Lula Livre comoverão um ou mais ministros do STF a libertá-lo.
A mobilização popular é fundamental, não se nega, pois pode criar um clima positivo, favorável à libertação de Lula, mas sem que um ou alguns ministros aponham suas assinaturas numa ordem concessiva da liberdade ao ex-presidente qualquer iniciativa nesse sentido será inócua e frustrante.
Em suma, as duas frentes de batalha são imprescindíveis. Não é possível focar numa e negligenciar na outra.
Por isso, penso que, a par das ruas cheias, seja necessária uma mobilização de peso no âmbito do Judiciário.
Para que qualquer juiz de esquina possa expedir uma ordem libertando Lula não faltam elementos, motivos jurídicos há a cântaros, mas é fato que o caso está na mais elevada Corte do país e todos os operadores do Direito sabem que um tribunal só concede habeas corpus contra uma decisão judicial se nela for detectada uma teratologia.
Teratologia vem do grego (τερατολογία, composto de τερατο- «monstro» e -λογία «estudo») e significa estudo do que é monstruoso, ramo da medicina que se dedica a compreender as malformações e deformidades dos seres humanos. Numa palavra, significa monstruosidade.
Uma decisão judicial teratológica, monstruosa, é aquela em que a nulidade salta aos olhos, de tão flagrante.
No célebre julgamento em que a ministra Rosa Weber acedeu à maioria precedente de um colegiado reduzido e abriu mão de inaugurar uma maioria no plenário, para negar um habeas corpus a Lula, o ministro Luiz Fux chegou a mencionar que não via, no caso, nenhuma teratologia.
Teratologia, porém, é o que não falta na sentença do tríplex do Guarujá, verdade que se aplica também à nova condenação imposta pela juíza "hard heart".
Teratológica é a decisão que condena um réu qualquer por corrupção passiva sem que indique um único ato de ofício que servisse de contraprestação à "propina" recebida.
Monstruosa é a sentença que, à míngua desse ato de ofício, condena o réu por conta de "atos de ofício indeterminados".
Aberrante é a decisão que condena o acusado porque alguém lhe "atribuiu" uma propriedade qualquer.
Monstruosa é o veredito que não enquadra a conduta do réu em nenhum dos três verbos do tipo penal da corrupção, que são "solicitar", "receber" ou "aceitar (promessa)", e ainda assim o condena.
Teratológica é a decisão que, não tendo havido a transferência da propriedade, nem mesmo da posse (sequer as chaves do apartamento foram entregues a Lula ou a algum de seus parentes ou assessores), do imóvel ao réu, condena-o por uma figura inexistente no Direito brasileiro, a tal "propriedade de fato".
Monstruosa é a sentença que condena com base exclusivamente em palavras de corréus, delações generosamente premiadas, ao arrepio de literal expressão da lei regente.
Teratológica é a decisão de um juiz federal de Curitiba, competente para os casos decorrentes de contratos da Petrobras, que julga supostos crimes cometidos no estado de São Paulo embora reconheça, literalmente, que no caso que acabou de julgar não havia qualquer relação entre a "propina" e contratos da petrolífera (ainda) estatal brasileira.
Todas essas teratologias jazem, a um tempo silenciosas e eloquentes, na única sentença que, de modo artificial - e, diga-se, igualmente teratólogico - mantém Lula encarcerado, esperando que emerjam a qualquer momento, qual o monstro da lagoa aguardado pelo público atordoado e atento da arquibancada, na genial letra de Chico Buarque e Gilberto Gil.
Se encher as ruas não levará, por si só, juiz algum a dignar-se a pegar uma caneta, ou seu token, para assinar uma ordem de concessão de liberdade ao ex-presidente, é preciso de alguma forma enfiar esse povo todo num instrumento jurídico adentro, que tenha tanto peso quanto a Paulista lotada de ponta a ponta.
O ideal seria que essa multidão firmasse um pedido de habeas corpus gigantesco arrolando, de modo direto, sucinto e objetivo - mais curto do que este meu textão, claro -, todas essas teratologias por mim destacadas. Seria impraticável, eu sei.
Mas é perfeitamente possível conceber um habeas corpus impetrado por um batalhão de grandes juristas do Brasil, como Afrânio Jardim, Celso Antônio Bandeira de Mello, Pedro Estevam Serrano, Dalmo (e Pedro) Dallari, José Eduardo Cardozo, Carol Proner, Gisele Citadino, Eugênio Aragão, Tarso Genro... Com gente da direita e do centro, inconformada com a quebra dos paradigmas do Estado Democrático de Direito, como Cláudio Lembo, que já se manifestou publicamente nesse sentido. Com juízes e promotores, como Marcelo Semer - lembrando que não se trata de manifestação político-partidária. Com ex-ministros do Supremo, como Nelson Jobim e Sepúlveda Pertence (e talvez Eros Grau, César Peluso e Carlos Ayres de Brito).
Enfim, um habeas corpus de peso, de inegável representatividade, que nenhum ministro do STF ou juizeco de esquina de Curitiba possa pensar em desconsiderar.
Uma peça jurídica encabeçada não pelos advogados, digamos, técnicos de Lula, mas por aqueles que têm mais identificação com o universo político, começando por Fernando Haddad, passando por José Roberto Batocchio, Luiz Eduardo Greenhalgh, Paulo Teixeira, Wadih Damous, Gleisi Hoffmann, Henrique Fontana. Sem desprezar, naturalmente, os bravos e valorosos Cristiano Zanin, Valeska Martins e toda a equipe de seu escritório.
A ideia, enfim, é que seja um habeas corpus juridicamente inatacável, essencialmente baseado na sentença, com destaque para os seus trechos mais aberrantes, sem necessidade de revolver provas ou examinar fatos, mas sobretudo politicamente robusto.
Penso que Haddad é a pessoa ideal e necessária para liderar um movimento com esse objetivo.
Eis minha modesta contribuição. Por favor, façam-na chegar a Fernando Haddad.
(Luís Antônio Albiero)
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