19/07/2018

Foi Há Meio Século

Você se lembra de onde estava e o que fazia cinquenta anos atrás? Não, certamente não. O mais provável é que nem fosse nascido. Pois é. Eu me lembro. Sim, eu tinha quatro anos e sete meses cravados e me recordo exatamente do que fazia e onde me encontrava em 19 de julho de 1968.

Trago na memória poucas lembranças de meu pai. Chamava-se Ildefonso, era conhecido como Nego, apelido carinhoso que já revela a estima que os outros tinham por ele desde menino.

Uma das lembranças mais significativas é do dia em que minha mãe, Cida, nos deu “remédio quente”, a mim e à minha irmã Eliana. Não sei que raio de remédio era aquele, mas era “quente”. E saímos a passear pela pequena Rafard eu, minha irmã e meu pai. Estávamos na esquina da rua Marechal Deodoro com a Maurício Allain, diante de uma venda. Meu pai nos comprou sorvetes. Voltamos para casa e à noite passamos mal, com bronquite. Minha mãe acreditou a vida inteira que eu e minha irmã passamos a sofrer com bronquite por causa daquele picolé. Onde já se viu dar gelado a quem tomou “remédio quente”!

Outras lembranças são mais agradáveis. Eu me lembro de quando escrevi meu próprio nome num prendedor de roupas, de madeira. Até então eu jamais havia ido a uma escola. Estávamos sentados no quintal de casa. Minha mãe pendurava roupas no varal e eu – a lembrança não alcança detalhes, mas imagino – copiei meu nome de uma folha de papel em que meu pai devia tê-lo escrito. A família fez festa pelo meu modesto feito. Foi a primeira vez na vida que me senti orgulhoso por algo que escrevi.

Num dia abri um berreiro na hora em que meu pai saía para o trabalho e me dizia que não poderia ficar. Noutro, íamos à missa, minha irmã no colo de minha mãe, ele trajando terno, carregando um guarda-chuva.

A mais marcante das lembranças é a do Natal de 1967. Havíamos ido à casa de meus nonos, Tone e Nina, que ficava na mesma rua em que morávamos, a umas três ou quatro quadras de distância. Meu nono não havia ainda comprado nossos presentes de Natal. Ele disse a mim e à minha irmã “peguem esses brinquedos. Comprei para o Joãozinho e para a Oliete (filhos de tia Vitória, hoje também já falecida), mas depois eu compro outros para eles”. Foi meu primeiro presente de Natal, um caminhãozinho tipo guincho. Tinha até uma roldana e uma cordinha na carroceria, com um gancho na ponta.

No meio do caminho da casa do nono à nossa há a igreja de Nossa Senhora de Lourdes, padroeira da cidade. Meu pai nos levou até à porta e nos mostrou o presépio. “É por ali que vem Papai Noel”, disse-nos.

Outra recordação é de meu pai varrendo a rua. Ele, filho de agricultores, deixou o campo e, com um irmão, meu tio Nico, também já falecido, montou uma transportadora. Tinham apenas uma carreta. O motorista era um negro risonho que me carregava no colo, não me vem à mente o nome dele. Não deu certo a sociedade. Com o dinheiro da venda do caminhão, ele e minha mãe compraram a casinha. Ficou descapitalizado e desempregado. Minha mãe foi à luta. Conseguiu um emprego para ele na prefeitura. Ela contava que foi difícil. Genaro Vigorito, primeiro prefeito da cidade recém-emancipada, disse a ela que ele não precisava, “os Albiero são gente rica”. Quando asfaltaram as ruas da vizinhança de casa, meu pai integrava a turma. Ele fazia a varrição após a aplicação do asfalto. Do portão de casa eu o vi trabalhando.

Não me lembro de nenhuma vez em que eu o tenha chamado de pai. Poucos diálogos com ele me restam na memória. Certa feita, sentados eu, ele, Eliana e a prima Célia na minha cama, meu pai nos mostrou um relógio de pulso e disse que havia sido presente do nono.

Noutra ocasião, eu o acompanhei ao médico. Tomamos o ônibus em Rafard e descemos na rua 15 de Novembro, em Capivari, defronte onde hoje é a loja Paz Vídeos. Desci do ônibus com as passagens. Meu pai me disse para devolvê-las ao motorista – era Tito ou Sílvio Braggion, não me lembro ao certo, ambos primos dele (em Rafard, éramos praticamente todos parentes). Eu, já metido a fazer graça, rasguei os tíquetes. Rimos todos, despedimo-nos do primo e rumamos os dois ao consultório do Doutor Máximo Guidetti, logo ali adiante.

Não me recordo de nenhuma lição que ele tenha me dado. Nenhuma bronca, nenhum conselho, nenhuma palavra sobre como eu devesse me comportar, e isso é o que mais me entristece. Tudo o que sei do caráter de meu pai, por testemunho de quem o conheceu, é que ele era um homem bom. Esse foi e é o único exemplo que ele me deixou. Um homem bom e trabalhador, que não se envergonhava de exercer um ofício modesto. É esse modelo que eu me esforço para seguir.

Em 19 de julho de 1968 eu estava na casa dos meus nonos. O lugar estava cheio e havia um corpo no meio da sala, descansando num esquife. A certa altura, minha irmã chegou. Havíamos ficado uns dias na casa de tia Luzia, enquanto meu pai esteve internado. Naquele dia, porém, nos separamos. Eu cheguei primeiro, com minha mãe. Eliana chegou depois, com tia Luzia e calçando chinelos novos. Briguei com ela por causa dos chinelos de dedo. Em dado momento, chegou tia Vitória. Ela se aproximou do caixão e, ao ver o corpo do irmão, deu um grito longo e dolorido que ecoa em minha alma até hoje. Creio que só então eu me dei conta de que não era uma festa.

O féretro saiu da casa dos nonos para a igreja, na mesma quadra. Minha última lembrança é do cortejo. Chovia fino. Homens de ternos e guarda-chuvas pretos carregavam o ataúde, caminhando rumo ao cemitério de Rafard. Fiquei na casa dos nonos e da esquina eu via a procissão, uma quadra acima.

Ele tinha apenas quarenta anos de idade, completados um mês antes. Eu não sabia, mas naquela tarde chuvosa de 1968 eu me despedia de meu pai. Que era um homem bom e trabalhador.

(Publicado originalmente em 19 de julho de 2018 no meu Facebook - Luís Antônio Albiero)

15/07/2018

O Melhor da Cidade

Um conterrâneo e velho conhecido fez uma sugestão ao grupo "Capivari Melhor", do qual ambos éramos integrantes, que me ensejou a seguinte resposta.

Isso foi em 2018:

**********

Meu caro Carlinhos G***, que decepção tive ao ler esse seu infeliz comentário, logo vindo de você, a quem reputo uma pessoa inteligente, sensata, cordial.

A ideia de que nós, petistas - que antes de sermos petistas somos capivarianos iguais a você -, deixemos o grupo para nos confinarmos num agrupamento de que participem apenas os que pensam igual a nós emparelha com ideias que, no passado, levaram um certo governante alemão a confinar judeus em fazendas cercadas por alambrados e soldados. Daí a querer nossa extinção em câmaras de gás será um pulinho...

Meu caro, faço um apelo à sua inteligência e ao bom senso que ainda creio que habite em seu ser.

Você nos chama de "fanáticos". Eu pergunto: o que é o "fanatismo"?

E eu mesmo respondo. Fanatismo é o que exibem pessoas que seguem uma ideia levados apenas pela emoção, por um sentimento, por uma necessidade de adesão tão forte que dispensa o uso da razão, do bom senso, do raciocínio lógico e inteligente.

Fanático é, por exemplo, o sujeito que crê mais na cura por oração do que na medicina que muitas vezes ele próprio pratica. Fanático é o sujeito que se deixa levar por pré-concepções, por ideias preconcebidas, ou seja, por preconceito, do qual se origina o ódio, que cega e que mata.

Pois preste atenção nas nossas postagens e compare-as às dos outros, dos que se opõem a nós.

Nós acreditamos no debate civilizado de ideias. Por isso trazemos ao grupo argumentos, razões, fatos históricos, dados estatísticos, que embasam os ideais que defendemos.

Defendemos Lula pelo que fez pelo Brasil, em favor da economia, das empresas, pela criação de empregos e valorização dos salários, mas principalmente pelo que fez pelos mais pobres, a quem salvou da morte pela fome ou da exclusão social (foram mais de trinta milhões de brasileiros retirados da miséria), a quem levou esperança e oportunidades, a quem fez ingressar no mercado de consumo, nos shoppings centers, nos aeroportos e nas universidades independentemente da cor, do sexo, da origem, da classe social.

Lula fez o que fez e não se locupletou - tanto que foi necessário fazer um verdadeiro contorcionismo jurídico para condená-lo por um "apertamento" de quinta categoria que nunca foi dele, no qual ele jamais pernoitou uma única noite sequer, cujas chaves nem ao menos lhe foram entregues. Enfim, essa história estamos cansados de saber, e as máscaras começam a cair, a verdade aos poucos tem vindo à tona.

Do outro lado, dos que se opõem ao nosso pensamento, o que vemos? Pessoas que vão votar num troglodita defensor de métodos violentos, homofóbico e preconceituoso, e que nem sabem por que nele pretendem votar. Dizem que vão votar porque vão e ponto final. Não conseguem expor uma razão, até porque se se guiassem pela razão escolheriam qualquer outro candidato, menos esse.

Mas é a nós, que fornecemos razões, fatos, argumentos, que você chama de "fanáticos"!

Devemos ser, portanto, mais de trinta milhões de fanáticos. Aliás, devemos ser um país de fanáticos, pois Lula deixou a presidência com quase 90% de aprovação ao seu governo, sendo que a aprovação à sua pessoa superava esse limite.

Seu legado foi tão forte, tão portentoso que ele elegeu e reelegeu sua sucessora e agora, mesmo preso, mesmo sendo calado, massacrado pela mídia dia após dia, noite após noite, ele segue liderando todas - TODAS! - as pesquisas de intenção de votos. E tem o dobro das intenções do ogro que aparece em segundo lugar!

Se somos fanáticos, estamos bem acompanhados, meu caro, por gente do nível de um Chico Buarque, de um Paulo Betti, Marieta Severo. De Leonardo Boff, frei Betto, dom Angélico. De Jessé de Souza, Raduan Nassar, como fanático devia, segundo sua ótica enviesada, o saudoso Ariano Suassuna. Estamos ao lado de Perez Esquivel, Noam Chomsky, Jorge Mario Bergoglio (mais conhecido como Franciscus), Leonardo Padura. De incontáveis líderes e chefes de Estado de todo o mundo que querem Lula livre, candidato e eleito presidente.

Quanto à finalidade deste grupo, eu faço minhas as palavras do amigo Ovídio Panserini. Para que serve? A que será que se destina?

Levando em conta o nome, "Capivari Melhor", devo dizer que certamente não foi criado para reunir "o melhor" da cidade, a "nata" da sociedade, pois se fosse esse o objetivo eu me recusaria a participar. Não me agrada a soberba, a arrogância dos que se acham melhores do que os outros.

Quero crer que tenha sido criado com o objetivo de debatermos o que é possível fazer para que tenhamos uma "Capivari melhor", o que necessariamente passa pela discussão sobre como tornarmos este estado de São Paulo melhor, assim como nosso Brasil melhor - sobretudo neste momento de eleições estaduais e nacionais. Afinal, não somos uma ilha e o desenvolvimento de qualquer cidade depende do desenvolvimento do país, do estado, da região a que pertence.

Por isso, meu caro, nestes tempos de intolerância aguda, de certezas fulminantes, de ânimos acirrados, pessoas como você devem exercitar a tolerância, a compreensão, o respeito ao pensamento divergente.

Se quer continuar gozando do meu respeito (se bem que você o terá sempre, em qualquer circunstância), da minha admiração - se é que você julga isso importante -, eu lhe peço, por gentileza, não nos chame de fanáticos. Não nos confunda com os fanáticos, muitos dos quais estão por aqui, e talvez isso seja a causa da confusão.

E não deseje mais que nós nos confinemos e permaneçamos num grupo distante aguardando como cordeirinhos nossa eliminação numa câmara de gás, ainda que virtual.

De resto, façamos deste espaço um local de efetivo debate de ideias, em que cada um respeite as razões do outro e que todos saibamos expor nossos pontos de vista com a inteligência, com a serenidade, com a civilidade com que Luciana expõe. Eu tenho muito orgulho de tê-la como esposa, uma pessoa inteligente, com pensamentos próprios, como poucas pessoas aqui têm, e que os expõe com invejável capacidade. Aproveitem, ao invés de gastarem energia e pobreza de argumentos tentando desqualificá-la.

É do debate que nasce a luz.

Só assim, num ambiente verdadeiramente democrático, é que poderemos fazer da nossa Capivari uma cidade de fato melhor, em que todos nós possamos viver e conviver em paz, sem exclusão de ninguém.

07/07/2018

Todo Menino é um Rei

“Eu também já fui rei / mas qual / despertei”, cantava Roberto Ribeiro.

A vida não tem sido fácil para os nossos pequenos reis. Principalmente para os brasileiros.

Cada vez que penso nos meio-irmãos Kauã e Joaquim, estuprados e assassinados pelo próprio pai e padrasto em Linhares (ES), meu coração sangra. Decerto eles acreditavam viver em segurança num lar abençoado. Seu algoz, afinal, exercia funções de pastor. Não imaginavam que aquele que criam ser seu protetor era, na verdade, um desses religiosos picaretas que se aproveitam da fé alheia para enriquecer e que não poupam sequer a vida dos entes queridos para alcançar seus objetivos. Quem o viu dando entrevista dias depois de ter ateado fogo nos garotos percebeu que o falso religioso simulava um choro, mas não lhe escorria uma única lágrima por detrás dos óculos de sol que usava.

A menina Vitória Gabrielly, de Araçariguama (SP), também foi assassinada. Por engano, por conta de uma dívida com traficantes de droga com os quais não tinha relação alguma.

Nos Estados Unidos, crianças são separadas da família ao atravessar a fronteira em busca de melhores condições de vida. São barradas pelo ódio de um presidente que não se peja de adotar medidas truculentas para “proteger seu país”. Quem viu os pequenos desesperados, abandonados numa gaiola gigantesca, não teve como deixar de associar a cena à imagem dos campos de concentração onde Hitler depositava os judeus, a quem tinha por inimigos. Donald Trump escolheu o resto do mundo como inimigo de seu povo, especialmente latinos e muçulmanos. Quem não se comoveu com esse drama, quem não se indignou com a passividade de Michel Temer, com a pusilanimidade de seu governo ao ouvir calado o pito que o vice-presidente Mike Pence teve a audácia de nos passar em nosso próprio território, revela o mesmo caráter perverso do pastor assassino tentando ocultar a ausência de lágrimas.

Comovemo-nos, no entanto, com o drama dos garotos tailandeses, encravados numa caverna debaixo d’água, com quem os brasileiros se identificam mais facilmente. São tempos de Copa do Mundo e eles integram um time de futebol infantil. Poderiam estar em casa, acompanhando os jogos da Rússia, torcendo, discutindo os lances, fazendo prognósticos, como todo garoto fã do futebol.

Aí me vem à mente o menino da favela carioca a caminho da escola, mochila às costas, certamente ansioso para encontrar os coleguinhas, comentar o empate do Brasil com a Suíça, trocar figurinhas, porque é o que fazem os garotos durante uma Copa do Mundo.

Marcos Vinícius não usava o uniforme da seleção, provavelmente um sonho de consumo fora do alcance econômico de sua família. Uma camiseta amarela básica com o número e o nome de Neymar às costas o deixaria feliz, mas não, nem isso. Outro era o uniforme que vestia.

Muitos jogadores e torcedores acreditam que basta vestir a histórica camiseta verde-amarela para fazer os adversários tremerem. Marcos Vinícius acreditava na força do uniforme escolar.

Hoje, no entanto, ele não pode chorar a derrota do Brasil para a Bélgica. Sequer pode alegrar-se com as vitórias contra Costa Rica, Sérvia e México. Não teve tempo de ver crescer e frustrar-se a esperança de conquistarmos o hexacampeonato, pois teve sua vida interrompida, alvejado a caminho da escola por um tiro disparado por um “blindado”. Tinha quatorze anos e sobrevivia no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Ele reclamou da dor que sentia, mas não chorou. Afinal, um rei não chora. Apenas lamentou. “Ele não viu que eu estava de uniforme”, disse à mãe antes de morrer.

O uniforme da seleção não a torna imbatível. O escolar não blinda nossos garotos. Ainda assim, renovamos a esperança de que o melhor futebol do mundo voltará a ganhar uma Copa daqui a quatro anos e só nos resta continuar acreditando que a educação é a salvação para os garotos pobres deste país.

O menino da Maré já não reina neste plano. Não verá nenhuma dessas conquistas. Coube-lhe a dolorosa constatação de que o uniforme da escola não impede o triunfo da violência, da arbitrariedade, da injustiça.

(Luís Antônio Albiero, advogado em Americana-SP, ex-vereador do PT em Capivari-SP)

23/06/2018

Coração Verde e Amarelo

Não basta ser golpista, é preciso ser ridículo, do tipo que estufa o peito e esgoela: “minha bandeira jamais será vermelha!”

Além de confusão em relação ao que está acontecendo no Brasil, essa pessoa revela uma absoluta ausência de percepção histórica. Como assim, jamais será vermelha? O que a pessoa tem contra a cor, apenas uma cor?

Ignora a pessoa que, antes de os portugueses aqui aportarem, o Brasil existiu sob o signo do vermelho. Aqui sempre reinou soberana a enorme bola de fogo que do céu nos alumia e que ostenta fulgurante cor escarlate. Que dês d’antanho avermelhava a pele dos primeiros habitantes, que andavam pelados por esta imensa Pindorama. Tão pelados que os gajos d’além-mar, quando enfim cá chegaram enfiados em vestes grossas e pesadas que lhes causavam mal-estar e cheiro horrível, ruborizados ao se deparar com pintos e seios balouçantes e pererecas à mostra, chamaram aos aborígenes de “peles vermelhas”.

Ignora mais o infeliz, que o que de fato atraiu os portugueses, nos primórdios, foi uma árvore chamada pau-brasil, uma madeira resistente e vermelha da qual se extraía um pigmento de igual coloração, usado em pinturas e tingimentos. Aliás, o nome Brasil, assim como o da árvore que o inspirou, vem de brasa, de braseiro, da cor avermelhada de um pedaço de pau em chamas.

Há quem jure que o vermelho seja a primeira cor que o bebê enxerga e que teria sido a primeira que o homem batizou. É a cor do sangue que corre nas minhas veias, nas suas, prezado leitor, e – pasmem! – até mesmo nas entranhas dessa gente que a repugna sem saber por que. Por ser a cor do fogo e do sangue, é tida como a cor da paixão e do amor.

A igreja católica usa o vermelho para simbolizar o sangue e a vida de Jesus. As batas dos sacerdotes, o manto do altar são do mesmo tom nos dias em que se comemora a Paixão de Cristo, o Domingo de Ramos e a Sexta-feira santa. E eu fico só imaginando os católicos reacionários mais empedernidos fazendo igual campanha contra o “esquerdopapa” Francisco usando o lema “o sangue de Jesus jamais será vermelho!”

Especialistas afirmam que existem 105 tons de vermelho. É a cor por excelência, tanto que em espanhol se diz “colorado”, de colorido.

Nada obstante todo esse portfólio positivo da magenta, esse pedigree do sanguíneo, esse curriculum vitae invejável da piranga dos índios, a cor passou a ser tratada como em oposição às cores da bandeira brasileira, especialmente da dupla verde e amarelo que caracteriza a camiseta da CBF. Quem pagou o pato, quem diria, foi a gloriosa seleção canarinha, cinco vezes campeã mundial, na iminência de conquistar – tomara! – o sexto título.

Tanta ojeriza essa gente dedicou ao vermelho, por sua associação à ideologia de esquerda, que a direita quis se apropriar com exclusividade do verde-amarelo. Um símbolo nacional, cores oficiais da pátria brasileira, foi sequestrado por fanáticos cegos de ódio que foram às ruas seguindo o Pato Amarelo da FIESP, manipulados pela Globo, pedir um golpe de estado! Foram vestidos de dourado, mas vermelhos de rancor, espumando furiosos e brandindo a bandeira brasileira, dizendo que esta jamais terá a cor que desde a origem nos simboliza.

O mico foi tanto, a demonstração de estupidez tão extraordinária, que essa gente, que pôs no lugar da presidenta honesta a mais insaciável quadrilha de corruptos da História do país, hoje fica ruborizada de vergonha e, em plena Copa do Mundo de futebol, não tem mais coragem de usar a camiseta verde-amarela da CBF. O uniforme, antes sucesso comercial, encalhou e deu prejuízo a quem apostou nas vendas, deixou no vermelho os comerciantes mais entusiasmados.

Do lado do time da esquerda, os vermelhos como eu têm receio de, usando a camisa oficial da seleção, serem confundidos com os manifestoches, temem passar de otários. Ou seja, acabam sucumbindo ao sequestro do verde e do amarelo engendrado pela turma da direita.

É, porém, chegada a hora do resgate! É o momento de retomarmos o verde, o amarelo, o azul e o branco, as cores da bandeira do Brasil, para todos. Afinal, são um símbolo nacional e a todos pertencem, da esquerda à direita.

Aproveitemos a oportunidade que nos proporciona a Copa do Mundo da vermelhíssima Rússia e vamos, orgulhosos, vestir a camisa da seleção canarinha.

Eu já encomendei a minha, predominantemente amarela, verde no colarinho e no punho,em que o símbolo da corrupta CBF é substituído por uma gaiola aberta, de dentro da qual sai, como num chute, uma estrela vermelha, acompanhada de outras quatro menores, indicando que a esperança segue rumo à sua quinta vitória contra o ódio, e de uma frase em que se pede a liberdade daquele que caminha para completar seu tríplex eleitoral.

O país é nosso, a seleção não pertence à CBF, o futebol é o esporte preferido da maior parte dos brasileiros e a direita não tem o monopólio das cores nacionais. Não há razão para sucumbirmos e deixarmos de exercitar mais uma vez, em plenitude, nossa paixão coletiva maior. Tenhamos perspectiva histórica.

E que venha o hexa! Vai, Brasil!

(LUÍS ANTÔNIO ALBIERO, em Capivari, SP, aos 23 de junho de 2018)

16/06/2018

Deus e o Diabo na Terra do Quá

 

Desacorçoado com todas as injustiças que Moro vinha praticando contra Lula, Deus resolveu que devia interceder.
O criador do céu e da terra levou em conta que Lula socorreu quase quarenta milhões de seus amados filhos que viviam abaixo da linha da miséria, antes condenados a morrer de fome ou à exclusão do meio social, e resolveu ir pessoalmente à vara de Curitiba. E o fez como mandam os protocolos humanos.
Com seu jeitão humilde e educado, chegou ao saguão do Fórum, apresentou-se ao oficial de justiça que atendia à porta do juiz, conversou com sua assessora pessoal e pediu uma audiência com o chefe da Lava Jato.
Maravilhada diante de tão ilustre personalidade, a loura simpática, atrapalhando-se com seus grandes óculos e a correntinha que os prendiam ao pescoço, disse a Deus, com muito jeito:
- Espere um instantinho, por gentileza, meu senhor. Vou estar vendo com o meritíssimo, volto já.
E Deus, em sua reconhecida bondade sem fim, sentou-se, perdoou-a em pensamento pelo gerundismo e aguardou.
Lá dentro, a assessora informou o chefe:
- Doutor, Deus está aí na antessala e aguarda sua autorização para uma audiência.
Moro, sem alterar o semblante, sem fazer um mínimo gesto que pudesse amarfanhar sua camisa preta, lançou para a moça um olhar frio e disse, com a estrídula voz que lhe rendeu a famosa alcunha:
- Hããã... Quem ele pensa que é?
E não o atendeu.
Interessante é que uns dias antes o próprio Lula já havia recebido, sem qualquer restrição das autoridades lavajatistas, outra ilustre visita. Do Capeta, também em pessoa.
O Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num instante todos os reinos do mundo.
Disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei a liberdade. Se tu desistires de ser candidato a presidente, serás livre!
E lançou o Anjo das Trevas um tonitruante berro que ecoou pelo vale e se fez ouvir por todo o país:
- Lula livre!!!
O ex-presidente fitou-o com olhar matreiro, sorrisinho de lado, enquanto cofiava a barba branca, e perguntou ao Capiroto:
- Foi Gilmar Mendes que o mandou vir aqui, não foi?
O Coisa Ruim ferveu em ódio, avermelhou-se em brasa, mas não abriu o bico, cônscio de que a missão que cumpria era supremo segredo de justiça que não se vaza.
Lula, que vinha ocupando seu tempo na masmorra com leituras, recorreu a Vinícius de Morais. Lembrou-se de “Operário em Construção” e respondeu:
- Não!
O Tinhoso, revelando-se também iniciado em literatura, com gestos, trejeitos e eloquência de um ator em peça de Shakespeare recitou:
"- Dar-te-ei todo esse poder e a sua satisfação, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem bem quiser. Dou-te tempo de lazer, dou-te tempo de mulher. Portanto, tudo o que vês será teu se me adorares e ainda mais, se abandonares o que te faz dizer não."
Voltou-se para o presidente operário e aguardou-lhe a resposta a tão sedutora proposição.
Lula olhou com redobrada atenção para tudo que do alto do monte podia ver e, em cada coisa que via, misteriosamente havia a marca de sua mão.
O ex-presidente aquietou-se e, no longo silêncio, ouviu a voz de todos os seus irmãos, dos companheiros que morreram para que outros vivessem. Uma esperança sincera cresceu no seu coração e, na tarde mansa, agigantou-se a razão de um homem a quem quiseram pobre e esquecido. Razão, porém, que o fizera dum operário em construção um estadista construído.
E o operário disse:
- Não!!!
"E o operário fez-se forte na sua resolução.”
(LUÍS ANTÔNIO ALBIERO, em Crônicas & Agudas: https://www.facebook.com/147914562547688/posts/855821665090304/)
4.434
Pessoas alcançadas
1.261
Engajamentos
Pontuação de distribuição

10/06/2018

Parente é Serpente

“Parenti serpenti” é o título original de uma deliciosa comédia italiana dos anos 90 dirigida por Mário Monicelli. Tem o estilo a que se dá o nome de “humor negro”. Um casal de idosos reúne os filhos e netos para o Natal e, depois de uma breve sequência de momentos felizes, comunica-os que querem passar a viver com um deles, em razão da idade avançada. Começa então uma disputa para decidir qual dos rebentos levará os pais consigo. Todos recusam, alegando seus problemas pessoais.

É uma comédia de costumes em que se acentua a hipocrisia reinante em todos os lares e ambientes. Todos somos muito solícitos e nos irmanamos com alegria, até que chega aquela hora em que é preciso que um de nós descasque algum abacaxi verdadeiramente grande. Aí a coisa pega e cada um procura tirar o corpo fora.

Esse raciocínio, porém, não vale para Pedro Parente, ele que na semana passada deixou, tarde demais, a presidência da Petrobras. Parente é pau para toda obra! Precisa de alguém para fazer caca em favor do deus “Mercado”? Basta chamá-lo, ele está sempre disponível.

Nos anos 80, durante o desastroso governo de José Sarney, Parente estava instalado em cargo importante no Ministério da Fazenda, onde foi secretário-geral adjunto de 1985 a 1986. De 1987 a 1988, ocupou cargos elevados na Secretaria do Tesouro Nacional e, de 89 a 90, na Secretaria de Planejamento, que detinha status de ministério. Por esses tempos, segundo dados do IBGE, a inflação anual pelo IPCA passou de 79,66%, em 1986, a 363,41% em 1987, a 980,21% em 1988 e elevou-se a estratosféricos 1.972,91% em 1989. Era uma senhora inflação, convenhamos. Atendia pelo nome de “hiperinflação”. É verdade que nesse período Parente não ocupou cargos em que ele respondesse diretamente pela definição da política econômica, mas estava lá, compondo a equipe que o fazia.

Em 1990, quando Zélia Cardoso rapou a poupança de todos os brasileiros, ele ainda não compunha o governo de Fernando Collor de Mello, de triste memória, mas foi convocado em maio de 1991 para carregar o caixão. Parente ficou no cargo até 1992, ano do impeachment, e enquanto lá esteve participou da elaboração do orçamento da União.

De 1993 a 1994, durante o governo de Itamar Franco (PMDB), Parente estava do lado do inimigo, atuando como consultor externo do Fundo Monetário Internacional. Nessa época, a inflação ainda estava alta e o Brasil acumulava grande dívida externa. O FMI deitava, rolava e dava as cartas na economia do país.

Em meados de 2001, por conta da absoluta falta de planejamento e investimentos em geração de energia, houve um apagão elétrico marcado por blecautes que se repetiram por praticamente todo território nacional, iniciando uma crise energética que se prolongou até fevereiro de 2002. Todos os brasileiros foram obrigados a reduzir em 20% o consumo de energia, sob pena de pagar pesadas multas. Era então presidente monsieur Fernando Henrique Cardoso e adivinhe quem estava lá, em posição estratégica? Ele mesmo, Pedro Parente, que chefiava a Casa Civil (desde 1999) e foi escalado por FHC para coordenar um gabinete montado para tratar da crise, o chamado “Ministério do Apagão”.

Sua competência foi novamente colocada à prova (e de novo reprovada...) agora, no desgoverno Michel Temer, que, atendendo aos apelos e interesses do “Mercado” – esse sujeito nervoso e emocionalmente instável cuja cara ninguém conhece, mas faz ideia, atribuindo-lhe semelhança à do próprio capeta –, nomeou o tucano Parente presidente da Petrobras. Após mais de duzentos aumentos sucessivos nos preços dos combustíveis em apenas dois anos, eis que sobreveio o locaute das empresas de transportes e motoristas autônomos. Duzentos, enquanto durante os oito anos do governo Lula foram apenas oito aumentos, mesmo número nos seis anos em que Dilma presidiu a República. Parente foi atropelado pelos caminhoneiros. Depois de doze dias de paralisação, respirando por aparelhos, não resistiu e partiu da Petrobras para melhor. Após deixar o cargo, o valor das ações da estatal petrolífera caíram vertiginosamente, enquanto subiram as da BRF. Especula-se que o grupo comandado por Joesley Batista seja seu próximo destino nessa longa estrada da vida.

Entre blecautes e locautes, Parente faz jus à alcunha de “Ministro do Apagão”, o que torna inacreditável a relação de amor incondicional que o “Mercado” revela por ele. Parece alguém imprescindível, não importa os resultados que proporcione. É um ícone do tucanato, síntese perfeita do que representa para as camadas populares a alcandorada gestão tucana.

Assim como os filhos do casal do filme italiano, o “Mercado” também não existiria sem o povo, sem as pessoas que produzem, consomem e o alimentam. Porém, na hora em que o “Mercado” é chamado para cuidar dos “pais”, eis que – perdoem-me o “spoiler” – seu representante predileto explode a casa em que estes vivem. Com botijões de gás, como se espera de um profissional com experiência no ramo.

(LUÍS ANTÔNIO ALBIERO, advogado em Americana-SP, ex-vereador do PT em Capivari-SP)

02/06/2018

Cortem Nossas Asas!

Os caminhoneiros frearam o país. Bruscamente. O desastre foi inevitável. O engavetamento em que todo o Brasil se meteu resultou em avarias ainda não precisamente avaliadas.

Para muitos, no entanto, pareceu à primeira vista ser a oportunidade de o país retomar a rota da qual se desviou por força do golpe dos corruptos de 2016. Para outros, a chance de darmos ré até, pelo menos, o ano de 1964, com alguns militares mais afoitos já acenando com as baionetas pelo retrovisor.

O fato é que o país foi tomado de um misto de desespero e esperança – um e outra em doses excessivas. O que se viu, no entanto, foi uma sucessão de fatos hilários, que já descrevi na crônica “Febeapá Número 3” (publicada apenas no Facebook, nesta mesma página “Crônicas & Agudas”), um verdadeiro “festival de besteiras que assolam o país”, cuja sigla (“Febeapá”) dá nome a duas obras de Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do jornalista carioca Sérgio Porto, publicadas nos anos 70.

A manifestação dos caminhoneiros, por exemplo, jamais seria tolerada por um governo de militares. Seria reprimida duramente pelas forças policiais.

É um contrassenso manifestantes, que parecem prezar pelo direito de expressão, reivindicarem intervenção militar. É algo tão surreal como um liberto clamar para ser escravizado, um pássaro implorar para que lhe cortem as asas, um leão pedir de joelhos para que o enjaulem num zoológico, um homem livre rogar que o mantenham encarcerado.

Uma pessoa querida me enviou um vídeo em que um ator com cara de tiozão reaça bradava contra a classe política, contra suas "mordomias", e convocava para um grande ato na avenida Paulista em favor dos caminhoneiros, coisa de "um milhão de pessoas". Entusiasmada, ela dizia que deveríamos compartilhar o vídeo ao máximo.

Ao ver a imagem do ator, já fiquei desconfiado. Mesmo assim, fui até o fim. E acabei jogando um balde de água gelada na euforia da companheira.

O cara não fala abertamente em intervenção militar, mas deixa suficientemente clara sua posição nesse sentido. "Está nas entrelinhas”, disse eu a ela. Ele mencionava destituição ou renúncia de “toda a classe política” e completava dizendo que “pelas urnas não dá mais”...

Perguntei a ela quem é que substituiria "toda a classe política"? Importaríamos governantes da Europa? De Marte? A fala é sedutora, é contra os privilégios, contra os desmandos, contra a corrupção. Em 1964 foi assim também. Acabamos de passar por algo semelhante em 2016, com o impeachment.

E como é que "o povo" iria governar? Quem seria o líder? Como seriam escolhidos os ocupantes dos postos chaves das administrações, desde o governo federal até cada município do país?

Diante de minhas ponderações, ela me disse que talvez Lula pudesse ser esse líder. Eu, lulista de carteirinha, continuei: "Pois é. Mas como? Por aclamação? Ele se tornaria um rei?”

Não existe saída fora da Democracia. Por isso é necessário focar incansavelmente na defesa do estado democrático de direito, no respeito à Constituição, à soberania da vontade popular, ao voto.

Quando Lula se entregou ao invés de fugir, de exilar-se numa embaixada qualquer, mesmo tendo certeza, mais do que ninguém, de sua própria inocência, que recado ele nos deu? Que, chova ou faça sol, temos de respeitar as instituições e brigar por nossos direitos dentro das leis, num ambiente em que impere a legalidade. Contra as iniquidades, contra o arbítrio, nós temos que lutar sempre pelo cumprimento das regras jurídicas democraticamente estabelecidas.

De mais a mais, segui ponderando à minha interlocutora, os políticos que aí estão são reflexo direto da nossa sociedade. Se eliminarmos todos eles, se os levarmos todos de uma só vez a câmaras de gás – como parece que é o desejo insano de grande parte das pessoas –, imediatamente teremos de substituí-los. E na mesma imediatidade os substitutos se tornariam o quê? “Políticos”, ora essa! Ei-los aí novamente, extraídos do mesmo povo, que com igual rapidez reproduziriam os mesmos defeitos, as mesmas mazelas, pois, sendo eleitos ou escolhidos por uma inteligência suprema, eles são todos nós!

O que precisamos é aprimorar nossas instituições, aprimorarmo-nos todos como seres humanos, até que um dia, lá distante, atinjamos o ponto ideal.

"Vai demorar”, disse eu a ela. “Muito”, enfatizei. “Décadas. Séculos!", concluí.

Ela refletiu, lamentou não ter percebido as intenções contidas no vídeo, lastimou já o ter enviado para muita gente e me agradeceu. Só me restou dizer à companheira: "acontece!..."

O movimento serviu, pelo menos, para a queda de Pedro Parente, desde ontem não mais presidente da Petrobras, mentor de uma política de preços nociva aos interesses da nação brasileira.

Assim sendo, fé em Deus e pé na estrada!

(LUÍS ANTÔNIO ALBIERO, advogado em Americana-SP, ex-vereador pelo PT de Capivari-SP de 1989/92 e 2001/04).

01/06/2018

FEBEAPÁ Número 3

É o novo Febeapá, título dos livros de crônicas do saudoso Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do escritor e jornalista carioca Sérgio Porto, falecido em 1967, acontecendo espontaneamente na vida real, à revelia do seu potencial autor.

Refiro-me à sequência inesgotável de fatos hilários produzidos pelos personagens do Golpe de 16, desde a patética sessão da Câmara em que os deputados corruptos e parentes de corruptos votavam para derrubar Dilma Rousseff "por Deus, pela família, pelo coronel Brilhante Ulstra, pelos corretores de imóveis e pelos motoboys" até os mais recentes candidatos ao protagonismo de uma pretensa derrubada de Temer. Um novo e estranho golpe a seis meses de uma nova eleição.

Hoje vi um vídeo em que um grupo de manifestantes, autointitulados "pelotão dos caminhoneiros", foi a uma base militar no Rio Grande do Sul entregar aos milicos os seus caminhões, antecipando-se à ordem dada pelo ocupante da Presidência da República, com direito a perfilamento e a bater de continência dos novos soldados, autênticos voluntários da pátria. A espécie humana não encontra mesmo limite à parvoíce.

Tenho recebido uma profusão de áudios e vídeos em que supostos capitães e coronéis desafiam a autoridade de seus superiores, inclusive e principalmente do chefe supremo das forças armadas, um dos papéis constitucionais reservados ao presidente da República. Anoto que a Constituição não distingue entre presidente legítimo do usurpador com foros de legitimidade. Insubordinação é algo inadmissível no meio militar, em que impera a hierarquia. Em tempos de governo raquítico, porém, toda esdruxularia é possível.

Mas há mais. Nas gloriosas redes sociais que, segundo Umberto Eco, escritor italiano morto em 2016, deram vez e voz à imbecilidade, não faltaram manifestantes decepcionados com a traição do Exército brasileiro à sua tão nobre causa, a ponto de chamarem os comandantes de "comunistas"!

Em outro áudio, alguém informa a todos os caminhoneiros que Michel Temer havia acabado de assinar "uma liminar" determinando isto ou aquilo. Ora, eu nunca soube que Temer fosse juiz ou que presidente concedesse liminares. Detalhe: ele teria assinado o tal documento "em conjunto com todos os deputados federais e estaduais". Deve se tratar de uma lista telefônica ou algo parecido, imagino.

E há até mesmo um áudio em que um figurão da República - ora um certo deputado federal, ora o próprio Carlos Marum - grava uma mensagem no WhatsApp contando a um amigo detalhes da estratégia do governo para enfrentar os caminhoneiros, mas adota o extremo cuidado de fazer uma importante ressalva logo no início: "não deixe vazar este áudio!". Sinto informar, ministro. Vazou!

Agora acabei de receber mais uma mensagem, em que algum manifestante - suponho que seja, pois o movimento, como nas jornadas de junho, peca pela ausência de um líder, um interlocutor autorizado a falar em nome do conjunto - pede a renúncia do presidente e de "todos os ministros de Estados". Assim mesmo, no plural. Com um adendo: "em todas as esferas". Esferas de governo, quero crer. Com certeza inclui a totalidade dos ministros estaduais e, se minha imaginação não estiver indo longe demais, também os bravos ministros municipais...

Há quem peça a renúncia ou destituição de todos os cargos, eleitos ou não - do presidente da República e congressistas aos vitalícios ministros do Supremo Tribunal Federal, com direito a citação dos prediletos dessa turba ensandecida, Lewandowski e Toffoli, além de um certo "beiçola" (alguém tem ideia de a quem o manifestante possa estar-se referindo? Minha imaginação esgotou-se). O passo seguinte, creio, será importarmos políticos da Europa, quiçá marcianos.

Tem até um vereador do PT, aqui da região de Campinas, que fala por vinte minutos aos caminhoneiros e, em dado momento, depois de chamar Temer de "usurpador", pois "roubou o mandato", ameaça derrubá-lo também e lembra que "nós tiramos o Collor, nós tiramos a Dilma!" Do PT! "Chose de loc", diria Sebá, o nordestino exilado em Paris, personagem do Jô Soares nos anos 70.

Sem contar o próprio Temer em pessoa que, recentemente, em solenidade oficial, anunciou o novo lema de seu governo: "o Brasil voltou, vinte anos em dois". A vírgula não prejudica a meia confissão. Meia porque o país voltou pelo menos uns dois séculos sob sua batuta.

Stanislaw Ponte Preta, vivo fosse, teria um farto material para escrever, sem grande esforço de criação, novos volumes da sua série de Febeapás.

A propósito, Febeapá são as iniciais de "Festival de Besteiras que Assolam o País". Umberto Eco poderia escrever o prefácio. Estivesse vivo também, claro.

(Luís Antônio Albiero, advogado em Americana-SP, ex-vereador de Capivari-SP pelo PT, palpiteiro de Facebook)

26/05/2018

A Mulher de César

Diziam os latinos que à mulher de César não bastava ser honesta, era preciso que parecesse como tal. No âmbito das coisas públicas, aparências não são “uma bobagem”, como disse o juiz midiático da 13ª Vara Federal de Curitiba, Sérgio Fernando Moro. Muito pelo contrário, no caso dele e de qualquer magistrado há um impedimento ético a aparecenças em público ao lado de outras pessoas, sobretudo quando estas integram ou representam empresas ou entidades submetidas a seu julgamento.

Moro, que recentemente recebeu nos Estados Unidos (interessante esse apego do juiz ao reino de Donald Trump) uma homenagem patrocinada pela LIDE (empresa brasileira), que todos sabem pertencer ao ex-prefeito de São Paulo e atual candidato a governador do estado pelo PSDB João Doria Júnior, deve ter-se esquecido que o art. 13 do Código de Ética da Magistratura impõe que “o magistrado deve evitar comportamentos que impliquem a busca injustificada e desmesurada por reconhecimento social, mormente a autopromoção em publicação de qualquer natureza”. Sugiro ao leitor desconfiado que dê uma “gugada” (faça uma pesquisa no Google) usando as palavras “Código”, “Ética” e “Magistratura” e confira com seus próprios olhos.

Aliás, esse evento foi patrocinado por um escritório de advocacia também brasileiro (da pequena Cianorte, no Paraná) que presta serviços jurídicos à Petrobras, empresa estatal que atua nos processos da Lava Jato como “assistente de acusação”, ou seja, como parte. Vê-se que Moro, o distraído, se esqueceu também do art. 17 do mesmo Código de Ética, segundo o qual “é dever do magistrado recusar benefícios ou vantagens de ente público, de empresa privada ou de pessoa física que possam comprometer sua independência funcional”. No caso, ele aceitou o benefício de ser homenageado e ter as despesas pagas por um advogado que representa uma empresa que é parte em processos que cabe a ele julgar. Difícil compreender a comprometedora confusão de interesses?

Depois de ter uma foto em que aparecem ele e Doria com as respectivas esposas divulgada por todos os veículos de comunicação e redes sociais do país – imagem que o ex-prefeito tucano já está usando como propaganda de sua precandidatura a governador -, Moro recusou-se a se declarar suspeito, como requerido pela defesa de Lula, no processo que investiga sua frequência ao sítio de amigos da família em Atibaia (cidade que, por sinal, a exemplo de Guarujá, também não fica no Paraná).

O pior foi a desculpa esfarrapada de Moro. Ele, que já havia dito publicamente que a tal foto era “uma bobagem”, nos autos escreveu que tinha a mesma importância de Lula posar ao lado de Aécio Neves ou Geddel Vieira Lima. Mas como é distraído esse piá! Parece que ele não sabe que Lula não é juiz, não vai julgar ninguém, e que a característica primordial de todo político é exatamente ser parcial, tomar partido, aproximar-se de outros políticos, dialogar com eles. Exatamente o oposto de como deve agir um magistrado, como é o caso de Moro, que a cada atitude revela-se um ignorante em política.

Ignorância não é crime, nem pecado, nem é algo feio. Sou tão ignorante em física quântica quanto Moro é analfabeto político. A diferença é que, mesmo néscio na atividade em que Lula é gênio, Moro, como juiz preparado que deveria ser, tem obrigação funcional de conhecer minimamente o universo político, item que inclusive compõe a lista de temas a serem estudados por qualquer candidato a concurso da magistratura. Assim, a comparação feita é descabida e impertinente e só aprofunda a revelação da inegável animosidade que move o juiz de Curitiba em relação ao réu cuja cabeça sempre teve como troféu a ser conquistado.

Com esse tipo de comportamento, Moro só faz crescer a certeza de que todo seu empenho é mesmo e somente para perseguir o ex-presidente Lula e que a prisão política que decretou contra este só atende ao objetivo mesquinho de o manter fora da disputa eleitoral deste ano, completando assim o “Golpe dos Corruptos de 16”.

Não por acaso, pesquisa divulgada ontem pelo jornal O Estado de São Paulo revela que a aprovação pessoal a Lula só cresce, batendo os 45% (a maior dentre todos os demais presidenciáveis), enquanto a rejeição à sua pessoa cai, ao passo que as impressões em relação ao juiz Sérgio Moro seguem sentido inverso: sua aprovação vem caindo e já está na faixa dos 40% (inferior à de Lula, portanto) e sua reprovação não para de subir (50%, tecnicamente empatada com o ex-presidente). Note-se que não se trata de pesquisa de intenção de votos, até porque não é o caso de Moro (ao menos no pleito deste ano), mas de avaliação pessoal, ou seja, sobre a conduta de cada qual. Revela, portanto, uma crescente desconfiança na capacidade de Moro de agir de modo imparcial e, ao mesmo tempo, uma crença também crescente na inocência de Lula e nas injustiças contra ele praticadas pelo juiz.

Denúncias sobre negociações espúrias de delações premiadas, já feitas pelo advogado hispano-brasileiro Rodrigo Tacla Duran e agora reforçadas pela delação de dois doleiros presos na operação “Câmbio Desligo”, têm o potencial bombástico de revelar, se houver empenho das autoridades responsáveis, até aqui negligentes, algo mais substancioso e bem menos nobre do que meras aparências, como César exigia da própria esposa honesta.

(LUÍS ANTÔNIO ALBIERO, advogado em Americana-SP, ex-vereador pelo PT de Capivari-SP de 1989/92 e 2001/04).

20/05/2018

A Avalanche Cirista

De repente, as redes sociais se viram tomadas por uma avalanche de internautas que apoiam a candidatura de Ciro Gomes, ex-governador do Ceará que se apresenta como candidato a presidente e quer ocupar o espaço da centro-esquerda, embora sua origem política seja lá na ponta direita (antiga Arena).

Chama a atenção a agressividade de muitos desses apoiadores que, ao invés de difundir virtudes que encontrem no seu candidato, preferem fazer pressão intensa contra os que optam por Lula. Os ciristas acreditam e pregam que só Ciro pode unificar as esquerdas, isso porque essa unidade é imprescindível para que sua candidatura ganhe a musculatura necessária para levá-lo ao segundo turno.

É uma baita falta de respeito a quem está convencido a apoiar a candidatura de Lula. Este, embora preso, para desespero da Direita, continua liderando com folga em todas –sem exceção! – as pesquisas eleitorais, em que aparece com mais de trinta por cento, contra dezesseis pontos percentuais do segundo melhor colocado (Bolsonaro). E, no segundo turno, Lula vence qualquer dos concorrentes com margem ainda maior, próximo dos sessenta por cento.

Ora, o partido que tem o candidato que lidera as pesquisas, que já foi presidente por dois mandatos, que elegeu e reelegeu sua sucessora, que tem muito a mostrar do que fez em favor do povo brasileiro; o partido que é o maior do país, talvez o mais importante de esquerda do mundo, que tem a maior bancada do Congresso; o partido vitorioso nas últimas quatro eleições presidenciais e que segue sendo o preferido do eleitorado brasileiro, com quase vinte por cento das preferências, contra no máximo cinco pontos do segundo colocado (PSDB), por que raios haveria de abrir mão de ter candidato próprio para apoiar um cavalo paraguaio que patina em torno dos cinco por cento de intenção de votos?

Nutro por Ciro certa admiração, pela sua inteligência, seu tirocínio, mas ele não é a última bolacha do pacote, como se acha e tenta surfar na onda de Lula só porque este está preso.

Os petistas têm consciência das dificuldades que Lula enfrentará, mas sabem da sua inocência e têm clareza de que ele pode – e deve – ser candidato. Eu mesmo escrevi um texto que viralizou nas redes sociais e foi publicado no jornal eletrônico Brasil 247 em que analiso, juridicamente, os passos da candidatura Lula. O partido pedirá seu registro que, certamente, será impugnado. O candidato terá, então, prazo para apresentar sua defesa. A decisão – que caberá desde logo ao TSE, por se tratar de eleição presidencial – muito provavelmente será pelo indeferimento (salvo se, a tempo, nos recursos criminais apresentados ao STJ e STF, for concedida medida liminar suspendendo os efeitos da sentença – art. 26-C da Lei 64/90).

Mesmo com a decisão desfavorável, Lula poderá recorrer, dessa feita ao STF. Embora as decisões do TSE sejam irrecorríveis, conforme está no Código Eleitoral, a própria Constituição Federal prevê a possibilidade de um recurso chamado “extraordinário”, desde que voltado exclusivamente para discutir uma questão constitucional.

A questão constitucional diz respeito à própria condição de elegibilidade de Lula. É que o art. 15, inc. III, da Constituição prevê que os direitos políticos de qualquer brasileiro só podem ser suspensos ou perdidos, na hipótese de decorrer de uma sentença penal condenatória (como no caso de Lula), depois que esta transitar em julgado. Ora, qualquer cidadão que esteja no exercício pleno de seus direitos políticos reúne condição básica de elegibilidade, como está dito no art. 14, inc. II, da Constituição, e só a perderá ou a terá cassada depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Nenhuma lei infraconstitucional, como é o caso da ficha limpa, pode derrogar esse preceito constitucional.

E enquanto a candidatura de Lula estiver “sub judice”, ou seja, por todo o tempo em que tramitar o processo eleitoral, ele poderá continuar fazendo sua campanha, inclusive participando de debates e entrevistas, e poderá até chegar ao dia da eleição com seu nome e foto na urna eletrônica e ser eleito.

Depois de eleito, qualquer decisão posterior desfavorável que se torne irrecorrível, que lhe venha a cassar o registro, o diploma ou até mesmo o mandato, obrigará a que se realize uma nova eleição.

Haverá um momento de tensão por volta de meados de setembro, desde a data limite prevista na lei eleitoral para substituição de candidatos até o dia da eleição. É que, se o partido, até a data limite (17 de setembro), decidir-se por levar a candidatura até o final e, porventura, uma decisão definitiva desfavorável venha a ocorrer antes de sua eleição, o partido terá perdido a oportunidade de fazer a troca. Nesse caso, o segundo e o terceiro mais votados no primeiro turno disputarão o segundo.

Enfim, não há razão nenhuma para, neste momento, o PT abdicar de uma candidatura expressiva como a de Lula, o preferido do povo brasileiro, hoje vivendo a condição de preso político por força de uma decisão judicial absolutamente nula, que o atinge no bojo do golpe de estado sofrido em 2016. Ao ver dos golpistas, o golpe precisa ser consumado nas eleições deste ano e, para isso, é imprescindível que Lula esteja fora do pleito, porque se não for por WO, eles não vencem a eleição.

Se houver eleição, claro.

(Luís Antônio Albiero, advogado, ex-vereador de Capivari pelo PT em 1989/92 d 2001/04)

12/05/2018

Matou a Nação e Foi à Disney

A primeira grande baixa das eleições presidenciais a serem realizadas em outubro deste ano ficou por conta do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa, que anunciou sua desistência pela rede social Twitter. O mais interessante foi a motivação alegada pelo ex-supremo ministro – aliás, a ausência de motivo. "Está decidido. Após várias semanas de muita reflexão, finalmente cheguei a uma conclusão. Não pretendo ser candidato a Presidente da República. Decisão estritamente pessoal", postou Barbosa, assim, laconicamente, sem sequer esgotar os 280 caracteres disponibilizados pelo aplicativo.

Dono de quase 10% das intenções de voto, segundo pesquisas recentes de diversos institutos, Barbosa figurava em terceiro ou quarto lugares, no mesmo patamar de Marina Silva, abaixo de Lula – que segue liderando com folga, a despeito da incômoda situação de preso político – e Bolsonaro.

Barbosa notabilizou-se quando atuou como relator do caso Mensalão, sobretudo pela maneira truculenta e ditatorial com que desenvolveu seu trabalho, aí incluído até mesmo o modo de relacionamento pessoal com seus próprios pares. Não foram poucos os episódios em que se altercou ao vivo com outros ministros, em geral com uma grosseria que, em plena sessão da tarde, exigia tirar as crianças da frente da TV.

Esse não foi o seu pior, porém. Se “dar o melhor de si” é conselho repetido por cem de cada cem palestrantes motivacionais ou autores de livros de autoajuda, a máxima de Barbosa foi oposta. Ele se desdobrou para dar o pior de si, e conseguiu.

Foi ele quem deu início à onda de atropelos, em processos judiciais, aos direitos e garantias individuais consagrados pela Constituição Federal, de modo a seguir o "script" de criminalização da política e de perseguição implacável aos políticos que não interessavam ao “establishment”. Foi Barbosa que importou da Alemanha a malfadada “Teoria do Domínio do Fato”, publicada em 1963 pelo jurista alemão Claus Roxin, que a desenvolveu por ocasião do julgamento dos crimes cometidos por oficiais do partido nazista nos tribunais. Condenados como meros partícipes dos crimes contra a humanidade praticados contra judeus na época em que os nazistas estavam no poder, Roxin preocupava-se em demonstrar que eles eram autores dos fatos. “Achava que quem ocupa posição dentro de um chamado aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute um delito tem de responder como autor e não só como partícipe”, disse o próprio jurista à Folha de São Paulo em 2014. Na mesma ocasião, frisou que “a posição hierárquica não fundamenta o domínio do fato” e que “o mero 'ter que saber' não basta”. Posteriormente, Roxin esclareceu que sua teoria não dispensa a existência de provas.

Usando de modo enviesado a teoria alemã, Joaquim Barbosa condenou José Dirceu sem qualquer prova de participação nos crimes, tendo-se contentado com o simples fato de que se tratava do ministro chefe da Casa Civil à época. Começou assim a mais grave e violenta sequência de agressões aos direitos constitucionais, no âmbito judicial, já vividos pelo país desde o regime militar.

Após anunciar sua desistência, Barbosa, que vive dizendo que foi eleitor de Lula e Dilma, mesmo durante o mensalão, e costuma acentuar as conquistas sociais de seus governos, afirmou que vê risco de um golpe militar no horizonte ou, ao menos, um golpe de Michel Temer para prolongar seu mandato. Ao fim, revelou que não votará em outubro, pois estará indo embora do país. Certamente vai curtir seu apartamento em Nova Iorque, que adquiriu de forma no mínimo suspeita, quanto à legalidade.

Muito oportunamente, Barbosa foi comparado pelo espirituoso jornalista Paulo Moreira Leite (do jornal eletrônico Brasil 247, que nesta semana me honrou com a publicação de um texto de minha autoria) ao protagonista do célebre filme brasileiro dos anos 60 – por sinal, censurado pela ditadura – que tem por título “Matou a Família e Foi ao Cinema”. O mais emblemático é que, nos anos 80, o filme teve um "remake" estrelado por ninguém menos, aliás, ninguém mais que Alexandre Frota, o protético “sex symbol” do Golpe dos Corruptos de 16. De fato, o ex-Batman do Supremo deu início ao assassínio em série dos direitos fundamentais dos brasileiros, matou a nação e agora vai tranquilamente curtir a aposentadoria nos Estados Unidos.

Outra baixa da semana na corrida presidencial foi a desistência do próprio presidente Michel Temer, outro notável “serial killer” dos direitos. Comandou a trama do “golpeachment” e seguiu pilotando a recente fase de aprofundamento do Golpe, em que se deu a morte do projeto de nação iniciado em 2003, projetado desde 1943 por Getúlio Vargas com a CLT e melhor delineado na Constituição de 88. Dono de ridículas intenções de voto nas pesquisas de opinião, Temer corria o risco de, considerada a margem de erro para menos, chegar em outubro com saldo negativo de votos. O presidente decorativo agora negocia uma aliança com Geraldo Alckmin, apostando em que, eleito, este lhe garantirá o foro privilegiado, nomeando-o para um cargo qualquer.

Temer é mais um que mata e, em seguida, quem sabe não vai também com Marcela e Michelzinho dar um pulinho na Disney.

(Luís Antônio Albiero, advogado, ex-vereador de Capivari pelo PT em 1989/92 e 2001/04)

28/04/2018

O Mito da Bolha

Mito: substantivo masculino. Relato fantástico de tradição oral, geralmente protagonizado por seres que encarnam as forças e os aspectos gerais da natureza. Numa outra acepção, narrativa que explica a origem de determinado fenômeno, ser vivo, instituição ou costume social. Por outra, é a representação de fatos ou personagens históricos, amplificados através do imaginário coletivo e de longas tradições literárias orais ou escritas. Também pode ser a exposição alegórica de uma ideia qualquer, de uma doutrina ou teoria filosófica, ou a representação idealizada do estado da humanidade, no passado ou no futuro. É assim que o Google, oráculo da modernidade, define o que seja mito e indica como sinônimos lenda, alegoria, fábula.

Ao longo da História, há registro de muitos mitos. A Mitologia grega os tem às largas. O Mito da Caverna, atribuído a Platão, alcançou foros de elevada representação filosófica e intelectual. É parte do célebre livro “A República”, em que o filósofo grego narra a história de prisioneiros que, desde o nascimento, passaram toda a vida acorrentados em uma caverna, observando as projeções das sombras produzidas na parede por uma fogueira acesa às suas costas. São projeções de estátuas representativas de pessoas, animais, objetos, aos quais os prisioneiros passam os dias analisando, atribuindo nomes e julgando. Platão sugere o que aconteceria se um deles se libertasse, saísse da caverna e se encantasse com a realidade com a qual tomaria contato do lado de fora. Conjectura que se esse liberto retornasse ao interior da caverna e relatasse tudo o que viu aos que lá permaneceram, estes certamente o ridicularizariam e o chamariam de louco, porque tudo o que conhecem como real são as sombras que se acostumaram a ver todo santo dia – algo como ocorre, nos tempos de hoje, com o telespectador acondicionado a ver e a raciocinar a partir do que lhe é mostrado através das telinhas da Globo.

Há o mito da Medusa, aquela da cabeleira formada por serpentes que se deixa seduzir por Poseidon, que a assedia e com ela faz amor - veja-se que desde sempre há gosto para tudo nesta vida. Há o de Sísifo, condenado a carregar uma grande pedra até o topo da montanha, de onde rolava para baixo e ele a reerguia, infinitamente.

Enfim, há uma infinidade de mitos, de origem, de destruição, messiânicos, folclóricos.

No Brasil, tem-se feito largo uso da palavra mito, sobretudo na política, área das atividades humanas muito favorável a surgimento de lendas e fantasias, a par de realidades históricas. O sujeito que no governo de um país reconhecidamente desigual promove um mínimo de dignidade e ascensão social aos esquecidos de sempre, fato concreto reconhecido pela ONU e pela maioria da população do próprio território e de todo o mundo, é natural que seja elevado à condição de “mito”. Sua obra autoriza a deferência.

O que não é razoável é dizer o mesmo do fenômeno eleitoral que parece desenhar-se no horizonte deste 2018. Refiro-me ao soldado raso eleito deputado federal pela primeira vez por conta de uma insurreição inaceitável nas hostes militares, motivada por questões salariais, que vem sendo chamado de “mito”, mas que, preparando-se para se sentar na cadeira presidencial de um país complexo como o Brasil, permite-se anunciar que resolverá o grave problema da violência “metralhando a Rocinha”. Como pode um “mito” acreditar num programa alimentar baseado na extração e distribuição do “leite de ornitorrinco” e, pior, supondo tratar-se de um animal que faria parte da “biodiversidade da nossa Amazônia”? O estimado leitor não acredita no que estou dizendo? Pois consulte o Google usando as palavras “Bolsonaro” e “ornitorrinco” e veja com seus próprios olhos essa insanidade vomitada da boca do mitológico candidato.

O que mais surpreende é que pessoas que posam na sociedade como inteligentes ou bem informadas arrisquem a própria biografia apostando num sujeito absolutamente ignorante, grosseiro, incapaz de conceder uma entrevista sem destratar o entrevistador na primeira pergunta que o desagrade. Sem contar os cristãos desavisados que não se pejam de comprometer a própria fé ao apoiar um pregador da morte, da tortura e que se dá ao desplante de classificar as mulheres como merecedoras ou não de serem estupradas conforme seu juízo de beleza. Um troglodita que sofre de incontinência verborrágica, useiro e vezeiro das expressões de preconceito contra negros, indígenas, mulheres e homossexuais.

A ausência de um maior conhecimento pelo grande público do que pensa o “mito” certamente é a razão de ele ainda figurar nas pesquisas de intenção de votos com algo em torno de 17% - teto em que há meses está estacionado. Evidentemente trata-se de uma candidatura bolha, como tantas que frequentaram a história das recentes eleições no Brasil desde a redemocratização. Foi assim com Doutor Eneas, com Heloísa Helena, com Marina Silva, com Ciro Gomes, no plano presidencial; foi assim com Francisco Rossi e Celso Russomano, no estado e na cidade de São Paulo – gente muito mais séria que o ogro parido em Campinas. Será assim também com ele próprio, o “mito”, que, como bolha, murchará paulatinamente à medida que se aproximar o dia das eleições ou explodirá na reta final. Basta deixá-lo abrir a boca.

Ao truculento Jair Bolsonaro restará, no máximo e quando muito, um lugar nos livros do folclore nacional, em que figurará como o “Mito da Bolha”, a envergonhar todos os que deixarem registrado nas redes sociais seu esfuziante apoio à sua candidatura. Esses que, quando nossa generosidade nos leva a mostrar-lhes a realidade, nos ridicularizam, tal qual os acorrentados da caverna de Platão.

(Luís Antônio Albiero, advogado, ex-vereador de Capivari pelo PT em 1989/92 e 2001/04)

21/04/2018

O Discurso da Sujeira

A sociedade brasileira vem sendo há anos intoxicada por um discurso midiático voltado à criminalização da Política. Apegados ao falso moralismo dos que nutrem preconceito aos políticos, aos quais atribuem a razão suprema de todas as mazelas que conhecemos, os meios de comunicação tentam cristalizar a ideia de que todo político é corrupto, que a Política é suja e não é coisa de gente honesta.

Tenta-se incutir nas pessoas a certeza de que é melhor por de lado as questões políticas e deixá-las para quem tem um dom natural para isso, ou seja, aquela casta de aristocratas supostamente ungidos por bênçãos celestiais que sempre dominaram a política no Brasil, os representantes da elite, sejam dela filhos naturais ou adotivos.

Na essência, o recado da turma de cima é o seguinte: nós, os legítimos donos da Casa Grande, é que desde sempre soubemos governar e não vocês aí da senzala. Contentem-se em chegar à nossa cozinha, limpar nossos banheiros, arrumar nossas camas e nos servir à mesa. De resto, fiquem quietinhos no cumprimento de seus deveres, porque esse é o seu lugar.

Vendida a ideia diariamente, de modo explícito ou velado, era preciso embalá-la em fatos concretos – e o que não falta são atores da Política a dar razão ao discurso da sujeira.

Instalado em 2003 o governo mais representativo das camadas populares da história do país, não demorou para eclodir a farsa do tal "mensalão", um suposto esquema que visava garantir aprovação de projetos no Congresso Nacional, como a reforma tributária, que nunca saiu do papel, e a da previdência. Ora, quem em sã consciência acreditaria que, comprando meia dúzia de deputados federais e nenhum senador, o governo garantiria a aprovação de medidas impopulares, que exigiam votos favoráveis de três quintos dos mais de seiscentos parlamentares, para "perpetuar-se no poder"? Mas foi essa a tese vencedora, foi por conta do uso artificial de um mecanismo jurídico chamado "Teoria do Domínio do Fato" que José Dirceu e José Genoino foram condenados e presos, o primeiro só por ter sido ministro-chefe da Casa Civil, o outro por ter assinado um contrato bancário na condição de presidente da instituição tomadora do empréstimo.

Apesar de todo estardalhaço, o governo foi vitorioso nas três eleições presidenciais seguintes, com Lula reeleito em 2006 e fazendo sua sucessora em 2010, quando deixou o governo com incrível aprovação na casa dos 90% dos brasileiros, e seu legado foi bastante para garantir a reeleição da primeira mulher presidenta do Brasil.

Insatisfeitos, os responsáveis pela narrativa da "política suja" persistiram e levaram muitos partidos políticos a, envergonhados, trocar o nome, extraindo dele a palavra "partido". Candidatos "não políticos" surgiram, autodenominados "gestores" ou "independentes". Dilma foi golpeada, apeada do poder sem um real crime de responsabilidade, sem nenhuma acusação de corrupção contra si, e em seu lugar, com forte apoio popular inicial, foi içada ao centro do poder a mais evidente e voluptuosa quadrilha de corruptos de que se tem notícia, chefiada pelo então vice Michel Temer.

A tentativa de consolidar o golpe, porém, tem uma gigantesca sombra a ameaçá-la - o próprio ex-presidente Lula.

Como todo político é sujo, ladrão, corrupto, segundo a lógica do discurso vendido à sociedade brasileira, não seria difícil pegar esse migrante nordestino que ousou tomar conta da sala de controle da Casa Grande. A ideia foi começar pelas beiradas, e foi facílimo apanhar, nos escalões mais elevados da Petrobrás, diretores atolados em corrupção. Pouco importa que muitos deles já fossem diretores desde o governo FHC ou que as construtoras corruptoras sugassem a companhia já desde os governos militares. O alvo era Lula.

Prenderam-se diretores, ex-deputados, ex-ministros, ex-governadores, todos flagrados com contas milionárias no Brasil e no exterior, joias e quadros valiosos, carros e imóveis de luxo, com áudios, vídeos, documentos. Não seria difícil pegar Lula.

Por um fatal erro de cálculo, porém, o alvo não correspondia exatamente ao que dele esperavam seus algozes. Exaustivamente investigado pela Lava Jato, nada foi encontrado de idôneo, sério e seguro que comprometesse o ex-presidente. Ao que tudo indica, toparam com uma raridade: um político honesto!

Foi necessário apelar à farsa do tríplex para condená-lo, um apartamento que seria dele num futuro incerto, segundo o juiz que o condenou. Foi-lhe aplicada a pena cavalar de doze anos e um mês - uma aberração para um réu primário e de excelentes antecedentes, que tanto fez em favor de milhões de necessitados deste Brasil afora.

Está preso. Está, segundo insistem em dizer, inelegível. Mas não, nem uma coisa, nem outra. Sua prisão é apenas física e sua inelegibilidade será enfrentada com amplo respaldo na lei eleitoral. Ele será candidato e lidera as pesquisas de intenção de votos, com vantagem superior ao dobro de votos do segundo colocado. Apesar de todo massacre midiático e das adversidades que vivencia, Lula arregimenta, segundo variadas pesquisas, um terço dos votos do país em primeiro turno e vence com dois terços em segundo. Também seu partido, dito morto e enterrado, segue firme e forte, ostentando a preferência do eleitorado, sem ter feito concessão ao discurso hipócrita da negação da política, sem ter mudado de nome ou orientação ideológica.

A liderança de Lula e do PT, sua resistência e resiliência, representam a vitória da Política sobre o discurso que tenta negá-la. Alvíssaras! (Luís Antônio Albiero, advogado, ex-vereador pelo PT de Capivari de 1989/92 e 2001/04)

14/04/2018

Eu Sou o Cara

Eu sou a superação, sou aquele que enfrentou a seca e a fome nos primeiros anos de vida, que desafiou a miséria por toda a adolescência, que só venceu a ignorância e a alienação na idade adulta.

Eu sou a coragem, sou aquele que não se intimidou diante da opressão dos canhões, das botas e das baionetas, que não se curvou diante dos que o tentaram calar na prisão e na opressão midiática.

Eu sou o sonho, sou aquele que ousou projetar um futuro melhor para o seu povo, para além da própria categoria profissional.

Eu sou a tenacidade, sou aquele que sofreu derrotas sucessivas, mas jamais baixou a cabeça, jamais desistiu, que venceu a escalada e chegou ao cume da montanha.

Eu sou a realidade, sou aquele que levou vida em abundância aos condenados ao longo da história a morrer de fome ou à exclusão social, aquele que levou alimento e levou água, que proporcionou energia elétrica, casa própria, acesso ao crédito, à universidade e a todos os recursos públicos e privados antes reservados pelos poderosos para a casta de privilegiados, como se fossem dádivas divinas incompartilháveis.

Eu sou a dignidade, sou aquele que levou oportunidade e permitiu aos menos favorecidos superar os obstáculos, realizar os sonhos e se posicionar empoderados em meio à sociedade opressora.

Eu sou a justiça, aquele que sempre lutou em favor da igualdade, sem distinção de raça, de origem, de sexo, de ideologia ou de religião.

Eu sou o amor, aquele que sempre pregou a paz social e a prosperidade para todos.

Eu sou a liberdade, sou aquele que por toda vida preservou e fez valer, mesmo sob ataque desmedido dos que detêm o controle concentrado da informação, o direito ao pensamento e à livre expressão.

Eu sou a alegria, sou aquele incapaz de negar um sorriso a quem quer que seja e que, no momento mais difícil, sou capaz de dar alento e proporcionar esperança a quem esteja em desespero.

Eu sou a honestidade, sou aquele que por anos, por décadas, teve a vida investigada, a intimidade vilipendiada, os direitos violados, e nada, absolutamente nada, encontraram que comprometesse sua honra e que, ao contrário, só encontraram superação, coragem, tenacidade, dignidade, justiça, amor, liberdade e alegria.

Involuntariamente, porém, eu sou aquele que despertou, nos que o imaginavam incapaz de vencer os desafios, a inveja e o preconceito, que com o tempo se disseminaram e se transmudaram em ódio, que se projetou e se transformou em ódio generalizado àqueles a quem represento.

Eu sou a resiliência, sou aquele que trancafiaram numa jaula como um animal feroz e perigoso, a quem subjugaram e retiraram todos os direitos, mas aquele que se nutre das adversidades para se tornar mais forte, mais cheio de vida, imbatível.

Eu sou milhões, sou aquele que prenderam como passarinho, mas passarinho que não aceita a gaiola e voa para o infinito e que, voando, espalha seus sonhos pelos sonhos de todos a quem representa.

Eu sou a multiplicação, sou aquele que, impedido de caminhar com as próprias pernas, refaz a caminhada pelas pernas daqueles que comungam dos mesmos ideais.

Eu sou a vida, sou aquele cuja morte é desejada pelos que desconhecem que um ideal não se mata, sou o que sobreviverá para sempre na memória dos que cultivam no coração a gratidão dos bons e na mente a sabedoria dos justos.

Muito prazer, eu sou esse cara.

(Luís Antônio Albiero, em Capivari-SP, 14 de abril de 2018 - uma semana após Lula ter sido levado à prisão política por Sérgio Moro para não ser candidato a presidente da República)

06/04/2018

O Drible da Vaca

Não foi por vinte centavos que o povo foi às ruas em 2013. Nunca foi para combater a corrupção que tiraram uma presidenta honesta do governo para por em seu lugar Michel Temer e sua ávida e insaciável quadrilha. Sempre foi pelo preconceito, pelo ódio de classe. E essa hipocrisia ficou escancarada no julgamento desta quarta-feira, 4/4, sobretudo no voto vaivém da ministra Rosa Weber, aquela que vota girando conforme bate o vento, como biruta de aeroporto. Foi o espetáculo mais deprimente da História do Poder Judiciário brasileiro, transmitido ao vivo, em rede nacional, uma vergonha exposta ao mundo todo.

“In claris cessat interpretatio”, diziam os latinos, e a Constituição é suficientemente clara, cessando qualquer necessidade de interpretação, ao estatuir, no art. 5º, inc. LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Ora, trânsito em julgado é um momento preciso do processo, que se dá quando não cabe mais recurso, ou seja, quando enfim esgotados todos os recursos cabíveis. Nesse momento, um serventuário certifica nos autos que no dia tanto de tanto “o acórdão (ou a sentença) de fls. transitou em julgado”. A partir daí, não há mais o que fazer e o condenado pode ser levado à prisão para dar início à execução da pena.

Há hipóteses legais de prisão antes desse momento, mas são prisões em caráter excepcional, a prisão em flagrante, a temporária e a preventiva. Para cada uma delas, há requisitos que devem ser observados e são todas provisórias. O requisito para que alguém seja preso em definitivo, ou seja, para cumprimento da pena, é que a condenação haja transitado em julgado e ponto final. É o que está na Constituição!

O ministro Luís Roberto Barroso, do alto de sua intelectualidade cosmética, chegou a mencionar, em tom crítico, que por vezes “as palavras perdem sentido”. De fato, parece mesmo que o ministro ainda não encontrou o sentido de palavras tão singelas como a expressão “até o trânsito em julgado”. Sem culpa formada em definitivo, ninguém pode ser preso a título de cumprir a pena.

A sempre espantada ministra Rosa Weber – mais assustada do que nunca, decerto por conta da intensa pressão que lhe fez a mídia e da ameaça do comandante do Exército – ofereceu seu voto embrulhado em uma retórica dúbia que lhe permitia encaminhar-se para qualquer lado. Um voto “primoroso”, segundo a ironia e o cinismo do colega Dias Toffoli. Em essência, Rosa Weber disse que é contra a prisão em segunda instância, mas negou o habeas corpus ao ex-presidente em prestígio ao tal “princípio da colegialidade”. Votou como tem votado na Turma da qual faz parte, acompanhando feito “maria-vai-com-as-outras” os demais colegas, comportamento que repetiu mesmo reconhecendo que o plenário é o local apropriado para que a Corte estabeleça novos rumos e, portanto, cada ministro tenha ali a oportunidade de expressar seu posicionamento com liberdade. Como a água que gira em círculo, mas sempre vai pelo ralo, ela fez literalmente um raciocínio circular. Penso A, mas voto B porque há uma maioria que vota assim, embora se hoje eu votasse A, como amanhã votarei, hoje mesmo haveria maioria na direção de A. Uma excrescência, enfim, que revela apego a um formalismo irracional e desumano, justamente por quem jura que não é adepta da “forma pela forma”.

Fico imaginando a ministra, findo o “jogo”, concedendo entrevista ainda no “gramado”, tentando explicar como foi que fez esse golaço. Diria ela, repetindo um jogador do XV de Piracicaba nos anos setenta: “fiz que fui, mas não fui e acabei ‘fondo’”. Uma espécie de “drible da vaca” – e que me perdoem as bovinas se as ofendo.

Nesse imbróglio jurídico, repetiu-se aquilo que na mesma sessão o ministro Barroso disse recusar-se a fazer parte. No país dos “delinquentes ricos”, ao fim e ao cabo ele e a maioria do Supremo mandaram para a cadeia o menino pobre de Garanhuns, primário e dono dos melhores antecedentes possíveis. É o que acontece diariamente, Brasil adentro. Prisão por um crime que o acusado não cometeu, corrupção passiva sem propina, sem ato de ofício, sem provas, baseada apenas em delação. Enfim, uma condenação teratológica, a teratologia (monstruosidade) que Luiz Fux disse não ter vislumbrado nos autos.

A direita hoje festeja porque pensa ter alcançado seu objetivo. Depois de quatro derrotas seguidas, arrancou à força a presidenta legitimamente eleita pelo povo e agora, por faltar-lhe um candidato minimamente competitivo, imagina ter tirado do jogo o craque que tanto a amedronta. Quer ganhar por “WO”, sem adversário em campo. E se orgulha desse vexame.

(Luís Antônio Albiero, advogado, ex-vereador de Capivari pelo PT em 1989/92 e 2001/04)